quarta-feira, 25 de junho de 2025

Amor, amor... e mais amor

Jean Vignaud, Abelardo e Heloísa surpreendidos por Fulbert (1819)

Se levarmos a sério o que as pessoas dizem valorizar acima de tudo, o amor é das coisas mais importantes das nossas vidas, senão mesmo a mais importante. Poucos se atrevem, como Nietzsche, a desvalorizar o amor, embora ele o tenha feito em relação a certas concepções comuns do amor, não ao que ele considera ser o amor autêntico.

Mas o que é, afinal, o verdadeiro amor?
 
Esta pergunta pode ser enganadora, pois pressupõe que há apenas um tipo de amor. Os antigos gregos já usavam diferentes termos — eroságape e philia — para falar do que nós dizemos ser amor, concebendo diferentes tipos de amor. Mas, dir-se-á, mesmo que haja diferentes tipos de amor, deve haver algo comum a todas as formas de amor: talvez seja um mesmo tipo de sentimento, ou um objectivo idêntico, ou o mesmo tipo de motivações. Se não houver uma natureza comum a todos os tipos de amor, por que razão usar o mesmo termo para coisas tão distintas?
 
Wittgenstein diria que aplicamos o mesmo conceito a coisas tão diferentes porque muitos dos nossos conceitos não têm limites definidos nem estáveis. Mas ele também acrescentaria que nem por isso temos de deixar de usar tais conceitos, ainda que os apliquemos a coisas tão diferentes, tal como usamos o conceito de jogo para coisas muitíssimo diferentes entre si: lutas (há competição) e paciências (não há competição), golfe (joga-se com bola) e corridas (não há bola), monopólio (jogo de tabuleiro) e corta-mato (joga-se no campo), sudoku (jogo solitário) e futebol (jogo colectivo), escalada (atividade física) e xadrez (atividade mental), esgrima (manejamento de instrumentos) e salto em comprimento (sem uso de instrumentos), corridas de cavalos (jogos com animais) e automobilismo (jogos motorizados), e assim por diante. 
 
Assim, mesmo que não sejamos wittgensteinianos, talvez não seja má ideia começarmos por aceitar a ambiguidade da pergunta «O que é o amor?» e, em vez de falarmos simplesmente do amor, especificarmos antes de que tipo de amor estamos a falar, de modo a não misturarmos tudo. 

Mas de que tipos de amor se pode falar? Há o chamado amor romântico (o eros dos gregos antigos); o amor divino e entre pais e filhos (o ágape dos gregos antigos); o amor pelo próximo e pelos nossos amigos (a philia dos gregos antigos); o amor por ideias, como as de verdade, de liberdade ou de pátria; o amor por lugares, como a terra onde se nasceu; o amor a Deus, para quem tem fé; e o amor-próprio, que uns consideram a forma mais pura de amor e outros uma expressão de narcisismo.

Tudo isso são coisas diferentes. Qualquer pessoa compreende que o amor entre duas pessoas apaixonadas é muito diferente do amor maternal, paternal e filial. Ainda assim, é geralmente o amor romântico que mais tem ocupado poetas, artistas, psicólogos e filósofos. O amor romântico, ou amor-paixão, é o que tem alimentado a arte e a literatura ocidentais. 

O ensaísta e filósofo suiço Denis de Rougemont defende, no seu interessante livro L'Amour et L'Occident, publicado no final dos anos 30 do século passado, que a literatura ocidental se alimenta da infeliz contradição, própria das sociedades ocidentais, entre o amor-paixão e a felicidade conjugal requerida pelo cristianismo. Daí que o adultério seja a principal expressão literária dessa contradição: «a julgar pelas nossas literaturas, o adultério parece uma das ocupações mais importantes a que se dedicam os ocidentais». Não é, pois, do amor realizado que se faz a boa literatura. O amor feliz não costuma dar boa literatura, ao contrário dos perigos da paixão amorosa ardente.
 
