No ano de 2008 convidei Ricardo Santos, na altura professor de Lógica e de Filosofia Antiga na Universidade de Évora, para dar uma conferência para professores e alunos da minha escola sobre filosofia da ação. Fiz-lhe uma curta entrevista após a conferência, que publiquei na página do grupo de Filosofia da escola. Dado que essa página foi entretanto encerrada, e dado que as respostas do Professor Ricardo Santos se mantêm interessantes e esclarecedoras, decidi publicar aqui a parte da entrevista sobre o tema da conferência (havia outra parte sobre a filosofia e o seu ensino, que não incluo aqui apenas por uma questão de tamanho). Ricardo Santos, a quem renovo o meu agradecimento, é agora professor do departamento de Filosofia da Universidade de Lisboa.
O título da conferência que proferiu é "Compreender a Acção Humana", que, como esclareceu, é um tema da filosofia da acção e não, como por vezes se pensa, da ética. Em seu entender, a que se deve esta confusão?
Como procurei mostrar na parte inicial da conferência, o pensamento filosófico sobre questões que dizem respeito à acção humana, mas que são independentes da sua avaliação ética, tem uma origem muito antiga, estando claramente presente em autores como Platão e Aristóteles. Todavia, o reconhecimento da filosofia da acção como uma disciplina filosófica autónoma é relativamente recente: é algo que ocorre na filosofia anglo-americana no último terço do século vinte, muito em consequência de alguns dos últimos trabalhos de Wittgenstein e de pessoas por ele influenciadas, como Ryle, Anscombe, Kenny e outros. No meu caso particular, descobri esta nova disciplina quando estava a trabalhar sobre o problema da acrasia – essa forma de irracionalidade em que uma pessoa age de modo voluntário contra aquilo que ela própria julga ser o melhor – e li, num célebre artigo de Donald Davidson, que a acrasia devia ser tratada como um problema de filosofia de acção, e não de ética. É certo que, uma vez estabelecida a distinção, aplicamo-la retrospectivamente e, por isso, hoje escrevem-se livros sobre a filosofia da acção de Aristóteles, por exemplo, bem distintos dos que se escrevem sobre a sua teoria ética – quando ele próprio não fazia essa distinção. Portanto, respondendo à sua pergunta, penso que a confusão, quando ocorre, advém principalmente da relativa novidade da filosofia da acção como disciplina.
Há alguma relação ou afinidade especial entre a filosofia da acção e outras disciplinas filosóficas, como a ética, a filosofia da mente, a filosofia da linguagem e a metafísica, ou será que são disciplinas completamente independentes?
A autonomia disciplinar é relativa e não exclui a existência de relações de diversos tipos. Para um filósofo tendencialmente sistemático, que desenvolva trabalho em diversas disciplinas, é importante ter a noção de que a posição que adopta numa área pode condicionar o leque de soluções que ficam disponíveis para problemas pertencentes a outras áreas. No caso particular da filosofia da acção, parece-me que as relações privilegiadas são precisamente essas que indica (faltaria apenas acrescentar a teoria da decisão, mas esta não é estritamente filosófica). As relações com a ética são evidentes, já que os juízos éticos se contam certamente entre os factores que determinam, ou que pelo menos condicionam, as nossas decisões de agir deste ou daquele modo. A relação com a filosofia da mente é muito estreita, havendo até quem defenda que a filosofia da acção é uma sua subdisciplina. Pois a relação entre as nossas crenças, desejos e intenções, por um lado, e os movimentos executados pelo nosso corpo, por outro – relação que a filosofia da acção procura esclarecer – pode bem ser vista como um caso particular da relação mente-corpo, de que se ocupa a filosofia da mente. A relação com a metafísica é também próxima, pelo menos se entendermos por esta o estudo da questão de saber que coisas são reais e o que é isso, a realidade. Basta recordar que, na lista das dez categorias de Aristóteles, a acção estava incluída. Isso significa que o mundo é feito, não apenas de substâncias, qualidades, quantidades e relações, mas também de acções. Precisamos então de saber que tipo de coisa é uma acção. Com a filosofia da linguagem, a relação já é mais remota, embora eu a ache especialmente interessante, se for explorada em duas direcções: por um lado, procurando desenvolver a observação de que falar é um modo especial de agir e, por isso, na prática, a interpretação linguística não está desligada da interpretação do comportamento; e, por outro, procurando analisar o modo como falamos de acções – descrevendo-as, prevendo-as, explicando-as – para descobrir as concepções que aí estão implícitas.
