quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Compreender a acção humana

No ano de 2008 convidei Ricardo Santos, na altura professor de Lógica e de Filosofia Antiga na Universidade de Évora, para dar uma conferência para professores e alunos da minha escola sobre filosofia da ação. Fiz-lhe uma curta entrevista após a conferência, que publiquei na página do grupo de Filosofia da escola. Dado que essa página foi entretanto encerrada, e dado que as respostas do Professor Ricardo Santos se mantêm interessantes e esclarecedoras, decidi publicar aqui a parte da entrevista sobre o tema da conferência (havia outra parte sobre a filosofia e o seu ensino, que não incluo aqui apenas por uma questão de tamanho). Ricardo Santos, a quem renovo o meu agradecimento, é agora professor do departamento de Filosofia da Universidade de Lisboa.
 


O título da conferência que proferiu é "Compreender a Acção Humana", que, como esclareceu, é um tema da filosofia da acção e não, como por vezes se pensa, da ética. Em seu entender, a que se deve esta confusão?
 
Como procurei mostrar na parte inicial da conferência, o pensamento filosófico sobre questões que dizem respeito à acção humana, mas que são independentes da sua avaliação ética, tem uma origem muito antiga, estando claramente presente em autores como Platão e Aristóteles. Todavia, o reconhecimento da filosofia da acção como uma disciplina filosófica autónoma é relativamente recente: é algo que ocorre na filosofia anglo-americana no último terço do século vinte, muito em consequência de alguns dos últimos trabalhos de Wittgenstein e de pessoas por ele influenciadas, como Ryle, Anscombe, Kenny e outros. No meu caso particular, descobri esta nova disciplina quando estava a trabalhar sobre o problema da acrasia – essa forma de irracionalidade em que uma pessoa age de modo voluntário contra aquilo que ela própria julga ser o melhor – e li, num célebre artigo de Donald Davidson, que a acrasia devia ser tratada como um problema de filosofia de acção, e não de ética. É certo que, uma vez estabelecida a distinção, aplicamo-la retrospectivamente e, por isso, hoje escrevem-se livros sobre a filosofia da acção de Aristóteles, por exemplo, bem distintos dos que se escrevem sobre a sua teoria ética – quando ele próprio não fazia essa distinção. Portanto, respondendo à sua pergunta, penso que a confusão, quando ocorre, advém principalmente da relativa novidade da filosofia da acção como disciplina.
 
Há alguma relação ou afinidade especial entre a filosofia da acção e outras disciplinas filosóficas, como a ética, a filosofia da mente, a filosofia da linguagem e a metafísica, ou será que são disciplinas completamente independentes?
 
A autonomia disciplinar é relativa e não exclui a existência de relações de diversos tipos. Para um filósofo tendencialmente sistemático, que desenvolva trabalho em diversas disciplinas, é importante ter a noção de que a posição que adopta numa área pode condicionar o leque de soluções que ficam disponíveis para problemas pertencentes a outras áreas. No caso particular da filosofia da acção, parece-me que as relações privilegiadas são precisamente essas que indica (faltaria apenas acrescentar a teoria da decisão, mas esta não é estritamente filosófica). As relações com a ética são evidentes, já que os juízos éticos se contam certamente entre os factores que determinam, ou que pelo menos condicionam, as nossas decisões de agir deste ou daquele modo. A relação com a filosofia da mente é muito estreita, havendo até quem defenda que a filosofia da acção é uma sua subdisciplina. Pois a relação entre as nossas crenças, desejos e intenções, por um lado, e os movimentos executados pelo nosso corpo, por outro – relação que a filosofia da acção procura esclarecer – pode bem ser vista como um caso particular da relação mente-corpo, de que se ocupa a filosofia da mente. A relação com a metafísica é também próxima, pelo menos se entendermos por esta o estudo da questão de saber que coisas são reais e o que é isso, a realidade. Basta recordar que, na lista das dez categorias de Aristóteles, a acção estava incluída. Isso significa que o mundo é feito, não apenas de substâncias, qualidades, quantidades e relações, mas também de acções. Precisamos então de saber que tipo de coisa é uma acção. Com a filosofia da linguagem, a relação já é mais remota, embora eu a ache especialmente interessante, se for explorada em duas direcções: por um lado, procurando desenvolver a observação de que falar é um modo especial de agir e, por isso, na prática, a interpretação linguística não está desligada da interpretação do comportamento; e, por outro, procurando analisar o modo como falamos de acções – descrevendo-as, prevendo-as, explicando-as – para descobrir as concepções que aí estão implícitas.
 