O amor romântico alimenta não apenas a literatura, mas todas as artes, no passado ou no presente. Como observou Frank Zappa, no mundo há mais música e canções sobre o amor do que sobre qualquer outro assunto. No entanto, também ele sublinhou que nem por isso o mundo se tornou um paraíso de felicidade amorosa. Talvez Rougemont tenha alguma razão e o amor romântico que encontramos na arte chamada ocidental, mais do que um modelo ou ideal a seguir, seja antes o reflexo da nossa condição cultural: a tensão entre o primitivismo místico da paixão abrasiva e a felicidade da comunhão conjugal cristã. 


Mas, podemos ao menos entender-nos sobre a natureza do próprio amor romântico? Mais uma vez, há quem garanta haver vários tipos de amor romântico. Stendhal, por exemplo, começa por discriminar, na sua obra De l'Amour, quatro tipos de amor: 1) o amor-paixão, dando como exemplos o amor da religiosa portuguesa pelo militar francês e o amor entre Heloísa e Abelardo; 2) o amor-prazer (amour-goût), que difere do anterior na medida em que, neste caso, tudo deve ser agradavelmente cor-de-rosa e o amante nunca perde o pé como acontece frequentemente no amor-paixão; 3) o amor físico, que surge bem cedo na juventude e é predominantemente sensual; 4) o amor-vaidade (amour de vanité), que é o amor cortês e galanteador, uma espécie de exibicionismo amoroso.

Em que ficamos, então? É possível encontrar algum elemento comum a estas expressões do amor romântico? Um mesmo tipo de sentimento? O mesmo tipo de desejo ou de disposição mental? Um certo tipo de motivação? E devemos procurar a resposta no âmbito da psicologia ou antes da filosofia?

Ao refletir sobre a natureza do tempo, Agostinho de Hipona perguntava no livro XI das suas Confissões: «O que é, pois o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar a quem me pergunta, já não sei». 

Será correcto dizer o mesmo sobre o amor?
 
 

sábado, 31 de maio de 2025

Nagel e a ilusão do reducionismo

Os filósofos partilham a fraqueza humana geral por explicações do que é incompreensível em termos adequados ao que é familiar e bem compreendido, embora em tudo diferente.

Como é que é ser um morcego?, 1974

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Epidemia de metáforas kitsch


As metáforas estão em alta. Sim, na literatura sempre estiveram. Na boa literatura, uma boa metáfora diz, muitas vezes, mais do que uma descrição exaustiva. E, além de ser mais elegante, tem quase sempre a vantagem de ser memorável. Isso ajuda imenso e é agradável.

Mas não é por isso que estão agora em alta; é antes por terem invadido o discurso banal quotidiano. Qualquer conversa se tornou demasiado seca e linear se não for polvilhada por umas quantas metáforas. Tudo bem. Só é pena que sejam tantas vezes as mesmas metáforas, tão batidas e pretensamente interessantes. Algumas tornaram-se uma verdadeira epidemia, tão previsíveis quanto irritantes. Pior, são quase sempre sobre o próprio falante, que as usa de modo indisfarçadamente autoelogioso e autocomplacente. E tão kitsch!

Veja-se quantas pessoas dizem querer pensar fora da caixa. Ficamos, assim, a saber que há multidões de pessoas criativas, que fazem questão de pensar de maneira diferente dos outros, capazes de ver o que mais ninguém descortina, e assim por diante. Todas igualmente criativas e irreverentes. Assim, o conteúdo da caixa há-de tornar-se um mistério e voltaremos a precisar urgentemente de quem consiga olhar para dentro dela. Claro que a conversa de se pensar fora da caixa é tantas vezes uma desculpa para não se ter o trabalho de estudar e de compreender o que mal se compreende e precisa de ser compreendido. Afinal, dentro da caixa deve encontrar-se o que de melhor já se conseguiu. A caixa foi enchendo à custa de muitas pessoas persistentes, estudiosas, cuidadosas, curiosas, mas também de algumas pessoas criativas. Essas foram, afinal, casos excepcionais. Mas agora já nos sentimos todos excepcionais, mesmo quando ignoramos o fundamental. Ok, talvez faça bem à saúde sentirmos-nos todos excepcionais. Mas, a ânsia de passarmos por seres excepcionais funciona, tantas vezes, como um apelo ao adorno da metáfora kitsch

