quarta-feira, 24 de julho de 2024

Entrar sorrateiramente na filosofia pelas portas traseiras

Foi assim que recomendei o livro A Bebedeira de Kant, do David Erlich, que parece estar a ser bem acolhido pelo público.

Neste interessante livro, Erlich convida o leitor a entrar sorrateiramente nas muitas moradas da filosofia pelas suas portas traseiras. Isso não é um defeito, mas antes um mérito bastante raro, na medida em que até o leitor mais tímido e reverente conseguirá entrar sem temor, dando-lhe a oportunidade de avançar sem receios e de, quase sem se dar conta, espreitar para os salões mais luminosos do Olimpo filosófico. Trata-se de um livro que, apesar de acenar ao leitor comum, consegue a proeza de evitar a vulgaridade filosófica. Escrever de forma clara e convidativa sobre ideias complexas não é para todos. Erlich consegue fazê-lo pondo o sorriso matreiro no lugar da gravitas académica.

É bom ver surgir novos (e jovens) autores de filosofia no panorama editorial português. E não, não estava a exagerar no elogio.


terça-feira, 23 de julho de 2024

Inteligência artificial: aprender sem pensar

O investigador português Pedro Domingos, professor da Universidade de Washington (Seattle), é um dos líderes mundiais em aprendizagem automática (machine learning), uma das áreas de investigação mais importantes da Inteligência Artificial. A sua classificação dos principais modelos de aprendizagem automática tornou-se uma referência para quem precisa de um bom mapa na diversidade de algoritmos-mestres que têm vindo a ser propostos. Eis uma compilação feita por mim, com base no seu interessante, e muito informativo, livro A Revolução do Algoritmo Mestre (Manuscrito Editora).



Vale também muito a pena ouvir a estimulante conversa com o José Maria Pimentel. Trata-se do episódio 149 do seu podcast 45 Graus.



sábado, 20 de julho de 2024

Os valores são arbitrários?

Quando os meus alunos me dizem que qualquer lista de virtudes é arbitrária, peço-lhes para se imaginarem como pais dotados da capacidade singular que lhes permite investir magicamente os seus filhos com o conjunto de traços de personalidade que quiserem. Quando eles se entregam a este exercício empenhados no objectivo de que os seus filhos venham a ser bem-sucedidos e que façam bem as coisas em circunstâncias imprevisíveis, invariavelmente chegam a uma lista de traços de personalidade a maioria dos quais Aristóteles certamente reconheceria. E estes resultados levam-nos, então, a reconsiderar criticamente a noção de que qualquer lista de virtudes é puramente arbitrária ou subjectiva. A experiência mental ficcional funciona argumentativamente, ‘entimemeticamente’, para abanar o seu cepticismo ao mobilizar e reorganizar o conhecimento que já possuem.

                                                                                                                                   Noëll Carroll

quinta-feira, 18 de julho de 2024

A confiança da incompetência

Numa passagem do seu ensaio «O triunfo da estupidez», de 1933, Russell afirmou algo que tem sido bastante citado: 

A causa principal da dificuldade que enfrentamos é que, no mundo moderno, os estúpidos estão cheios de certezas, ao passo que os inteligentes estão cheios de dúvidas.

Esta é uma afirmação de carácter empírico, certamente baseada no que o filósofo vinha observando à sua volta. Poderia, no entanto, não passar de uma impressão enganadora. Mas, graças às experiências entretanto levadas a cabo pelos psicólogos sociais americanos David Dunning e Justin Kruger, sabemos agora que Russell não estava errado. Além de um filósofo de primeira linha, parece que Russell foi também um observador perspicaz. 

A intuição de Russell é a de que aqueles que se mostram mais convictos na defesa de certas ideias (ou seja, os que gritam mais alto e de forma mais convicta) tendem a sobrevalorizar a sua competência na matéria em causa. É precisamente o facto de ignorarem os limites da sua ignorância que os leva a sobrevalorizar o pouco que sabem, julgando ser muito. Ou seja, precisariam de ser suficientemente competentes para reconhecerem a sua incompetência. Pelo contrário, aqueles que conhecem muito bem um dado assunto já são suficientemente competentes para admitirem os seus limites, o que os leva a ser mais cautelosos nas suas afirmações.  

Isso é precisamente o que mostra o chamado efeito Dunning-Kruger, um viés cognitivo que leva as pessoas com competências medianas a confiar demasiado no seu desempenho, autoavaliando-o de modo favorável, ao passo que as pessoas com competências acima da média tendem a avaliar mais severamente o seu desempenho, como se pode ver no gráfico elaborado a partir das experiências realizadas por aqueles dois psicólogos (gráfico adaptado da Wikipédia).  


Isto permite explicar a confiança de algumas pessoas ao insistirem convictamente em meia-dúzia de ideias, acreditando que isso basta para vencerem qualquer debate. E explica, por outro lado, o facto de muitas pessoas que conhecem com profundidade um dado assunto se sentirem frequentemente frustradas — ou mesmo derrotadas — ao debater com quem tem um conhecimento mediano do mesmo. 

