sábado, 18 de fevereiro de 2017

O que é um formalista?

A resposta foi dada por uma mente brilhante, que recentemente se apagou: o lógico, filósofo, pianista e mágico americano Raymond Smullyan. É a seguinte:

Um formalista é aquele que não consegue entender uma teoria a não ser que ela não tenha sentido. 



Smullyan, que sempre foi uma pessoa divertida, contou também como a lógica o ajudou em tempos a arrancar um beijo a uma encantadora rapariga música de Nova Iorque logo no primeiro encontro que teve com ela. O diálogo que levou ao beijo foi mais ou menos o seguinte:

Ele: Pode fazer-me um favor?
Ela: Diga primeiro qual é.
Ele: Vou fazer uma afirmação acerca de si e que apenas exige um pouco de lógica para determinar se é verdadeira ou se é falsa. Se essa afirmação for verdadeira, dá-me um autógrafo; mas se a afirmação for falsa, dá-me um beijo.
Ela: Humm... diga lá. Qual é a afirmação?
Ele: Não me vai dar um autógrafo nem um beijo.

A encantadora jovem música reflectiu e, como também era inteligente, concluiu que não tinha outro remédio senão dar um beijo a Smullyan, para não ter de cair em contradição.

Como se vê, a lógica é bem mais útil do que muitos pensam e tem aplicações que mal imaginam.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

O meu primeiro teste de Filosofia

Com a devida autorização do seu autor, o meu colega João Carlos Silva, reproduzo aqui esta sua interessante história. Com algumas mudanças aqui e ali (o professor de História em vez do professor de Filosofia; o professor padre em vez do professor ateu), talvez alguns de nós reconheçamos esta história como algo pessoal também. Eis a história, contada na primeira pessoa.