Se aquele que se apresenta como criativo diz querer pensar fora da caixa, o que se apresenta como corajoso e ousado — que costuma ser o mesmo — diz querer sair da sua zona de conforto. E, ao querer sair da sua zona de conforto, acaba por entrar, de novo, na zona kitsch. Por que razão haverá tanta gente a querer sair da sua zona de conforto em vez de simplesmente fazer o que pode fazer bem, usando o conhecimento e a experiência adquiridos? Não é mais sensato, produtivo e preferível fazer uma coisa bem ao desperdício e desconforto de fazer outra mal? Para quê sair da sua zona de conforto? Para quê desperdiçar tempo e energias com o que não se sabe como fazer? Para aprender outras coisas? Muito bem, então basta dizer simplesmente que se quer aprender outras coisas. Isso tem a vantagem de nos poupar a mais uma metáfora kitsch. Mas porquê este apelo do discurso kitsch?

O que responder quando não se sabe a resposta? Fingir que se tem uma resposta, dizendo que essa é a pergunta de um milhão de dólares. E depois falar abundantemente da pergunta de um milhão de dólares. Pensando bem, as perguntas de um milhão de dólares são tantas, que podemos ganhar uma fortuna dando-lhes meias-respostas kitsch.

Claro que os verdadeiros intelectuais, os intelectuais profundos, não alinham nisto; não usam as metáforas da populaça. O seu discurso sofisticado evita a superficialidade quotidiana, procurando ir para lá do ruído do mundo, de modo a compreender a espessura dos dias. Este é todo um outro nível. E tive a sorte de, só na última semana, já me ter deparado mais de uma vez com o ruído do mundo, tendo também embatido na dita espessura dos dias. E não, não li nas crónicas do Pacheco Pereira.

Enfim, cada um com o seu kitsch. Eu também tenho o meu. A prova disso é este texto que me deu na cabeça escrever para mim próprio. Também tenho direito, caramba! 

domingo, 16 de março de 2025

De Wittgenstein a Dickie, via Suits


É bem conhecida a tese de Wittgenstein de que os conceitos não têm conteúdos precisos que possam ser captados por uma definição ou análise em termos de condições necessárias e suficientes. Se prestarmos atenção ao modo como aplicamos os conceitos, o seu uso mostra que, em geral, eles não têm fronteiras nítidas ou claramente delimitadas. Daí que a busca de definições seja, conclui Wittgenstein, uma tarefa condenada ao fracasso. Ele convida-nos a pensar no conceito de jogo e na enorme diversidade de jogos que há, desde jogos de tabuleiro a jogos com cartas, com bola, de corridas, torneios desportivos, etc. O que faz todas essas coisas serem jogos? Uma resposta tentadora é começar por reconhecer que «algo deve ser comum a todos os jogos, caso contrário não se chamariam jogos». Porém, Wittgenstein considera que partir desse princípio é começar mal. O que temos de fazer, diz ele, não é supor que há algo comum a todos os jogos, mas antes olhar para os diferentes jogos e ver se encontramos alguma característica comum a todos. Trata-se antes de olhar e ver, não de pensar. Ora, se olharmos com cuidado, não vemos coisa alguma que seja comum a todos os jogos, e só aos jogos. O conceito de jogo é, diz Wittgenstein, um conceito aberto e, como tal, indefinível. É aberto no sentido em que a sua correcta aplicação não está sujeita a qualquer requisito prévio, ou seja, não depende de condições necessárias e suficientes. Tudo o que vemos é uma rede de semelhanças variáveis entre as diferentes coisas às quais aplicamos esse conceito, isto é, uma teia instável de semelhanças familiares. Não dispomos, portanto, dos ingredientes de uma definição explícita.