Na sua conferência parece ter defendido a tese de que a acção de levantar o braço é o conjunto ou sequência de movimentos físicos de um agente e que não é o modo como descrevemos o que se passa que faz esses movimentos físicos ser ou não ser uma acção. Mas como podemos falar nós de um agente, e portanto de uma acção, a não ser através de alguma descrição que envolva a atribuição de intenções a alguém? Podemos, por exemplo, dizer que, quando estou a espirrar, o conjunto de movimentos físicos que constituem o meu espirro é uma acção? Porquê?
 
É uma óptima pergunta, que me permite clarificar um pouco o que afirmei na conferência. No essencial, defendi a tese de Davidson segundo a qual as acções não são universais (por isso, a rigor, nunca ninguém faz duas vezes a mesma coisa), mas antes particulares espácio-temporalmente localizados (e, por isso, literalmente irrepetíveis). À pergunta de Wittgenstein, esta tese responde que não há qualquer elemento adicional que transforme o movimento do braço numa acção minha de erguer o braço. Se considerarmos apenas a ontologia, a minha acção é o movimento do braço. Mas, perante isto, muita gente reage protestando: «Nem sempre! Pois o braço pode mover-se sem que eu o mova.» Repare agora como este protesto viola o princípio de que as acções são particulares: se as acções são particulares irrepetíveis, a questão do «sempre» não pode colocar-se; este movimento do meu braço que estão agora a observar é uma acção minha, outros movimentos semelhantes do meu braço podem não ser acções minhas. A questão seguinte é: o que é que distingue uns dos outros – os movimentos que são acções minhas daqueles que o não são? Ou, em geral, o que é que distingue uma acção minha de um simples acontecimento que envolve o meu corpo? É uma interrogação fundamental, para a qual não conheço nenhuma resposta completamente satisfatória. O tipo de resposta que me parece ir na direcção certa é: os acontecimentos que são acções minhas são acontecimentos causados por intenções que os justificam racionalmente. Repare que menciono a intenção como causa da acção, e não como seu elemento constituinte. Por isso, concordo consigo que um movimento só é uma acção se for causado por uma intenção. Mas a acção não é o movimento mais a intenção. A acção é o movimento. A intenção é a sua causa.
 
Há quem defenda que os problemas da filosofia da acção não têm um carácter suficientemente intuitivo para serem discutidos pelos estudantes do secundário. Concorda? Porquê?
 
Não, não concordo. Veja, por exemplo, o problema de Wittgenstein que eu mencionei na conferência. Sempre que levanto o meu braço, o meu braço levanta-se, mas pode acontecer que o meu braço se levante sem que seja eu a levantá-lo. Isto parece indicar que há algo mais que está presente naquela acção, para além do simples movimento do braço. Que elemento adicional será esse? Um acto de vontade? Se sim, que relação existe entre esse acto e o movimento do braço? Este problema é central, e não me parece nada que seja mais abstracto, ou mais inacessível, do que outros problemas tratados no secundário. Aliás, uma das vantagens da filosofia da acção é a facilidade que há em arranjar exemplos interessantes que permitem ilustrar os problemas de um modo bastante intuitivo. Veja o caso da relação da acção com os seus efeitos. Posso introduzir o problema por meio de uma história simples. Se envio uma carta insultuosa a alguém e o destinatário só a recebe e lê dois anos depois, tendo eu morrido entretanto, quando é que o insultei? Posso insultar uma pessoa antes de ela ser insultada? Ou posso insultar uma pessoa (e, em geral, realizar acções neste mundo) depois de eu ter morrido? 
 
Em sua opinião, por que razão a filosofia da acção não é estudada nos cursos de filosofia das nossas universidades? Acha que isso se justifica?
 
