quarta-feira, 17 de abril de 2024

Lombadas rebeldes

Vejam-se as lombadas destes livros. Quando olhamos para eles nas estantes das livrarias, temos de ler os títulos das lombadas sempre de cima para baixo, sempre na mesma direcção. Seja qual for a editora, é sempre assim.

Que monotonia! E o pior é que o mesmo se passa com os discos compactos, seja qual for a editora e o género musical.

Vejam-se agora as lombadas dos livros editados em Portugal. 


Pelo menos aqui não temos de inclinar a cabeça sempre para o mesmo lado. E nem sequer depende da editora, pois há livros da mesma editora (e até da mesma colecção) que ora se lêem num sentido ora se lêem no outro. A saudável rebeldia da edição portuguesa até nas lombadas se vê. Haja diversidade!


terça-feira, 16 de abril de 2024

Pensar depressa: edições a eito

Vi ontem numa livraria Pensar Depressa e Devagar com um autocolante na capa a anunciar que se tratava da 14.ª edição do livro de Daniel Kahneman. Pensei para comigo: dado que já tenho uma edição anterior, valerá a pena comprar esta nova edição?

No entanto, pareceu-me muitíssimo improvável que um livro originalmente publicado em 2011 tenha tantas edições, tendo em conta que uma nova edição de um livro já existente é uma nova versão desse livro, ou seja, é uma alteração do conteúdo da edição anterior, seja porque algumas partes foram entretanto reescritas, acrescentadas ou eliminadas. 

Claro que, se houver novas secções ou partes do livro reformuladas, pode valer a pena adquirir a nova edição, mesmo que se possua uma edição anterior. Podemos, por exemplo, querer citar num artigo académico uma passagem desta edição e que não se encontra na edição anterior. E mesmo que esteja em ambas, poderá agora encontrar-se numa página diferente, pelo que, para se poder confirmar se a citação é correta, é relevante indicar se estamos a citar a 4.ª edição ou a 14.ª edição.   

Mas será que se trata realmente da 14.ª edição do livro de Kahneman, como se anuncia no autocolante? Se não for isso, que informação está a ser dada? Talvez se trate simplesmente de mais uma reimpressão. Nesse caso, ficamos a saber também que nada no livro foi alterado, salvo uma ou outra gralha pontual, entretanto detectada. Assim, quem já tem a edição original poderá concluir que estaria a esbanjar dinheiro ao comprar a 14.ª reimpressão.

Bem vistas as coisas, talvez não seja incoerente usar o termo «edições» em vez de «reimpressões» (ou «republicações»), pois esse é, entre nós, o negócio dos editores, ao passo que em Inglaterra, por exemplo, é o negócio dos publishers. Afinal, os portugueses editam ao passo que os ingleses publicam. Sendo assim, parece lógico os portugueses chamarem edições ao que os ingleses chamam republicações (ou reimpressões). Tudo bem, estamos esclarecidos.

Só que... qual é, então, a relevância de anunciar que esta é a 14.ª edição, sabendo nós que se trata exatamente da mesma coisa que encontramos na 4.ª edição? Tal informação serve para quê?

Ah, sim, é para dizer que o livro se tem vendido muito e que, portanto, há boas razões para aqueles que ainda não o compraram o comprem agora. Tudo bem, afinal é só publicidade.

Só que... é bom que não se trate de publicidade enganosa. E ela corre o risco de ser enganosa se não se indicar algures qual a tiragem de cada reimpressão. Basta pensar que um livro com apenas uma impressão de dez mil exemplares pode vender mais do que outro com dez reimpressões de oitocentos exemplares. Assim, pode-se anunciar que o livro já tem cinco, dez ou quinze «edições» e, no entanto, ele não vender assim tanto. Portanto, nenhuma informação relevante nos estará a ser dada quando apenas se anuncia que é a 14.ª «edição» do livro. Seria mais correcto dizerem quantos exemplares já foram vendidos. Mas, ao que parece, há quem não queira saber de números mas se impressione com tanta «edição».