 
Certo? Não, errado! Pelo menos, é o que sugere o filósofo americano Bernard Suits no seu maravilhoso livro A Cigarra Filosófica, cuja tradução portuguesa para a Gradiva se encontra esgotada. Suits não está interessado na questão da definição de conceitos em geral, mas apenas na possibilidade de haver uma definição adequada do conceito de jogo. A resposta de Suits é que o conceito de jogo não é aberto, havendo mesmo condições necessárias e conjuntamente suficientes para que algo seja um jogo. É, então, possível dar uma definição explícita, e verdadeira, do conceito de jogo — ou, mais precisamente, do que é jogar um jogo. O próprio avança com tal definição, desafiando-nos seguidamente a procurar contraexemplos. A versão abreviada da definição é a seguinte: um jogo é uma tentativa voluntária de superar obstáculos desnecessários.

Uma versão mais completa e informativa diz o seguinte: jogar um jogo é qualquer actividade que visa alcançar um estado de coisas específico usando unicamente as regras permitidas, as quais são voluntariamente aceites apenas por tornarem possível tal actividade.
 
Esta definição estabelece três condições necessárias, que são conjuntamente suficientes:

a) alcançar um estado de coisas específico. A esta condição Suits dá o nome de fim prelusório. Trata-se de estabelecer de antemão uma dada finalidade lúdica, que pode ser meter uma bola num buraco do chão (no golfe), alcançar o cume de uma montanha (no montanhismo), ser o primeiro a atravessar uma linha no chão (nas corridas de 100, 200 metros, etc.);
 
b) usar unicamente as regras permitidas. A esta condição Suits chama regras constitutivas. Sem regras não há jogo, pelo que elas fazem parte do próprio jogo. Assim, quando se joga golfe, não basta simplesmente meter a bola num buraco do chão (fim prelusório), pois é preciso cumprir regras que proíbem os meios mais eficientes de o alcançar: não se estará a jogar golfe se se meter a bola no buraco com a mão, que é a maneira mais eficiente de atingir o fim pretendido. É também por isso que ir de helicóptero para o cume da montanha não é fazer montanhismo; e que, numa corrida de 200 metros, também não dá atravessar a linha no chão, indo por um atalho que lhe permita correr menos 50 metros. Assim, as regras constitutivas proíbem os meios mais eficientes, prescrevendo meios ineficientes (para quê percorrer 200 metros para cortar a fita se posso fazê-lo percorrendo apenas 150?). Isso não significa, contudo, que não se tente seguir as regras constitutivas do modo mais eficiente;
  
c) aceitar voluntariamente apenas as regras permitidas. A esta condição Suits chama atitude lusória. Trata-se de o jogador ter a atitude psicológica adequada para poder jogar o jogo, o que impede qualquer tipo de batota ou de violação das regras constitutivas, as quais, apesar de arbitrárias, foram voluntariamente aceites, e sem o cumprimento das quais não estará verdadeiramente a jogar. Suits chama lusória a essa atitude, em vez de lúdica, porque se trata de coisas diferentes. A atitude lusória envolve o compromisso de cumprir regras constitutivas, ao passo que muitas actividades recreativas (lúdicas) não requerem a aceitação de quaisquer regras constitutivas.

Assim, qualquer jogo, e só os jogos, visam um certo tipo de finalidade, têm regras constitutivas que proíbem os meios mais eficientes de atingir esse fim, e requerem do jogador uma certa atitude. Poderá o conceito de arte requerer o mesmo tipo de condições?
 
Os filósofos da arte wittgensteinianos — como Morris Weitz, Paul Ziff e William Kennick — procuraram mostrar que o conceito de arte é também aberto, como o de jogo. Mas, tal como Wittgenstein não conseguiu convencer Suits, também os wittgensteinianos não conseguiram convencer outros filósofos da arte posteriores, como Maurice Mandelbaum, Arthur Danto e George Dickie.