A tendência é para que as coisas mudem, à medida que o vasto trabalho existente em filosofia da acção vai sendo mais conhecido. O novo plano de estudos da licenciatura em filosofia da Universidade de Évora, por exemplo, já inclui uma disciplina de filosofia da acção.
 
Quem quiser estudar filosofia da acção, que filósofos deve começar por ler ou estudar?
 
Para quem quer mesmo começar, aqui vão algumas sugestões. Comece pelas entradas “Action” da Routledge Encyclopedia of Philosophy (escrita por Jennifer Hornsby) e da Stanford Encyclopedia of Philosophy (escrita por George Wilson). Depois, procure um livro de introdução à filosofia da acção, como o do espanhol Carlos J. Moya, por exemplo. Finalmente, lance-se a uma antologia de ensaios de filosofia da acção, como a que Alfred R. Mele editou para a Oxford University Press. 


quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Wittgenstein e o relativismo

Poderíamos continuar a acumular evidências como as apresentadas para validar a ideia da Revolução Científica, mas muitos estudiosos continuariam a não se sentir convencidos, nem capazes de serem convencidos. A ansiedade que agora perturba os historiadores quando lêem as palavras «científica», «revolução», «moderno» e (a pior de todas) «progresso» em estudos de ciência natural do século XVII, revela não só o medo da linguagem anacrónica. É também um sintoma de uma crise intelectual muito maior, que se expressou num recuo generalizado perante todas as grandes narrativas. O problema das grandes narrativas, diz-se, é que elas privilegiam uma perspetiva sobre outra; e a alternativa é um relativismo que mantém que todas as perspetivas são igualmente válidas. 

Os argumentos mais influentes a favor do relativismo provêm da filosofia de Ludwig Wittgenstein (...). Foi só no final dos anos cinquenta, a seguir à publicação de Investigações Filosóficas, em 1953, que os argumentos inspirados em Wittgenstein começaram a transformar a história e a filosofia da ciência. A sua influência já pode ver-se, por exemplo, em A Estrutura das Revoluções Científicas. A partir daí passou a ser vulgar afirmar-se que Wittgenstein demonstrara que a racionalidade era, no seu todo, culturalmente relativa: a nossa ciência pode ser diferente da dos antigos romanos mas não temos fundamento para afirmar que era melhor, porque o mundo deles era absolutamente diferente do nosso. Não há um padrão que permita comparar os dois. A verdade, segundo a doutrina de Wittgenstein de que o significado é o uso, é a que nós escolhemos; ela exige um consenso social mas não a correspondência entre aquilo que dizemos e o mundo como ele é.  

A primeira vaga de relativismo foi mais tarde complementada por outras tradições intelectuais profundamente diferentes: a filosofia linguística de J. L. Austin, o pós-estruturalismo de Michel Foucault, o pós-modernismo de Jacques Derrida e o pragmatismo de Richard Rorty. A expressão «a viragem linguística» é muitas vezes usada para indicar todas essas diferentes tradições, porque elas partilham um sentido comum, como o explicitou Wittgenstein, em que «os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo». Como veremos, grande parte dos debates sobre a Revolução Científica provêm das ramificações desta perspetiva.

David Wootton, A Invenção da Ciência. Temas e Debates, 2017, pp. 60-61.               

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Determinismo não é fatalismo

É frequente confundir-se o determinismo radical com o fatalismo. Mas são coisas diferentes, ainda que se chame determinismo teológico a certas formas de fatalismo.

O determinismo é a perspectiva de que todos os acontecimentos resultam das leis da natureza (que, sendo leis, são universais) e de causas particulares anteriores (os acontecimentos anteriores ou circunstâncias, a que também se chama condições iniciais).
 
Por sua vez, o fatalismo é a perspectiva de que tudo está predestinado, aconteça o que acontecer. Isto significa que os eventos anteriores (as causas) e as leis da natureza não têm qualquer papel explicativo do que acontece. Portanto, o fatalismo não precisa da causalidade para nada, ao contrário do determinismo. Daí que o fatalismo precise de algum predestinador sobrenatural que substitua a causalidade natural.