 

domingo, 24 de março de 2024

Quando há arte!

Foi com muito gosto que contribuí para o livro de homenagem à saudosa professora Carmo d'Orey, uma das pessoas com quem mais aprendi a reflectir sobre a arte e cuja obra A Exemplificação na Arte é, apesar do seu subtítulo, muito mais do que um estudo sobre Nelson Goodman, com quem ela também trabalhou. Trata-se, em minha opinião, de uma das mais relevantes obras de filosofia da arte jamais escritas em português: pelo inigualável rigor filosófico, pela sua abrangência e pela enorme familiaridade com os diferentes universos da arte. Diria mesmo que, naquelas novecentas páginas, não se encontra um único parágrafo dispensável. 

O livro de homenagem à professora Carmo d'Orey foi organizado por Vítor Guerreiro (U. Porto), Carlos João Correia (U. Lisboa) e Vítor Moura (U. Minho) e conta com dezasseis ensaios, incluindo o meu. Mas todos eles escritos por autores bem mais credenciados do que eu. 


O meu ensaio é sobre o estatuto artístico das falsificações de arte, justamente intitulado «Arte e contrafacção: valor estético e estatuto das falsificações». Começa assim:

Ao esclarecer a distinção introduzida por Goodman entre artes autográficas e artes alográficas, Carmo D’Orey recorre ao seguinte exemplo ficcional: 

Se pusermos um número infinito de macacos a escrever à máquina durante um infinito período de tempo, algum deles acabará por escrever Os Lusíadas sem que falte uma vírgula ou um ponto. Se os pusermos a tocar piano, algum acabará por tocar a Sonata ao Luar sem uma única nota falsa. Mas se os pusermos a pintar, com todos os materiais necessários, nenhum deles pintará a Gioconda, embora algum deva fazer uma pintura tão semelhante que, pelo simples olhar, os especialistas não poderão distingui-la do original. (Carmo D’Orey 1999: 69)

 

Mas por que razão os macacos seriam incapazes de pintar a Gioconda, ao passo que iriam escrever Os Lusíadas e tocar a Sonata ao Luar?

A justificação para que nenhum macaco seja alguma vez capaz de pintar Gioconda é a de que, seguindo Goodman, as obras de arte autográficas, como é o caso das pinturas, são entidades particulares concretas não-repetíveis. Sendo assim, qualquer réplica de uma pintura, por mais perfeita que seja, será uma pintura diferente. A réplica ou duplicação de Gioconda feita pelos macacos seria, pois, apenas uma cópia e não uma instância da obra original. E se alguém produzir uma cópia perfeita de Gioconda, fazendo-a passar pelo original, tal cópia será não apenas uma mera cópia, mas uma falsificação.

Cenário diferente encontramos nas chamadas artes alográficas, como a literatura e a música. Tanto as obras literárias como as obras musicais obedecem a um sistema de notação constituído por um conjunto de caracteres e regras de uso identificáveis que permitem a sua repetibilidade. Neste caso, a obra musical não é senão a classe de execuções concordantes com um dado sistema notacional (a partitura). É por isso que, quando assistimos a uma execução da Sonata ao Luar, não dizemos que estamos a ouvir uma cópia ou falsificação da Sonata ao Luar, mas a Sonata ao Luar, ela própria.

Como resume Carmo D’Orey (ibid.), ao passo que o locus da identidade na pintura é um objecto individual, na música é uma classe de execuções. Daí que, de acordo com a distinção de Goodman, nunca encontremos cópias nem falsificações das obras musicais; e tampouco encontremos diferentes instâncias de uma mesma pintura.   

sábado, 23 de março de 2024

Três livros actuais, para pensar e discutir

Há tempos, numa conversa sobre livros com amigos, referi alguns que gostaria de ver traduzidos para português. Felizmente, três deles acabaram mesmo por ser publicados em Portugal.