    

quarta-feira, 17 de julho de 2024

A desarmante beleza da música de Silvestrov

Talvez nenhum outro compositor contemporâneo tenha conseguido criar peças musicais tão incontestavelmente belas como o ucraniano Valentin Silvestrov. Um bom exemplo disso é a frágil e tocante beleza de Prece Pela Ucrânia, escrita em 2014, uma peça coral aqui adaptada para orquestra — com interpretação da Bamberg Symphony e os arranjos orquestrais de Eduard Resatsch. 

Tanto o coral original como esta adaptação orquestral são de uma beleza delicada e despojada, que nos resgata de um mundo demasiado ruidoso, como quer o compositor. Uma diferença interessante entre a versão coral original e esta versão orquestral é o uso do vento suave das flautas, soando agora como um suspiro apaziguador que acentua a etérea espacialidade desta prece musical. 

A obra de Silvestrov não receia a beleza da música tonal tradicional. Mas, em vez de se fixar no passado, renova a beleza essencial aí anunciada, como uma essência que, numa espécie de «eco do que já existe», desponta entre o que surge e se desvanece. O próprio compositor descreve a sua obra como «silêncio posto em música».

Silvestrov, nascido em 1937, em Kiev, vive agora em Berlim, refugiado da guerra no seu país. Ainda no tempo da União Soviética, a sua música chegou a ser proibida não só por razões políticas (pronunciou-se contra a invasão da Checoslováquia, em 1968) mas também porque não se conformou à estética oficial soviética do realismo socialista nem à sua alternativa modernista, optando antes por uma via pessoal de pendor neoclássico. Daí que a música de Silvestrov represente também um alívio da exaustão vanguardista para a qual ele próprio chegara a contribuir. A beleza do seu Requiem para Larissa, das suas Canções Silenciosas e, em especial, da sua música coral dificilmente nos deixa indiferentes. 

Bamberg Symphony — Prayer for Ukraine (Valentin Silvestrov)

terça-feira, 4 de junho de 2024

Novas Janelas Para a Filosofia acabadas de abrir

Esgotada há muito a edição de Janelas Para a Filosofia, chegou a altura de as janelas se voltarem a abrir. Agora numa edição substancialmente renovada, com uma organização diferente e novas secções, que ampliam e enriquecem o tratamento dos temas, o livro Novas Janelas para a Filosofia acaba de ser publicado.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Lombadas rebeldes

Vejam-se as lombadas destes livros. Quando olhamos para eles nas estantes das livrarias, temos de ler os títulos das lombadas sempre de cima para baixo, sempre na mesma direcção. Seja qual for a editora, é sempre assim.

Que monotonia! E o pior é que o mesmo se passa com os discos compactos, seja qual for a editora e o género musical.

Vejam-se agora as lombadas dos livros editados em Portugal. 


Pelo menos aqui não temos de inclinar a cabeça sempre para o mesmo lado. E nem sequer depende da editora, pois há livros da mesma editora (e até da mesma colecção) que ora se lêem num sentido ora se lêem no outro. A saudável rebeldia da edição portuguesa até nas lombadas se vê. Haja diversidade!


terça-feira, 16 de abril de 2024

Pensar depressa: edições a eito

Vi ontem numa livraria Pensar Depressa e Devagar com um autocolante na capa a anunciar que se tratava da 14.ª edição do livro de Daniel Kahneman. Pensei para comigo: dado que já tenho uma edição anterior, valerá a pena comprar esta nova edição?

No entanto, pareceu-me muitíssimo improvável que um livro originalmente publicado em 2011 tenha tantas edições, tendo em conta que uma nova edição de um livro já existente é uma nova versão desse livro, ou seja, é uma alteração do conteúdo da edição anterior, seja porque algumas partes foram entretanto reescritas, acrescentadas ou eliminadas. 

Claro que, se houver novas secções ou partes do livro reformuladas, pode valer a pena adquirir a nova edição, mesmo que se possua uma edição anterior. Podemos, por exemplo, querer citar num artigo académico uma passagem desta edição e que não se encontra na edição anterior. E mesmo que esteja em ambas, poderá agora encontrar-se numa página diferente, pelo que, para se poder confirmar se a citação é correta, é relevante indicar se estamos a citar a 4.ª edição ou a 14.ª edição.   

Mas será que se trata realmente da 14.ª edição do livro de Kahneman, como se anuncia no autocolante? Se não for isso, que informação está a ser dada? Talvez se trate simplesmente de mais uma reimpressão. Nesse caso, ficamos a saber também que nada no livro foi alterado, salvo uma ou outra gralha pontual, entretanto detectada. Assim, quem já tem a edição original poderá concluir que estaria a esbanjar dinheiro ao comprar a 14.ª reimpressão.