Eis uma maneira simples de ilustrar a diferença entre determinismo e fatalismo.


É verdade que há pontos de contacto entre o determinismo radical e o fatalismo. O principal aspecto em comum é a rejeição do livre-arbítrio. Em todo o caso, as diferenças são suficientemente evidentes para que a generalidade dos deterministas radicais rejeitem liminarmente o fatalismo.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Dez boas canções pop-rock de 2024

Estas foram as 10 canções pop-rock de 2024 que me ficaram na memória (playlist abaixo). Claro que deu para ouvir apenas uma pequeníssima fracção do que foi produzido no ano que terminou. São sobretudo canções pop, mais do que rock, talvez porque encontro canções mais inventivas e interessantes na música pop do que propriamente no rock, que parece estar a envelhecer rapidamente. 

Talvez nem todas estas 10 canções sejam inesquecíveis. Por exemplo, o timbre do cantor dos suecos Kite pode tornar-se algo irritante após várias audições, assim como soa algo cansativa a guitarra de John Squire (o excelente guitarrista dos saudosos Stone Roses), ao contrário da voz de Liam Gallagher, que continua fantástica. Estas duas canções estão uns furos abaixo das restantes. 

Os álbuns de que estas canções fazem parte nem sempre são grande coisa, como é o caso de All Born Screaming, de St. Vincent, bastante fraquinho. É, de resto, curioso verificar que ela tem várias canções brilhantes e não consegue fazer um único álbum notável. É a mania de querer soar constantemente estranha e disruptiva. Em contrapartida, o álbum Charm, de Clairo, é bom do princípio ao fim. É uma espécie de versão pop do jazz de fusão de Annete Peacock. E há que realçar o surpreendente Nick Cave, que faz cada vez melhor música. Longe vão os tempos de juventude, em que Cave se perdia em vacuidades musicais, como as dos Birthday Party (sim, sim, era um murro no estômago, como se isso fosse uma categoria estética!). Wild God é, sem dúvida do melhor de 2024. E destaco ainda os Lo Moon, que trazem reminiscências dos esquecidos Bread, mas para melhor.

Registe-se ainda o regresso dos alemães Propaganda e também dos A Certain Radio. É agora a pop, com um toque de electrónica, a mostrar que não está esgotada. 

Rock and Roll is not dead, dizem. Certo, mas só porque tem andado a receber oxigénio da pop.  

domingo, 19 de janeiro de 2025

O musicólogo da mathesis universalis

Musicae Compendium (Compêndio de Música) foi o primeiro livro que escreveu. E foi, afinal, o primeiro passo do ambicioso projecto que viria a ser designado de mathesis universalis. Lá se tenta mostrar como a união da matemática com a mecânica conseguem despertar certas paixões da alma. 

Nasceu em França, viveu vários anos na Holanda e morreu na Suécia. Em pouco mais de 50 anos de vida conseguiu revolucionar o pensamento filosófico. Mas licenciou-se em direito, não em filosofia. A sua mãe, Jeanne, faleceu quando ele era uma criança e o seu pai, Joachim, foi um parlamentar. Apesar de nunca ter casado, foi pai da menina Francine (uma filha ilegítima, como se dizia então), que morreu aos 5 anos de idade, causando-lhe o maior desgosto da sua vida.

De resto, foi um oficial militar orgulhoso, apesar de não ter chegado a combater. Também dava muita importância ao modo de vestir e preferia a companhia dos homens de negócios aos académicos e eruditos. O seu inimigo letal foi o rigoroso Inverno de Estocolmo, que o matou com uma pneumonia, em 1650. E foi assim que a rainha Cristina ficou sem o mestre particular de filosofia, que a muito custo ela convencera a rumar à Suécia.

Poucos sabem que ele escreveu sobre música. No entanto, o seu compêndio influenciou o célebre compositor Jean-Philippe Rameau, que também escreveu um Tratado da Harmonia Reduzido aos seus Princípios Naturais. Por outro lado, o compêndio foi criticado pelo filósofo e compositor Jean-Jacques Rousseau, o que não é de espantar, tendo em conta que Rousseau tinha a tendência para desprezar tudo o que não brotasse da sua mente brilhante. 