O meu primeiro professor de filosofia era um senhor um tanto ou quanto excêntrico e, talvez, um tanto ou quanto louco - embora, para alguns, dizer isto seja já redundante -, que logo na primeira aula nos informou, divertido, que a razão pela qual tinha escolhido cursar filosofia prendia-se com o facto de a fila das matrículas para o curso de Direito ser demasiado grande, enquanto que a de filosofia não tinha ninguém, o que teria determinado a sua decisão. Também nos informou, desde logo, que a nota máxima a que poderíamos almejar na disciplina seria de 15, na escala de 0 a 20. Para além disso, as suas aulas eram caóticas, tanto do ponto de vista filosófico como pedagógico, uma vez que o senhor, para além de ser extremamente dogmático e não possuir qualquer método de ensino, era também completamente paranóico, desconfiando de tudo e de todos, dizendo-se perseguido pelos seus próprios correlegionários políticos e ideológicos locais, os quais identificarei dentro em pouco, para não estragar a surpresa. Em suma, gritava connosco, não sabia ensinar, não ensinava nada e parecia detestar-nos e à disciplina que "ensinava", tendo da disciplina uma visão dogmática e puramente ideológica, que tentava passar aos alunos com base na autoridade e no medo. Como podem calcular, com um cenário destes, conseguiu que toda a gente - com excepção de mim mesmo, como é evidente - desenvolvesse um ódio à primeira vista em relação à disciplina, coisa que não parecia propriamente atormentá-lo, antes lhe proporcionando até uma espécie de gozo sádico, que era manifesto nos seus sorrisos e esgares. Portanto, quando chegou a hora de realizar o primeiro teste, não é de surpreender que toda a gente se sentisse em pânico - menos eu, mais uma vez, por razões que já explicarei adiante - com a perspectiva de ter de o fazer, ainda para mais sem ninguém sequer conseguir imaginar que diabo iria sair no teste e como seria ele feito, já para não falar do modo da sua correcção. E como não poderia deixar de ser, o senhor professor de filosofia não nos desiludiu e esteve à altura das nossas piores expectativas. Quando chegou o dia do teste, o senhor limitou-se a escrever dois pequenos textos no quadro, um do papa João XXIII, que dizia qualquer coisa como isto: "Só Jesus Cristo salva e a Igreja Católica é a sua representante na Terra, portanto quem quiser ser salvo deve ter fé em Cristo e converter-se ao catolicismo" (cito de memória), enquanto o outro era a famosa citação de Karl Marx, essa sim fácil de citar com exactidão, pois é aquela que diz que "A religião é o ópio do povo". Ora bem, transcritas as duas citações, ficámos então a saber o que nos cumpria fazer com elas: deveríamos escolher aquela com a qual estivéssemos de acordo e justificar porquê. Acontece, porém, que o senhor professor de filosofia se esqueceu de nos informar previamente que era marxista e ateu dogmático, pois embora nós já soubessemos que ele era dogmático e autoritário - apesar de não ter autoridade nenhuma, ou talvez por isso mesmo -, aquando da realização do primeiro teste ele ainda não tinha aberto completamente o jogo, coisa que só fez mais tarde, talvez para não nos facilitar a vida e poder tramar-nos ainda melhor. Por isso, quando os testes foram entregues aos seus destinatários, rapidamente nos apercebemos que o critério de correcção do mesmo tinha sido extremamente simples: quem fosse ateu, tivesse tido a sorte de concordar com Marx e tivesse apresentado uma justificação filosófica para esse concordância, teve boa nota; quem, pelo contrário, fosse católico e tivesse tido o azar de concordar com a afirmação papal, mesmo que o tivesse justificado, teve uma má nota. Felizmente, eu fui um dos sortudos, pois já naquela altura era ateu e concordava com essa afirmação, tendo por isso sido agraciado com a nota máxima atribuída pelo senhor. Escusado será dizer que, após este episódio, o pessoal aprendeu a lição e o "amor" ao senhor professor de filosofia e à disciplina que ele representava "aumentou exponencialmente", contribuindo decisivamente para a "boa fama" que a disciplina já tinha na escola, naquele tempo em que esta era popularmente definida entre os alunos como "aquela ciência com a qual ou sem a qual ficamos todos tal e qual". 
E pronto, aqui têm a história do meu primeiro teste de filosofia, restando apenas explicar porque é que, apesar de tudo, eu não fazia parte dos assustados com o 1º teste nem me juntei ao coro dos "traumatizados de guerra" que passaram a odiar visceralmente a disciplina. A razão é simples: é que a vocação filosófica já cá estava desde o princípio, embora ainda sem ser devidamente nomeada e idenficada como tal, tendo eu já lido um manual de filosofia do antigo liceu, O Pequeno Manual de Filosofia, do professor Magalhães Vilhena, o qual só era pequeno no nome, dado que era um pequeno tijolo de algumas 500 páginas que servia de manual escolar para os antigos 6ª e 7º anos liceais. Como tenho uma prima que é 5 anos mais velha do que eu, curioso com a disciplina nova que iria ter no 10º ano, pedi-lho emprestado para o ler nas férias do 9º para o 10º ano, tendo sido amor à primeira vista, uma vez que me reconheci imediatamente nos temas e problemas ali abordados. Para além disso, como o meu pai, apesar de só ter podido estudar até ao nível do ensino médio, era um leitor compulsivo e, sendo marxista, possuia uma pequena biblioteca filosófica marxista, onde se contavam os famosos Princípios Elementares da Filosofia e os Princípios Fundamentais da Filosofia, do filósofo marxista francês de origem húngara, Georges Politzer, juntamente com dois manuais universitários soviéticos de filosofia, um dedicado ao materialismo dialéctico e outro ao materialismo histórico, que eram os manuais oficiais do ensino da filosofia na União Soviética por essa altura, eu já conhecia essa bibliografia, facto que me colocou em óbvia vantagem quando me deparei com o dito cujo professor e o seu peculiar e idiossincrático "sistema de ensino e avaliação". 
Enfim, para não me alongar e não os maçar mais com uma história que provavelmente só interessará a uns poucos, permitem-me apenas que acrescente, em jeito de conclusão ou moral da história, que o dito senhor, sem querer e de forma perversa, acabou por ter um papel importante na minha vida, não tanto por me ter inspirado a seguir-lhe as pegadas ou por ter contribuído para o meu amor à sabedoria. Muito pelo contrário, foi por ele me ter servido de exemplo negativo quanto àquilo que idealmente um professor deve ser e ao modo como deve ensinar, já que, ao contrário do que costuma suceder nestes casos, não foi propriamente por causa dele que resolvi dedicar-me à filosofia e tornar-me professor da mesma, mas sim apesar dele que o decidi fazer. Ora, não são apenas as pessoas que nos inspiram pela positiva a querer ser como elas quando formos grandes que são importantes para nós, também aquelas que nos inspiram pela negativa a não querermos ser como elas quando crescermos o são. Portanto, apesar de na altura estar muito longe de mim a ideia de vir a ser professor de filosofia (nessa altura ainda queria ser cientista, que era o meu sonho de infância) e de o meu professor de filosofia ter sido, sem qualquer exagero, simplesmente um dos piores professores que tive em toda a minha vida escolar como aluno, senão mesmo o pior, a verdade é que tenho de lhe agradecer por me ter ensinado muito daquilo que um professor não deve ser nem fazer. E é por essa razão que, quando os meus alunos sofrem antecipadamente com a perspectiva do primeiro teste da disciplina, não tanto por não saberem o que lhes vai sair à rifa, mas antes por não saberem como serão as perguntas e por recearem o pior quanto a uma possível subjectividade arbitrária ou tendenciosa na avaliação das mesmas, eu lhes conto esta história para os tentar tranquilizar. Como é evidente, por mais que eu tente explicar-lhes que não têm nenhuma razão objectiva para estarem em pânico com o 1º teste de filosofia, essa tranquilidade só se torna real depois de o fazerem e o receberem, só então compreendendo que a disciplina, o seu professor e a sua avaliação não são propriamente bichos papões que devam recear nem sofrer de maior angústia do que aquela sofrida pelos guarda-redes antes do penalty.