Bem vistas as coisas, talvez não seja incoerente usar o termo «edições» em vez de «reimpressões» (ou «republicações»), pois esse é, entre nós, o negócio dos editores, ao passo que em Inglaterra, por exemplo, é o negócio dos publishers. Afinal, os portugueses editam ao passo que os ingleses publicam. Sendo assim, parece lógico os portugueses chamarem edições ao que os ingleses chamam republicações (ou reimpressões). Tudo bem, estamos esclarecidos.

Só que... qual é, então, a relevância de anunciar que esta é a 14.ª edição, sabendo nós que se trata exatamente da mesma coisa que encontramos na 4.ª edição? Tal informação serve para quê?

Ah, sim, é para dizer que o livro se tem vendido muito e que, portanto, há boas razões para aqueles que ainda não o compraram o comprem agora. Tudo bem, afinal é só publicidade.

Só que... é bom que não se trate de publicidade enganosa. E ela corre o risco de ser enganosa se não se indicar algures qual a tiragem de cada reimpressão. Basta pensar que um livro com apenas uma impressão de dez mil exemplares pode vender mais do que outro com dez reimpressões de oitocentos exemplares. Assim, pode-se anunciar que o livro já tem cinco, dez ou quinze «edições» e, no entanto, ele não vender assim tanto. Portanto, nenhuma informação relevante nos estará a ser dada quando apenas se anuncia que é a 14.ª «edição» do livro. Seria mais correcto dizerem quantos exemplares já foram vendidos. Mas, ao que parece, há quem não queira saber de números mas se impressione com tanta «edição».

 

domingo, 24 de março de 2024

Quando há arte!

Foi com muito gosto que contribuí para o livro de homenagem à saudosa professora Carmo d'Orey, uma das pessoas com quem mais aprendi a reflectir sobre a arte e cuja obra A Exemplificação na Arte é, apesar do seu subtítulo, muito mais do que um estudo sobre Nelson Goodman, com quem ela também trabalhou. Trata-se, em minha opinião, de uma das mais relevantes obras de filosofia da arte jamais escritas em português: pelo inigualável rigor filosófico, pela sua abrangência e pela enorme familiaridade com os diferentes universos da arte. Diria mesmo que, naquelas novecentas páginas, não se encontra um único parágrafo dispensável. 

O livro de homenagem à professora Carmo d'Orey foi organizado por Vítor Guerreiro (U. Porto), Carlos João Correia (U. Lisboa) e Vítor Moura (U. Minho). Conta com dezasseis ensaios, incluindo o meu. Mas todos eles escritos por autores bem mais credenciados do que eu. 


O meu ensaio é sobre o estatuto artístico das falsificações de arte, intitulado «Arte e contrafacção: valor estético e estatuto das falsificações». Começa assim:

Ao esclarecer a distinção introduzida por Goodman entre artes autográficas e artes alográficas, Carmo D’Orey recorre ao seguinte exemplo ficcional: 

Se pusermos um número infinito de macacos a escrever à máquina durante um infinito período de tempo, algum deles acabará por escrever Os Lusíadas sem que falte uma vírgula ou um ponto. Se os pusermos a tocar piano, algum acabará por tocar a Sonata ao Luar sem uma única nota falsa. Mas se os pusermos a pintar, com todos os materiais necessários, nenhum deles pintará a Gioconda, embora algum deva fazer uma pintura tão semelhante que, pelo simples olhar, os especialistas não poderão distingui-la do original. (Carmo D’Orey 1999: 69)

 

Mas por que razão os macacos seriam incapazes de pintar a Gioconda, ao passo que iriam escrever Os Lusíadas e tocar a Sonata ao Luar?

A justificação para que nenhum macaco seja alguma vez capaz de pintar Gioconda é a de que, seguindo Goodman, as obras de arte autográficas, como é o caso das pinturas, são entidades particulares concretas não-repetíveis. Sendo assim, qualquer réplica de uma pintura, por mais perfeita que seja, será uma pintura diferente. A réplica ou duplicação de Gioconda feita pelos macacos seria, pois, apenas uma cópia e não uma instância da obra original. E se alguém produzir uma cópia perfeita de Gioconda, fazendo-a passar pelo original, tal cópia será não apenas uma mera cópia, mas uma falsificação.

Cenário diferente encontramos nas chamadas artes alográficas, como a literatura e a música. Tanto as obras literárias como as obras musicais obedecem a um sistema de notação constituído por um conjunto de caracteres e regras de uso identificáveis que permitem a sua repetibilidade. Neste caso, a obra musical não é senão a classe de execuções concordantes com um dado sistema notacional (a partitura). É por isso que, quando assistimos a uma execução da Sonata ao Luar, não dizemos que estamos a ouvir uma cópia ou falsificação da Sonata ao Luar, mas a Sonata ao Luar, ela própria.

Como resume Carmo D’Orey (ibid.), ao passo que o locus da identidade na pintura é um objecto individual, na música é uma classe de execuções. Daí que, de acordo com a distinção de Goodman, nunca encontremos cópias nem falsificações das obras musicais; e tampouco encontremos diferentes instâncias de uma mesma pintura.