Claro que a produção posterior ao Compêndio acabou por ofuscar irremediavelmente esta pequena obra de estreia. E assim se tem mantido na penumbra. Contudo, não deixa de ser a primeira peça da tal mathesis universalis.

domingo, 15 de dezembro de 2024

O idealista antimetafísico

Poucos nomes foram tão importantes para a estética e filosofia da arte da primeira metade do século XX como o de Benedetto Croce (1866-1952). Foi este filósofo, historiador e político napolitano (embora oriundo de uma pequena vila dos Apeninos), que procurou uma sustentação filosoficamente mais robusta para a perspectiva expressivista da arte anteriormente esboçada por Tolstói e que, depois de Croce, seguiu numa direcção bem diferente da do escritor e ensaísta russo. A filosofia da arte de Collingwood, para dar o exemplo mais notório, é claramente influenciada pelo expressivismo de Croce.


O expressivismo pode ser genericamente descrito como a perspectiva de que os artistas, sejam eles poetas, pintores, escultores, músicos, actores ou bailarinos, são directamente inspirados por experiências emocionais pessoais que despertam as suas habilidades criativas para estimularem nos outros (usando palavras, pincéis e tinta, bronze, sons, movimentos, etc.) a emoção por eles sentida.  

Mas qual foi a novidade do expressivismo de Croce? Em primeiro lugar, a teoria estética de Croce é um dos aspetos centrais da sua filosofia idealista, de inspiração hegeliana, segundo a qual a filosofia nada mais é do que filosofia do espírito (ou da mente). E depois acaba por explicar, de forma relativamente simples e sem as complexidades do sistema filosófico hegeliano, como responder de forma coerente aos problemas da natureza, da função e do valor da arte, fazendo descer o idealismo à terra. Tanto que Croce se assume resolutamente como antimetafísico, associando a metafísica a uma espécie de reflexão religiosa, o que curiosamente o aproxima da ideia positivista da metafísica. Estamos, pois, perante, uma teoria da arte idealista e, segundo o próprio, antimetafísica. 

O sistema idealista de Croce tem a seguinte configuração.

A ideia central de Croce é que a arte é intuição. E o que confere unidade e coerência à intuição é o sentimento intenso. Assim, a intuição é a expressão do sentimento intenso. Por isso, Croce diz que a intuição é expressão.

Uma das preocupações de Croce acerca da arte era mostrar claramente aquilo que ela não é, contrariando algumas ideias comuns. Assim, a arte não é um facto físico. Basta notar que há mais numa pintura do que pigmentos dispostos na tela ou em outra superfície. Em certo sentido, é mesmo possível que a obra de arte exista apenas na mente do artista e que todos sejamos artistas, ainda que só alguns contribuam para o desenvolvimento das chamadas belas-artes. A arte também não é algo utilitário, mesmo quando é encarada como um investimento, pois encará-la como investimento é tomá-la apenas como mercadoria e não enquanto arte. Mais, a arte não tem qualquer preocupação prática, pelo que nem sequer o prazer por ela proporcionado é relevante. A arte também não é moral, dado que ela não tem origem num acto de vontade, mas sim na intuição. Por fim, sendo intuição (ou expressão), a arte também não é conhecimento conceptual, até porque a arte não distingue entre o que é real e o que é irreal, nem a verdade da mera aparência. Ela é pura imagem de que a fantasia não pode ser excluída, não se ocupando do mundo à volta, pois é na imagem sem qualquer referência à realidade ou irrealidade que a intuição se torna expressão, isto é, se torna verdadeiramente intuição. A arte é, sim, uma forma de conhecimento intuitivo e não conceptual ou não-lógico.