Na sua conferência parece ter defendido a tese de que a acção de levantar o braço é o conjunto ou sequência de movimentos físicos de um agente e que não é o modo como descrevemos o que se passa que faz esses movimentos físicos ser ou não ser uma acção. Mas como podemos falar nós de um agente, e portanto de uma acção, a não ser através de alguma descrição que envolva a atribuição de intenções a alguém? Podemos, por exemplo, dizer que, quando estou a espirrar, o conjunto de movimentos físicos que constituem o meu espirro é uma acção? Porquê?
É uma óptima pergunta, que me permite clarificar um pouco o que afirmei na conferência. No essencial, defendi a tese de Davidson segundo a qual as acções não são universais (por isso, a rigor, nunca ninguém faz duas vezes a mesma coisa), mas antes particulares espácio-temporalmente localizados (e, por isso, literalmente irrepetíveis). À pergunta de Wittgenstein, esta tese responde que não há qualquer elemento adicional que transforme o movimento do braço numa acção minha de erguer o braço. Se considerarmos apenas a ontologia, a minha acção é o movimento do braço. Mas, perante isto, muita gente reage protestando: «Nem sempre! Pois o braço pode mover-se sem que eu o mova.» Repare agora como este protesto viola o princípio de que as acções são particulares: se as acções são particulares irrepetíveis, a questão do «sempre» não pode colocar-se; este movimento do meu braço que estão agora a observar é uma acção minha, outros movimentos semelhantes do meu braço podem não ser acções minhas. A questão seguinte é: o que é que distingue uns dos outros – os movimentos que são acções minhas daqueles que o não são? Ou, em geral, o que é que distingue uma acção minha de um simples acontecimento que envolve o meu corpo? É uma interrogação fundamental, para a qual não conheço nenhuma resposta completamente satisfatória. O tipo de resposta que me parece ir na direcção certa é: os acontecimentos que são acções minhas são acontecimentos causados por intenções que os justificam racionalmente. Repare que menciono a intenção como causa da acção, e não como seu elemento constituinte. Por isso, concordo consigo que um movimento só é uma acção se for causado por uma intenção. Mas a acção não é o movimento mais a intenção. A acção é o movimento. A intenção é a sua causa.
Há quem defenda que os problemas da filosofia da acção não têm um carácter suficientemente intuitivo para serem discutidos pelos estudantes do secundário. Concorda? Porquê?
Não, não concordo. Veja, por exemplo, o problema de Wittgenstein que eu mencionei na conferência. Sempre que levanto o meu braço, o meu braço levanta-se, mas pode acontecer que o meu braço se levante sem que seja eu a levantá-lo. Isto parece indicar que há algo mais que está presente naquela acção, para além do simples movimento do braço. Que elemento adicional será esse? Um acto de vontade? Se sim, que relação existe entre esse acto e o movimento do braço? Este problema é central, e não me parece nada que seja mais abstracto, ou mais inacessível, do que outros problemas tratados no secundário. Aliás, uma das vantagens da filosofia da acção é a facilidade que há em arranjar exemplos interessantes que permitem ilustrar os problemas de um modo bastante intuitivo. Veja o caso da relação da acção com os seus efeitos. Posso introduzir o problema por meio de uma história simples. Se envio uma carta insultuosa a alguém e o destinatário só a recebe e lê dois anos depois, tendo eu morrido entretanto, quando é que o insultei? Posso insultar uma pessoa antes de ela ser insultada? Ou posso insultar uma pessoa (e, em geral, realizar acções neste mundo) depois de eu ter morrido?
Em sua opinião, por que razão a filosofia da acção não é estudada nos cursos de filosofia das nossas universidades? Acha que isso se justifica?
A tendência é para que as coisas mudem, à medida que o vasto trabalho existente em filosofia da acção vai sendo mais conhecido. O novo plano de estudos da licenciatura em filosofia da Universidade de Évora, por exemplo, já inclui uma disciplina de filosofia da acção.
Quem quiser estudar filosofia da acção, que filósofos deve começar por ler ou estudar?
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