A Física e as Grandes Questões da Vida, o mais recente livro da física teórica alemã Sabine Hossenfelder é talvez o melhor que li nos últimos tempos. Hossenfelder é uma cientista invulgar. Desemproada e destemida entre os grandes nomes da física contemporânea, Hossenfelder considera que muitos deles acabam por se enredar em confusões conceptuais que um pouco de treino filosófico poderia ajudar a evitar. Mas ela é também muito popular no YouTube, onde tem um dos mais populares canais sobre ciência, além de mostrar a sua faceta de cantora e produtora de música pop electrónica. A sua investigação centra-se nos fundamentos da física e da mecânica quântica. Porém, A Física e as Grandes Questões da Vida não é uma obra de divulgação científica. E também não se destina a um público especializado. É sobretudo um livro de filosofia: trata das questões filosóficas fundamentais com que os físicos teóricos são frequentemente confrontados, as quais se situam nas fronteiras da ciência e da filosofia. São questões como: O que causou o Universo? O que é o tempo? Há lugar para o livre-arbítrio? A consciência é computável? O que somos e de que somos feitos? Há limites para o conhecimento? Hossenfelder procura, de forma desapaixonada e com um subtil mas incisivo toque de humor, mostrar até onde o melhor conhecimento científico disponível nos permite ir na resposta para tais perguntas. Ao fazê-lo, também nos permite compreender melhor os mais recentes desenvolvimentos da física.  


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A Matéria de Que Somos Feitos é a tradução de Material Girls, um dos mais discutidos livros dos últimos tempos no Reino Unido. Foi este livro, algo atípico na produção filosófica de Kathleen Stock, que a tornou amplamente conhecida e que também acabou por a afastar irremediável e definitivamente da Universidade de Sussex, onde fora professora de filosofia da arte. Tudo começou com uma conferência que a autora fora convidada a proferir sobre os conceitos de sexo e género. As reações foram de tal ordem, que decidiu escrever este livro para explicar e defender de forma mais completa e robusta a sua posição de que uma mulher transgénero não é uma mulher e que um homem transgénero não é um homem, não havendo maneira de um homem passar a ser uma mulher nem de uma mulher passar a ser um homem. Apresentou também razões contra a partilha de casas de banho por pessoas de sexos diferentes. A tese central do livro é que o sexo de uma pessoa não é uma questão subjectiva e que isso não pode deixar de depender da matéria biológica de que cada um de nós é feito. Apesar de não ser uma tese particularmente inovadora, o livro gerou uma feroz contestação, sobretudo nos campus universitários ingleses. Foram realizadas manifestações públicas para tentar silenciar Stock onde quer que fosse convidada a apresentar e discutir publicamente as suas ideias. A contestação acabou por levar Stock a abandonar a sua promissora carreira académica, fruto da hostilidade do próprio corpo docente da Universidade de Sussex. Tudo isto parece muito estranho, dado que Stock não tem sido a única a defender as mesmas teses. Porém, há duas características que fazem dela uma caso especial e que a tornam especialmente «perigosa» aos olhos dos seus censores: uma delas prende-se com o facto de Stock ser uma mulher lésbica, casada com outra mulher; a segunda, e talvez mais difícil de digerir, reside no rigor analítico e na clareza da sua argumentação filosófica, solidamente apoiada pelos dados empíricos disponíveis. Trata-se, além do mais, de um excelente exemplo da melhor prática filosófica e de como a filosofia pode ser útil para nos ajudar a compreender melhor o mundo.   