Dickie não deixou, no entanto, de retirar importantes ensinamentos dos wittgensteinianos. Concorda com eles que, se olharmos com atenção, não encontraremos característica alguma que seja comum a todas as obras de arte, e só a elas. No entanto, isso não mostra que tais características não existam; apenas mostra que não podem ser detectadas pelo olhar. Talvez haja condições que não dependem do que encontramos ao olhar para os objectos de arte: por exemplo, uma certa atitude da parte de quem os produz ou os aprecia. Talvez seja preciso ter em conta o modo como certas pessoas tratam tais objectos em vez de olharmos directamente para os próprios objectos. Talvez não haja uma essência da arte e nenhuma coisa seja intrinsecamente arte, como sublinham os wittgensteinianos. Ainda assim, podemos aprender mais com o tipo de análise conceptual que Suits faz do que com os wittgensteinianos, caso haja algum paralelismo entre a definição que Suits dá do conceito de jogo e a que Dickie dá do conceito de arte. 

A definição — uma das versões — apresentada por Dickie é, abreviadamente a seguinte: algo é arte se, e só se, for um artefacto com um conjunto de aspectos que levaram alguém que actua em nome de uma certa instituição a propô-lo como candidato a apreciação

Parece que também esta definição inclui como condição necessária a tentativa de alcançar um certo fim (neste caso não é um fim prelusório, claro): algo ser apresentado como candidato a apreciação. E também podemos ver aqui regras constitutivas, nomeadamente a observação dos procedimentos institucionais por meio dos quais se confere o estatuto de candidato a apreciação a certos objectos. Por fim, para se pertencer a essa instituição, a que Dickie dá o nome de mundo da arte, há que ter a atitude adequada, que consiste em desempenhar um certo papel, seja o de artista, o de apresentador intermediário ou o de público da arte.

Será que o tipo de dificuldades que podem ser apontadas à definição de jogo dada por Suits poderá aplicar-se à definição de arte dada por Dickie?

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Compreender a acção humana

No ano de 2008 convidei Ricardo Santos, na altura professor de Lógica e de Filosofia Antiga na Universidade de Évora, para dar uma conferência para professores e alunos da minha escola sobre filosofia da ação. Fiz-lhe uma curta entrevista após a conferência, que publiquei na página do grupo de Filosofia da escola. Dado que essa página foi entretanto encerrada, e dado que as respostas do Professor Ricardo Santos se mantêm interessantes e esclarecedoras, decidi publicar aqui a parte da entrevista sobre o tema da conferência (havia outra parte sobre a filosofia e o seu ensino, que não incluo aqui apenas por uma questão de tamanho). Ricardo Santos, a quem renovo o meu agradecimento, é agora professor do departamento de Filosofia da Universidade de Lisboa.
 


O título da conferência que proferiu é "Compreender a Acção Humana", que, como esclareceu, é um tema da filosofia da acção e não, como por vezes se pensa, da ética. Em seu entender, a que se deve esta confusão?
 
Como procurei mostrar na parte inicial da conferência, o pensamento filosófico sobre questões que dizem respeito à acção humana, mas que são independentes da sua avaliação ética, tem uma origem muito antiga, estando claramente presente em autores como Platão e Aristóteles. Todavia, o reconhecimento da filosofia da acção como uma disciplina filosófica autónoma é relativamente recente: é algo que ocorre na filosofia anglo-americana no último terço do século vinte, muito em consequência de alguns dos últimos trabalhos de Wittgenstein e de pessoas por ele influenciadas, como Ryle, Anscombe, Kenny e outros. No meu caso particular, descobri esta nova disciplina quando estava a trabalhar sobre o problema da acrasia – essa forma de irracionalidade em que uma pessoa age de modo voluntário contra aquilo que ela própria julga ser o melhor – e li, num célebre artigo de Donald Davidson, que a acrasia devia ser tratada como um problema de filosofia de acção, e não de ética. É certo que, uma vez estabelecida a distinção, aplicamo-la retrospectivamente e, por isso, hoje escrevem-se livros sobre a filosofia da acção de Aristóteles, por exemplo, bem distintos dos que se escrevem sobre a sua teoria ética – quando ele próprio não fazia essa distinção. Portanto, respondendo à sua pergunta, penso que a confusão, quando ocorre, advém principalmente da relativa novidade da filosofia da acção como disciplina.
 
Há alguma relação ou afinidade especial entre a filosofia da acção e outras disciplinas filosóficas, como a ética, a filosofia da mente, a filosofia da linguagem e a metafísica, ou será que são disciplinas completamente independentes?
 
