domingo, 24 de março de 2024

Quando há arte!

Foi com muito gosto que contribuí para o livro de homenagem à saudosa professora Carmo d'Orey, uma das pessoas com quem mais aprendi a reflectir sobre a arte e cuja obra A Exemplificação na Arte é, apesar do seu subtítulo, muito mais do que um estudo sobre Nelson Goodman, com quem ela também trabalhou. Trata-se, em minha opinião, de uma das mais relevantes obras de filosofia da arte jamais escritas em português: pelo inigualável rigor filosófico, pela sua abrangência e pela enorme familiaridade com os diferentes universos da arte. Diria mesmo que, naquelas novecentas páginas, não se encontra um único parágrafo dispensável. 

O livro de homenagem à professora Carmo d'Orey foi organizado por Vítor Guerreiro (U. Porto), Carlos João Correia (U. Lisboa) e Vítor Moura (U. Minho) e conta com dezasseis ensaios, incluindo o meu. Mas todos eles escritos por autores bem mais credenciados do que eu. 


O meu ensaio é sobre o estatuto artístico das falsificações de arte, justamente intitulado «Arte e contrafacção: valor estético e estatuto das falsificações». Começa assim:

Ao esclarecer a distinção introduzida por Goodman entre artes autográficas e artes alográficas, Carmo D’Orey recorre ao seguinte exemplo ficcional: 

Se pusermos um número infinito de macacos a escrever à máquina durante um infinito período de tempo, algum deles acabará por escrever Os Lusíadas sem que falte uma vírgula ou um ponto. Se os pusermos a tocar piano, algum acabará por tocar a Sonata ao Luar sem uma única nota falsa. Mas se os pusermos a pintar, com todos os materiais necessários, nenhum deles pintará a Gioconda, embora algum deva fazer uma pintura tão semelhante que, pelo simples olhar, os especialistas não poderão distingui-la do original. (Carmo D’Orey 1999: 69)

 

Mas por que razão os macacos seriam incapazes de pintar a Gioconda, ao passo que iriam escrever Os Lusíadas e tocar a Sonata ao Luar?

A justificação para que nenhum macaco seja alguma vez capaz de pintar Gioconda é a de que, seguindo Goodman, as obras de arte autográficas, como é o caso das pinturas, são entidades particulares concretas não-repetíveis. Sendo assim, qualquer réplica de uma pintura, por mais perfeita que seja, será uma pintura diferente. A réplica ou duplicação de Gioconda feita pelos macacos seria, pois, apenas uma cópia e não uma instância da obra original. E se alguém produzir uma cópia perfeita de Gioconda, fazendo-a passar pelo original, tal cópia será não apenas uma mera cópia, mas uma falsificação.

Cenário diferente encontramos nas chamadas artes alográficas, como a literatura e a música. Tanto as obras literárias como as obras musicais obedecem a um sistema de notação constituído por um conjunto de caracteres e regras de uso identificáveis que permitem a sua repetibilidade. Neste caso, a obra musical não é senão a classe de execuções concordantes com um dado sistema notacional (a partitura). É por isso que, quando assistimos a uma execução da Sonata ao Luar, não dizemos que estamos a ouvir uma cópia ou falsificação da Sonata ao Luar, mas a Sonata ao Luar, ela própria.

Como resume Carmo D’Orey (ibid.), ao passo que o locus da identidade na pintura é um objecto individual, na música é uma classe de execuções. Daí que, de acordo com a distinção de Goodman, nunca encontremos cópias nem falsificações das obras musicais; e tampouco encontremos diferentes instâncias de uma mesma pintura.   

sábado, 23 de março de 2024

Três livros actuais, para pensar e discutir

Há tempos, numa conversa sobre livros com amigos, referi alguns que gostaria de ver traduzidos para português. Felizmente, três deles acabaram mesmo por ser publicados em Portugal.