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O último livro de Susan Neiman é uma espécie de alerta sobre a crescente descaracterização da esquerda levada a cabo pelo chamado activismo woke. A Esquerda Não é Woke começa por expor os princípios fundamentais que historicamente têm caracterizado a esquerda e, de seguida, mostrar que o wokismo, apesar de se reclamar de esquerda, viola claramente tais princípios. Segundo Neiman, a esquerda liberal herdou do Iluminismo os seus três princípios políticos fundamentais: o universalismo, por oposição ao particularismo divisionista; a distinção entre poder e justiça, contra a ideia de que a justiça é sempre a razão do mais forte; a crença no progresso social, rejeitando a ideia de que a finalidade de qualquer luta é uma luta pelo poder e nada mais. Neiman procura mostrar que o wokismo é incompatível com esses três princípios ou teses, ao mesmo tempo que identifica a origem de tal degeneração. Neiman concede que o wokismo parte de uma genuína preocupação com aqueles que, ao longo da história, têm sido mais maltratados e desprezados. Contudo, tal preocupação acabou, segundo ela, por ser instrumentalizada e capturada por ideias irracionalistas que pouco ou nada têm que ver com a defesa dos mais fracos e humilhados. Trata-se das ideias de pensadores como Foucault, Carl Schmitt, Heidegger e outros que, apostados em ajustar contas com a história, eram motivados sobretudo pelo combate aos ideais iluministas da racionalidade, da universalidade e do progresso da humanidade. Assim, o wokismo resulta de motivações justas, mas instrumentalizadas por propostas teóricas reacionárias e iliberais. O activismo woke acaba, assim, por ser um subproduto corrompido da esquerda. Não é essa, pois, a esquerda liberal e progressista em que Neiman se reconhece. Até aqui, tudo bem. Mas o problema do raciocínio de Neiman é que o seu ponto de partida não é claro: a esquerda é apenas um conjunto de princípios teóricos ou inclui também as reivindicações concretas dos que actuam em nome dela? Se a prática concreta também for relevante para caracterizar a esquerda, então deixa de ser rigoroso afirmar que a esquerda não é woke. Os termos usados para caracterizar a esquerda não devem, de resto, ser diferentes dos termos usados para caracterizar a direita, pelo que se a prática não contar para um lado, então também não deve contar para o outro. Qual é, então, a verdadeira esquerda? É a esquerda dos princípios, isto é, a tal esquerda ideal? Ou será a dos que, na prática, agem politicamente em nome da esquerda, isto é, a esquerda real? Ou será uma combinação de ambas? Claro que a esquerda que interessa a Neiman é a esquerda dos princípios, que ela designa de esquerda liberal. Mas, nesse caso, o título do livro é enganador, dado que apenas alguma esquerda não é woke.




quinta-feira, 15 de junho de 2023

Kant e a metafísica: uma introdução didáctica à filosofia crítica de Kant

Já lá vão mais de trinta anos desde que ensinei pela primeira vez os aspectos centrais da filosofia crítica de Kant. Foi em 1987, quando me foram atribuídas duas turmas do 12.º ano, cujo programa, de carácter essencialmente histórico, incluía Kant, Hegel, Kierkegaard, Feuerbach e Nietzsche, entre outros — boa parte da armada filosófica alemã, como se vê. 

Foi então que, acabado de chegar ao calor do Algarve, decidi ler as obras de Kant mais relevantes para o que era suposto ensinar: Crítica da Razão Pura (1781), Prolegómenos a Toda a Metafísica Futura (1783) e ainda a Crítica da Razão Prática (1788). Ao tirar alguns apontamentos para mim próprio, surgiu-me a ideia de elaborar um roteiro didáctico muito simples, na forma de perguntas e respostas (com alguns comentários pelo meio), para ajudar também os meus alunos a iniciarem-se nos meandros da filosofia crítica kantiana.

O texto completo pode agora ser lido aqui.


quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Investigações estéticas de Jerrold Levinson


O leitor português de filosofia, mais precisamente de filosofia da arte e estética, tem finalmente à sua disposição alguns dos principais ensaios do influente filósofo contemporâneo Jerrold Levinson. 