A autonomia disciplinar é relativa e não exclui a existência de relações de diversos tipos. Para um filósofo tendencialmente sistemático, que desenvolva trabalho em diversas disciplinas, é importante ter a noção de que a posição que adopta numa área pode condicionar o leque de soluções que ficam disponíveis para problemas pertencentes a outras áreas. No caso particular da filosofia da acção, parece-me que as relações privilegiadas são precisamente essas que indica (faltaria apenas acrescentar a teoria da decisão, mas esta não é estritamente filosófica). As relações com a ética são evidentes, já que os juízos éticos se contam certamente entre os factores que determinam, ou que pelo menos condicionam, as nossas decisões de agir deste ou daquele modo. A relação com a filosofia da mente é muito estreita, havendo até quem defenda que a filosofia da acção é uma sua subdisciplina. Pois a relação entre as nossas crenças, desejos e intenções, por um lado, e os movimentos executados pelo nosso corpo, por outro – relação que a filosofia da acção procura esclarecer – pode bem ser vista como um caso particular da relação mente-corpo, de que se ocupa a filosofia da mente. A relação com a metafísica é também próxima, pelo menos se entendermos por esta o estudo da questão de saber que coisas são reais e o que é isso, a realidade. Basta recordar que, na lista das dez categorias de Aristóteles, a acção estava incluída. Isso significa que o mundo é feito, não apenas de substâncias, qualidades, quantidades e relações, mas também de acções. Precisamos então de saber que tipo de coisa é uma acção. Com a filosofia da linguagem, a relação já é mais remota, embora eu a ache especialmente interessante, se for explorada em duas direcções: por um lado, procurando desenvolver a observação de que falar é um modo especial de agir e, por isso, na prática, a interpretação linguística não está desligada da interpretação do comportamento; e, por outro, procurando analisar o modo como falamos de acções – descrevendo-as, prevendo-as, explicando-as – para descobrir as concepções que aí estão implícitas.
 
Na sua conferência parece ter defendido a tese de que a acção de levantar o braço é o conjunto ou sequência de movimentos físicos de um agente e que não é o modo como descrevemos o que se passa que faz esses movimentos físicos ser ou não ser uma acção. Mas como podemos falar nós de um agente, e portanto de uma acção, a não ser através de alguma descrição que envolva a atribuição de intenções a alguém? Podemos, por exemplo, dizer que, quando estou a espirrar, o conjunto de movimentos físicos que constituem o meu espirro é uma acção? Porquê?
 
É uma óptima pergunta, que me permite clarificar um pouco o que afirmei na conferência. No essencial, defendi a tese de Davidson segundo a qual as acções não são universais (por isso, a rigor, nunca ninguém faz duas vezes a mesma coisa), mas antes particulares espácio-temporalmente localizados (e, por isso, literalmente irrepetíveis). À pergunta de Wittgenstein, esta tese responde que não há qualquer elemento adicional que transforme o movimento do braço numa acção minha de erguer o braço. Se considerarmos apenas a ontologia, a minha acção é o movimento do braço. Mas, perante isto, muita gente reage protestando: «Nem sempre! Pois o braço pode mover-se sem que eu o mova.» Repare agora como este protesto viola o princípio de que as acções são particulares: se as acções são particulares irrepetíveis, a questão do «sempre» não pode colocar-se; este movimento do meu braço que estão agora a observar é uma acção minha, outros movimentos semelhantes do meu braço podem não ser acções minhas. A questão seguinte é: o que é que distingue uns dos outros – os movimentos que são acções minhas daqueles que o não são? Ou, em geral, o que é que distingue uma acção minha de um simples acontecimento que envolve o meu corpo? É uma interrogação fundamental, para a qual não conheço nenhuma resposta completamente satisfatória. O tipo de resposta que me parece ir na direcção certa é: os acontecimentos que são acções minhas são acontecimentos causados por intenções que os justificam racionalmente. Repare que menciono a intenção como causa da acção, e não como seu elemento constituinte. Por isso, concordo consigo que um movimento só é uma acção se for causado por uma intenção. Mas a acção não é o movimento mais a intenção. A acção é o movimento. A intenção é a sua causa.
 
