sábado, 4 de abril de 2020

O mais importante defensor da teoria institucional da arte

Acabei de confirmar aqui que faleceu George Dickie, um dos mais destacados filósofos da arte das últimas décadas, conhecido sobretudo pela sua defesa da natureza institucional da arte, uma das teorias acerca da definição da arte mais discutidas dos últimos tempos.

Estava tentado a sublinhar a coincidência de, nestes últimos dias, ter em cima da secretária os seus livros The Art Circle: A Theory of Art (1997) e  Art and Value (1998). Mas, dada a frequência com que os tenho à mão, não se trata definitivamente de uma coincidência. No primeiro desses livros, Dickie defende uma versão refinada da sua anterior definição institucional da arte; no segundo encontramos outro dos seus importantes contributos para a filosofia da arte, desta vez acerca do valor e da avaliação da arte.



Há ainda um outro tema da estética em que Dickie se notabilizou e que foi a sua crítica incisiva ao que ele mesmo designou como o mito da atitude estética. No capítulo sobre estética e filosofia da arte que escrevi para o livro organizado por Pedro Galvão, Filosofia: Uma Introdução por Disciplinas (Ed. 70, 2012), apresento de forma muito abreviada o essencial dessa crítica.

Em homenagem a George Dickie, reproduzo abaixo uma passagem do que aí escrevi (pp. 391-393).
De acordo com as teorias da atitude estética temos experiências estéticas porque, diante de muitos artefactos e objectos naturais, adoptamos um modo especial de percepção diferente do normal. Perguntar por que razão temos experiências estéticas em relação a um dado objecto não é uma questão de identificar as propriedades desse objecto que provocam em nós tais experiências, mas antes de tomar em relação a ele uma atitude diferente da atitude prática. Isto explica por que razão, diante do mesmo artefacto ou objecto natural, tanto podemos ter como não ter experiências estéticas: tanto podemos adoptar uma atitude estética como uma atitude normal em relação a eles. A experiência estética é, assim, uma questão de atitude, restando apenas esclarecer em que consiste tal atitude. Isso faz-se, segundo alguns proponentes desta abordagem, identificando os factores psicológicos que nos levam a percepcionar os objectos de modo diferente do habitual. […]

Uma atitude, explica Stolnitz, «é uma maneira de dirigir e controlar a nossa percepção», centrando a nossa atenção de forma selectiva numas coisas em vez de outras. A atitude que adoptamos determina, assim, a forma como percepcionamos o mundo. Mas a atitude mais habitual não é estética; á a atitude prática, que nos leva a encarar as coisas como meios para outros «fins que estão para lá da experiência de as percepcionar». Ao passo que a atitude prática é utilitária, a atitude estética leva-nos a concentrar a nossa atenção exclusivamente no próprio objecto, excluindo qualquer tipo de interesse pessoal ou outro. É neste sentido que Stolnitz fala de atenção desinteressada, procurando também mostrar que a experiência estética deixa de estar associada à beleza, pois é possível descrever como estéticas experiências acerca de coisas que não só não são arte como nem sequer são belas: qualquer coisa se pode tornar um objecto estético e proporcionar experiências estéticas, desde que tenhamos uma atitude estética em relação a ela.

As críticas mais contundentes à teoria da atitude estética foram apresentadas por George Dickie num famoso artigo de 1964 sugestivamente intitulado «Todas as Teorias da Atitude Estética Falham: O Mito da Atitude Estética». A estratégia de Dickie consiste basicamente em pegar em exemplos que alegadamente ilustram a distinção entre atenção interessada e atenção desinteressada para mostrar que eles não mostram o que era suposto mostrarem, concluindo que tal distinção não se justifica. E assim deixa também de haver justificação para falar de atitude estética.

Dickie dá o exemplo de uma estudante do conservatório que ouve atentamente uma dada peça musical com o propósito de se preparar para um exame. Dir-se-ia que, dado haver um propósito ulterior, a sua atenção não é desinteressada, ao contrário daquela pessoa que ouve a mesma peça sem qualquer outro propósito. Mas será que encontramos aqui dois tipos diferentes de atenção? Dickie diz não haver qualquer razão para pensar tal coisa, pois ambos podem prestar atenção aos mesmos aspectos e ambos podem reagir da mesma maneira, gostando do que ouvem ou aborrecendo-se com isso, independentemente dos motivos que os levaram a ouvir essa música. É certo que um pode estar mais atento a certos aspectos do que outro, mas estar mais ou menos atento não é o mesmo que haver diferentes espécies de atenção, pois a natureza da atenção não se altera por isso, do mesmo modo que não estamos perante diferentes espécies de febre quando uma pessoa tem 38º e quando tem 39º de temperatura. Mesmo que o primeiro ouvinte preste atenção a certos pormenores e o segundo não, isso não mostra que eles têm um tipo diferente de atenção, pois não prestar atenção a algo é estar desatento, não é ter um tipo diferente de atenção. Prestar atenção a umas coisas em detrimento de outras apenas mostra que há diferentes motivações e não diferentes tipos de atenção. Assim, quando falamos de interesse e desinteresse estamos a falar de motivação e não de atenção.

Outro exemplo, referido por Dickie, de suposta atenção não desinteressada é o de alguém que, numa exposição de pintura, repara num quadro que lhe evoca situações por que passou, levando-o a deter-se diante dele ao mesmo tempo que recupera memórias antigas. Mais uma vez, e ao contrário do que Stolnitz pensa, não é correcto concluir que há aqui uma espécie de atenção interessada. O que há é desatenção, pois a atenção deslocou-se do quadro para algo diferente: as memórias por ele despertadas. Deste modo, Stolnitz chama erradamente «atenção interessada» à desatenção.