O primeiro ensaio da colectânea Investigações Estéticas: Ensaios de Filosofia da Arte, acabada de publicar pelas Edições Afrontamento, é «Definir historicamente a arte», provavelmente um dos seus ensaios mais discutidos. A definição de arte aí proposta constitui uma alternativa não-essencialista à famosa definição institucional defendida por George Dickie e outros. Ambas as propostas de definição são, de resto, estudadas e discutidas nas aulas de Filosofia do 11.º ano. A tradução deste texto de Levinson pode, por isso, ser de grande utilidade também para professores e estudantes.

Além deste ensaio, que pretende esclarecer o próprio conceito de arte, há outros que procuram responder a perguntas de carácter menos geral, mas sobre questões não menos intrigantes. 

Por que razão reagimos emocionalmente (chorando, por exemplo) a situações que acreditamos serem ficcionais e que, portanto, sabemos não apresentarem (nem representarem) algo que tenha realmente acontecido? 

Por que razão apreciamos obras de arte que despertam, exprimem ou evocam em nós emoções negativas (como a tristeza, por exemplo), as quais geralmente procuramos evitar?

A apreciação musical de obras de larga escala (sinfonias, por exemplo) exige da parte do ouvinte que ele seja capaz de reconhecer o desenvolvimento da estrutura sonora subjacente à obra em causa?

A intenção do autor ao escrever uma dada obra literária é determinante para uma compreensão apropriada do significado dessa obra?

O que é o humor?

Como distinguir arte erótica de pornografia? E há realmente arte pornográfica?

O que significa algo ter valor intrínseco? Haverá experiências ou objectos intrinsecamente valiosos?

O leitor poderá surpreender-se com algumas respostas. Mas poderá confirmar que todas elas são cuidadosamente fundamentadas. Concordar ou não com elas faz parte do desafio que decorre da leitura deste livro.  

domingo, 5 de julho de 2020

É objectivo mas não é real, diz Frege

Há dias citei aqui uma passagem de Rawls sobre a noção de objectividade. Ele considera que, no caso dos juízos morais e políticos, a objectividade não depende de qualquer requisito causal entre a justificação do juízo e o facto de o mundo ser desta ou daquela maneira. Rawls parece, pois, dispensar a ideia de que tem de haver factos morais para que faça sentido falar da objectividade dos juízos morais.

Searle, por sua vez, considera ser perfeitamente possível dar explicações objectivas para fenómenos subjectivos. É o que se passa quando as explicações em causa são entendidas em sentido epistémico e os fenómenos são ontologicamente subjectivos. A propósito, este é uma aspecto que Searle esclarece de forma muito simples e acessível logo na primeira palestra do seu mais recente livro Da Realidade Física à Realidade Humana (Gradiva).

Frege, por sua vez, parece desligar as noções de objectividade e de realidade, pelo menos em certos casos, sugerindo que há coisas que são objectivas mas não são reais, como na seguinte passagem de Os Fundamentos da Aritmética (INCM, p. 59):

Eu estabeleço uma distinção entre aquilo que é objectivo e aquilo que é tangível, espacial, real. O eixo da Terra ou o centro de gravidade do sistema solar são objectivos, mas não lhes chamaria reais como o faço com a Terra. Chama-se frequentemente ao equador uma linha imaginária; mas seria falso chamar-lhe uma linha fictícia. O equador não é criado pelo pensamento, não é o resultado de um processo mental; ele é apenas conhecido ou apreendido pelo pensamento.

A propósito de Frege, descobri nos últimos dias, com grande satisfação, que alguns dos seus textos mais importantes tinham sido recentemente traduzidos e publicados em Portugal, nomeadamente o texto "Sobre o sentido e a denotação", (por vezes referido em português como "Sobre o sentido e a referência"), que inaugurou a filosofia contemporânea da linguagem. 