Há quem defenda que os problemas da filosofia da acção não têm um carácter suficientemente intuitivo para serem discutidos pelos estudantes do secundário. Concorda? Porquê?
 
Não, não concordo. Veja, por exemplo, o problema de Wittgenstein que eu mencionei na conferência. Sempre que levanto o meu braço, o meu braço levanta-se, mas pode acontecer que o meu braço se levante sem que seja eu a levantá-lo. Isto parece indicar que há algo mais que está presente naquela acção, para além do simples movimento do braço. Que elemento adicional será esse? Um acto de vontade? Se sim, que relação existe entre esse acto e o movimento do braço? Este problema é central, e não me parece nada que seja mais abstracto, ou mais inacessível, do que outros problemas tratados no secundário. Aliás, uma das vantagens da filosofia da acção é a facilidade que há em arranjar exemplos interessantes que permitem ilustrar os problemas de um modo bastante intuitivo. Veja o caso da relação da acção com os seus efeitos. Posso introduzir o problema por meio de uma história simples. Se envio uma carta insultuosa a alguém e o destinatário só a recebe e lê dois anos depois, tendo eu morrido entretanto, quando é que o insultei? Posso insultar uma pessoa antes de ela ser insultada? Ou posso insultar uma pessoa (e, em geral, realizar acções neste mundo) depois de eu ter morrido? 
 
Em sua opinião, por que razão a filosofia da acção não é estudada nos cursos de filosofia das nossas universidades? Acha que isso se justifica?
 
A tendência é para que as coisas mudem, à medida que o vasto trabalho existente em filosofia da acção vai sendo mais conhecido. O novo plano de estudos da licenciatura em filosofia da Universidade de Évora, por exemplo, já inclui uma disciplina de filosofia da acção.
 
Quem quiser estudar filosofia da acção, que filósofos deve começar por ler ou estudar?
 
Para quem quer mesmo começar, aqui vão algumas sugestões. Comece pelas entradas “Action” da Routledge Encyclopedia of Philosophy (escrita por Jennifer Hornsby) e da Stanford Encyclopedia of Philosophy (escrita por George Wilson). Depois, procure um livro de introdução à filosofia da acção, como o do espanhol Carlos J. Moya, por exemplo. Finalmente, lance-se a uma antologia de ensaios de filosofia da acção, como a que Alfred R. Mele editou para a Oxford University Press. 


quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Wittgenstein e o relativismo

Poderíamos continuar a acumular evidências como as apresentadas para validar a ideia da Revolução Científica, mas muitos estudiosos continuariam a não se sentir convencidos, nem capazes de serem convencidos. A ansiedade que agora perturba os historiadores quando lêem as palavras «científica», «revolução», «moderno» e (a pior de todas) «progresso» em estudos de ciência natural do século XVII, revela não só o medo da linguagem anacrónica. É também um sintoma de uma crise intelectual muito maior, que se expressou num recuo generalizado perante todas as grandes narrativas. O problema das grandes narrativas, diz-se, é que elas privilegiam uma perspetiva sobre outra; e a alternativa é um relativismo que mantém que todas as perspetivas são igualmente válidas. 

Os argumentos mais influentes a favor do relativismo provêm da filosofia de Ludwig Wittgenstein (...). Foi só no final dos anos cinquenta, a seguir à publicação de Investigações Filosóficas, em 1953, que os argumentos inspirados em Wittgenstein começaram a transformar a história e a filosofia da ciência. A sua influência já pode ver-se, por exemplo, em A Estrutura das Revoluções Científicas. A partir daí passou a ser vulgar afirmar-se que Wittgenstein demonstrara que a racionalidade era, no seu todo, culturalmente relativa: a nossa ciência pode ser diferente da dos antigos romanos mas não temos fundamento para afirmar que era melhor, porque o mundo deles era absolutamente diferente do nosso. Não há um padrão que permita comparar os dois. A verdade, segundo a doutrina de Wittgenstein de que o significado é o uso, é a que nós escolhemos; ela exige um consenso social mas não a correspondência entre aquilo que dizemos e o mundo como ele é.  