Muitos poderão pensar que Croce não passa de mais um vulto obscuro da filosofia da primeira metade do século XX, mas a verdade é que, mesmo noutras áreas da filosofia, como no pensamento político e historiográfico, ele foi muito influente. Apesar de se afirmar como liberal anti-fascista e anti-comunista, ele influenciou fortemente Antonio Gramsci, um filósofo político comunista, mas também Giovanni Gentile, um filósofo defensor do fascismo, com o qual veio a cortar relações pessoais. Croce, foi até nomeado por 16 vezes para a lista final de candidatos ao Prémio Nobel da Literatura, apesar de nunca o ter vencido. Diga-se, já agora, que houve quem tivesse sido nomeado mais vezes sem o ter conseguido, como o poeta inglês W. H. Auden, que foi nomeado 19 vezes, e o também inglês Graham Greene, que foi nomeado 26 vezes. 


terça-feira, 26 de novembro de 2024

O que tem de ser tem muita força?

O mais recente livro do biólogo e neurocientista Robert Sapolsky começa assim, com esta imagem, que visa resumir o que aí se defende. 

O título do livro (sem o subtítulo) tem apenas uma palavra. Pergunta para quem o desconhece: Qual será o título?

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

A ciência está mesmo em crise

Que a ciência está em crise é um facto inegável, diz a controversa cientista Sabine Hossenfelder. Pelo menos é o que se passa na investigação sobre os fundamentos da física, área de investigação de Hossenfelder. E o pior, garante ela no seu canal do YouTube, é que nem sequer se vislumbra qualquer sinal de progresso nos próximos tempos. 

Mas porquê? A resposta de Hossenfelder é que, desde há mais de 50 anos, os físicos têm tentado fazer progressos recorrendo a métodos que têm falhado sucessivamente, sem sequer se admitir a possibilidade de tais métodos serem simplesmente errados. É a insistência nesses métodos que tem impedido a auto-correcção necessária ao avanço da ciência. 

Mas que métodos são esses? Hossenfelder afirma que se trata de métodos baseados simplesmente na especulação matemática, e na criação de modelos matemáticos que não são testáveis, como é o caso das teorias das cordas, dos multiversos, da super-simetria e da inflação, que Hossenfelder admite serem interessantes, mas não científicas. Trata-se, considera ela, de pseudociência.

O mais grave é que o actual impasse da ciência é, afirma Hossenfelder, um problema sistémico, causado pela maneira como a investigação académica tem sido organizada, a qual assenta no reforço comunitário decorrente do modo como a investigação está a ser financiada. Isso leva os cientistas a optar pela investigação com maior garantia de financiamento e a arriscar pouco, o que tem gerado um fenómeno de auto-replicação e de demasiada especulação pseudocientífica. Por isso, ela diz confiar cada vez menos na ciência. Não porque haja algo melhor para a substituir, mas porque a ciência está simplesmente doente. E isto não acontece apenas no domínio dos fundamentos da física, mas em praticamente todas as áreas científicas, em que a enorme quantidade de investigação e de investigadores actuais não corresponde a um maior número de descobertas substanciais. Como mostra abundantemente noutro vídeo do seu canal, há 50 anos conseguiam-se muito mais resultados científicos substanciais com muitíssimos menos cientistas. A ciência estagnou e algo vai muito mal...

Para quem torce o nariz ao que esta cientista diz, o melhor mesmo é ver os vídeos que todas as semanas publica no seu canal. Em minha opinião, é provavelmente o melhor canal do YouTube: informativo, provocador, corajoso e também humorístico. Tudo isto pode ser confirmado neste vídeo.

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Uma suave brisa para aconchegar mentes melancólicas

VOCES8: The Saddest Noise from 'The Lost Birds' by Christopher Tin

Quem procura uma beleza despojada e tranquila, mas também esperançosa, tem nas gravações do grupo vocal inglês VOCES8 um bom ponto de partida. Como, por exemplo, esta interpretação de The Saddest Noise, do jovem compositor americano de origem chinesa Christopher Tin. A orquestra é dirigida pelo próprio compositor.

As interpretações de música coral do grupo VOCES8, tanto de compositores antigos como de contemporâneos (de Allegri, a Bruckner, Dvorak e Sibelius, e de Fauré, a Billy Joel e Ola Gjeilo) são sempre belas e cativantes. Vale a pena confirmar no YouTube, onde se encontram interpretações ao vivo deste grupo excelente.