Este texto faz parte de um conjunto de cinco ensaios recentemente reunidos num pequeno volume pela Guimarães. Maior satisfação senti ao verificar que a tradução é da máxima confiança, tendo em conta que foi feita por António Zilhão. Penso que não poderia haver melhor tradutor para estes ensaios, em que se inclui o também influente "Sobre conceito e objecto". 

Já agora, o livro Os Fundamentos da Aritmética de onde citei a passagem acima, foi também traduzido por António Zilhão.



sexta-feira, 26 de junho de 2020

Deus existe? O essencial


Depois de estar disponível apenas no formato eBook, foi finalmente publicado em papel o livro A Existência de Deus: o essencial, de Desidério Murcho (Plátano Editora). O livro, com aproximadamente 100 páginas, foi escrito a pensar nos estudantes e professores do 11º ano, mas também no leitor comum, interessado na questão central da filosofia da religião. E, já agora, penso que é mais uma excelente capa, na linha das anteriores da mesma colecção, com a reprodução de outra obra do artista Baltazar Torres.

Um dos aspectos que torna este livro particularmente interessante para estudantes e professores é que segue a par e passo as Aprendizagens Essenciais (AE) de Filosofia, destacando as versões dos argumentos sobre a existência de Deus aí indicadas. E apresenta, como proposto nas AE, a «redução dos argumentos a formas de inferência válida estudadas e análise da sua validade e solidez», o que não é fácil encontrar noutros livros de carácter introdutório.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Diferentes tipos de objectividade e a objectividade dos juízos morais



Se não houver factos morais, também não poderá haver juízos morais objectivos? Eis o que diz John Rawls sobre isso (com algumas adaptações à tradução portuguesa, que deixa algo a desejar).

Estou a pensar naqueles que sustentam que a objectividade dos juízos e das crenças depende de disporem de uma explicação adequada que se inscreva numa perspectiva causal do conhecimento. Esses entendem que um juízo (ou uma crença) só é objectivo(a) quando o conteúdo do nosso juízo é (em parte) função de um tipo apropriado de processo causal que afecta a nossa experiência perceptiva, por hipótese, aquela em que se baseia o nosso juízo. […]

Por exemplo, o nosso juízo perceptivo de que o gato está no tapete é o resultado (em parte) de um adequado processo causal que afecta a nossa experiência perceptiva de o gato estar no tapete. […] Na mesma linha, até as próprias crenças dos físicos teóricos serão explicadas desta forma. O predicado da objectividade só se associa a estas crenças se dispõe de uma explicação que mostra que a sua afirmação por parte dos físicos é (em parte) o resultado de processo causal adequado, relacionado com o facto de o mundo ser aquilo que os físicos imaginam que é. 

[…] Admitimos que o requisito causal faz parte de uma concepção da objectividade apropriada para os juízos da razão teórica, ou, pelo menos, para grande parte da ciência natural, e também para os juízos perceptivos.

No entanto, esse requisito não é essencial para todas as concepções da objectividade, e seguramente não o é para uma concepção adequada para o raciocínio moral e político. Isso é posto em evidência pelo facto de não exigirmos de um juízo moral ou político que as razões que o sustentam mostrem que ele se encontra ligado a um processo causal adequado, nem exigimos uma explicação dele no âmbito da psicologia cognitiva. Pelo contrário, basta que as razões apresentadas sejam suficientemente fortes. Nós explicamos o nosso juízo, na medida em que o fazemos, simplesmente através da sondagem dos seus fundamentos: a explicação assenta nas razões que sinceramente afirmamos. Que há mais a dizer, excepto questionar a nossa sinceridade e a nossa razoabilidade?

É evidente que, dados os muitos obstáculos que se colocam ao acordo sobre o juízo político, mesmo entre pessoas razoáveis, não chegaremos sempre, ou até na maior parte das ocasiões, a acordo. Mas devemos, pelo menos, ser capazes de reduzir as nossas diferenças e chegar, assim, próximo de um acordo, e isso à luz do que consideramos serem os princípios e critérios partilhados de raciocínio prático.