A primeira vaga de relativismo foi mais tarde complementada por outras tradições intelectuais profundamente diferentes: a filosofia linguística de J. L. Austin, o pós-estruturalismo de Michel Foucault, o pós-modernismo de Jacques Derrida e o pragmatismo de Richard Rorty. A expressão «a viragem linguística» é muitas vezes usada para indicar todas essas diferentes tradições, porque elas partilham um sentido comum, como o explicitou Wittgenstein, em que «os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo». Como veremos, grande parte dos debates sobre a Revolução Científica provêm das ramificações desta perspetiva.

David Wootton, A Invenção da Ciência. Temas e Debates, 2017, pp. 60-61.               

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Determinismo não é fatalismo

É frequente confundir-se o determinismo radical com o fatalismo. Mas são coisas diferentes, ainda que se chame determinismo teológico a certas formas de fatalismo.

O determinismo é a perspectiva de que todos os acontecimentos resultam das leis da natureza (que, sendo leis, são universais) e de causas particulares anteriores (os acontecimentos anteriores ou circunstâncias, a que também se chama condições iniciais).
 
Por sua vez, o fatalismo é a perspectiva de que tudo está predestinado, aconteça o que acontecer. Isto significa que os eventos anteriores (as causas) e as leis da natureza não têm qualquer papel explicativo do que acontece. Portanto, o fatalismo não precisa da causalidade para nada, ao contrário do determinismo. Daí que o fatalismo precise de algum predestinador sobrenatural que substitua a causalidade natural.

Eis uma maneira simples de ilustrar a diferença entre determinismo e fatalismo.


É verdade que há pontos de contacto entre o determinismo radical e o fatalismo. O principal aspecto em comum é a rejeição do livre-arbítrio. Em todo o caso, as diferenças são suficientemente evidentes para que a generalidade dos deterministas radicais rejeitem liminarmente o fatalismo.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Dez boas canções pop-rock de 2024

Estas foram as 10 canções pop-rock de 2024 que me ficaram na memória (playlist abaixo). Claro que deu para ouvir apenas uma pequeníssima fracção do que foi produzido no ano que terminou. São sobretudo canções pop, mais do que rock, talvez porque encontro canções mais inventivas e interessantes na música pop do que propriamente no rock, que parece estar a envelhecer rapidamente. 

Talvez nem todas estas 10 canções sejam inesquecíveis. Por exemplo, o timbre do cantor dos suecos Kite pode tornar-se algo irritante após várias audições, assim como soa algo cansativa a guitarra de John Squire (o excelente guitarrista dos saudosos Stone Roses), ao contrário da voz de Liam Gallagher, que continua fantástica. Estas duas canções estão uns furos abaixo das restantes. 

Os álbuns de que estas canções fazem parte nem sempre são grande coisa, como é o caso de All Born Screaming, de St. Vincent, bastante fraquinho. É, de resto, curioso verificar que ela tem várias canções brilhantes e não consegue fazer um único álbum notável. É a mania de querer soar constantemente estranha e disruptiva. Em contrapartida, o álbum Charm, de Clairo, é bom do princípio ao fim. É uma espécie de versão pop do jazz de fusão de Annete Peacock. E há que realçar o surpreendente Nick Cave, que faz cada vez melhor música. Longe vão os tempos de juventude, em que Cave se perdia em vacuidades musicais, como as dos Birthday Party (sim, sim, era um murro no estômago, como se isso fosse uma categoria estética!). Wild God é, sem dúvida do melhor de 2024. E destaco ainda os Lo Moon, que trazem reminiscências dos esquecidos Bread, mas para melhor.

Registe-se ainda o regresso dos alemães Propaganda e também dos A Certain Radio. É agora a pop, com um toque de electrónica, a mostrar que não está esgotada. 

Rock and Roll is not dead, dizem. Certo, mas só porque tem andado a receber oxigénio da pop.