J. Rawls, O Liberalismo Político. Lisboa: Editorial Presença, 1996, pp. 128-129. 

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Filosofia da morte

Três Diálogos Sobre a Morte, de Pedro Galvão, é o mais recente livro da colecção Filosofia Aberta (Gradiva), publicado esta semana. Outros autores portugueses, como José Cardoso Pires ou Maria Filomena Mónica, escreveram sobre a morte. Mas, diferentemente dos anteriores, este é o primeiro livro de filosofia da morte escrito por um filósofo português. E é, provavelmente, o único livro no mundo de filosofia da morte escrito em forma de diálogo. A forma do diálogo, quando é bem utilizada — como é aqui o caso —, permite apresentar e discutir as ideias de uma maneira mais natural, mais envolvente e menos académica.
 

Os diálogos têm lugar em Londres, no final do século XVIII, mas estão também em jogo ideias que fazem parte da discussão recente na filosofia da morte. Assim, podemos ver discutidas não só as ideias de Epicuro, Lucrécio, Descartes, Leibniz, Locke e Hume sobre a natureza da morte, mas também as de filósofos mais recentes como Derek Parfit, Jeff McMahan, David Wiggins, Bernard Williams, Eric Olson, Thomas Nagel e Richard Swinburne, entre outros. 

Os intervenientes no diálogo são quatro. Ou antes, são cinco, como se pode ver no preâmbulo e confirmar nos retratos então realizados.  

Já não era novo, mas estava ainda longe da velhice, embora a sua posição na hierarquia militar pudesse fazer supor o contrário. O General Grant morreu há pouco mais de quinze dias. A sua morte, não sendo repentina, apanhou‑o bastante de surpresa, visto que há menos de um mês parecia gozar de plena saúde. Excepto no último dia, a doença não o fez sofrer muito. Manteve‑se lúcido até ao fim, pelo que dispôs de tempo suficiente para se despedir dos amigos, revisitar alguns livros, planear o seu próprio funeral e escolher a sua sepultura, que sobretudo havia de ser modesta. 

O interesse pelas indagações filosóficas levou o General Grant a frequentar o salão de Lady Lucy, em Londres, onde se reuniam alguns dos espíritos mais sagazes da cidade — e também um segmento apreciável de pedantes e bajuladores, na sua opinião. Quando Lady Lucy o visitou pela última vez, o general, ciente da iminência do seu fim, fez‑lhe um único pedido. Gostaria de uma espécie de homenagem póstuma, que seria esta: para celebrar o seu gosto pela filosofia, ser‑lhe‑iam dedicadas várias sessões de discussão filosófica. Três, mais precisamente, uma por semana e todas sobre o mesmo tema: a morte. Deixaria escritas três perguntas muito sucintas, selando cada uma delas num envelope numerado, que só deveria ser aberto à hora prevista para o começo do debate. Assim fez. A Lady Lucy, como de costume, caberia moderar as discussões, sem se inibir de ter voz activa nas mesmas. Estas, no entanto, deveriam ficar confinadas a um círculo muito estrito do seu salão, constituído por apenas quatro pessoas, e isto a contar com ela própria. Vejamos então, por idade decrescente, a quem o General Grant confiou a realização do seu desejo final. 

O mais velho é o Prof. Pohl, um médico alemão, agora distinto professor de filosofia natural e experimental. Descendo à meia‑idade, encontramos o Rev. Royce, escocês, arguto defensor da ortodoxia contra as opiniões dos livres‑pensadores, porém bastante desprovido de animosidade e sempre disponível para uma troca franca de ideias. Lady Lucy estranhou a última escolha: Pierre Perrier, um jovem literato francês muito dado à boémia e autor de um par de peças teatrais, ainda por representar, bem como de alguns panfletos anónimos que indispuseram meia cidade. 

De pessoas tão singulares e diversas, alguma vez poderia resultar uma série de conversas aborrecidas?