A Física e as Grandes Questões da Vida, o mais recente livro da física teórica alemã Sabine Hossenfelder é talvez o melhor que li nos últimos tempos. Hossenfelder é uma cientista invulgar. Desemproada e destemida entre os grandes nomes da física contemporânea, Hossenfelder considera que muitos deles acabam por se enredar em confusões conceptuais que um pouco de treino filosófico poderia ajudar a evitar. Mas ela é também muito popular no YouTube, onde tem um dos mais populares canais sobre ciência, além de mostrar a sua faceta de cantora e produtora de música pop electrónica. A sua investigação centra-se nos fundamentos da física e da mecânica quântica. Porém, A Física e as Grandes Questões da Vida não é uma obra de divulgação científica. E também não se destina a um público especializado. É sobretudo um livro de filosofia: trata das questões filosóficas fundamentais com que os físicos teóricos são frequentemente confrontados, as quais se situam nas fronteiras da ciência e da filosofia. São questões como: O que causou o Universo? O que é o tempo? Há lugar para o livre-arbítrio? A consciência é computável? O que somos e de que somos feitos? Há limites para o conhecimento? Hossenfelder procura, de forma desapaixonada e com um subtil mas incisivo toque de humor, mostrar até onde o melhor conhecimento científico disponível nos permite ir na resposta para tais perguntas. Ao fazê-lo, também nos permite compreender melhor os mais recentes desenvolvimentos da física.  


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A Matéria de Que Somos Feitos é a tradução de Material Girls, um dos mais discutidos livros dos últimos tempos no Reino Unido. Foi este livro, algo atípico na produção filosófica de Kathleen Stock, que a tornou amplamente conhecida e que também acabou por a afastar irremediável e definitivamente da Universidade de Sussex, onde fora professora de filosofia da arte. Tudo começou com uma conferência que a autora fora convidada a proferir sobre os conceitos de sexo e género. As reações foram de tal ordem, que decidiu escrever este livro para explicar e defender de forma mais completa e robusta a sua posição de que uma mulher transgénero não é uma mulher e que um homem transgénero não é um homem, não havendo maneira de um homem passar a ser uma mulher nem de uma mulher passar a ser um homem. Apresentou também razões contra a partilha de casas de banho por pessoas de sexos diferentes. A tese central do livro é que o sexo de uma pessoa não é uma questão subjectiva e que isso não pode deixar de depender da matéria biológica de que cada um de nós é feito. Apesar de não ser uma tese particularmente inovadora, o livro gerou uma feroz contestação, sobretudo nos campus universitários ingleses. Foram realizadas manifestações públicas para tentar silenciar Stock onde quer que fosse convidada a apresentar e discutir publicamente as suas ideias. A contestação acabou por levar Stock a abandonar a sua promissora carreira académica, fruto da hostilidade do próprio corpo docente da Universidade de Sussex. Tudo isto parece muito estranho, dado que Stock não tem sido a única a defender as mesmas teses. Porém, há duas características que fazem dela uma caso especial e que a tornam especialmente «perigosa» aos olhos dos seus censores: uma delas prende-se com o facto de Stock ser uma mulher lésbica, casada com outra mulher; a segunda, e talvez mais difícil de digerir, reside no rigor analítico e na clareza da sua argumentação filosófica, solidamente apoiada pelos dados empíricos disponíveis. Trata-se, além do mais, de um excelente exemplo da melhor prática filosófica e de como a filosofia pode ser útil para nos ajudar a compreender melhor o mundo.   


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O último livro de Susan Neiman é uma espécie de alerta sobre a crescente descaracterização da esquerda levada a cabo pelo chamado activismo woke. A Esquerda Não é Woke começa por expor os princípios fundamentais que historicamente têm caracterizado a esquerda e, de seguida, mostrar que o wokismo, apesar de se reclamar de esquerda, viola claramente tais princípios. Segundo Neiman, a esquerda liberal herdou do Iluminismo os seus três princípios políticos fundamentais: o universalismo, por oposição ao particularismo divisionista; a distinção entre poder e justiça, contra a ideia de que a justiça é sempre a razão do mais forte; a crença no progresso social, rejeitando a ideia de que a finalidade de qualquer luta é uma luta pelo poder e nada mais. Neiman procura mostrar que o wokismo é incompatível com esses três princípios ou teses, ao mesmo tempo que identifica a origem de tal degeneração. Neiman concede que o wokismo parte de uma genuína preocupação com aqueles que, ao longo da história, têm sido mais maltratados e desprezados. Contudo, tal preocupação acabou, segundo ela, por ser instrumentalizada e capturada por ideias irracionalistas que pouco ou nada têm que ver com a defesa dos mais fracos e humilhados. Trata-se das ideias de pensadores como Foucault, Carl Schmitt, Heidegger e outros que, apostados em ajustar contas com a história, eram motivados sobretudo pelo combate aos ideais iluministas da racionalidade, da universalidade e do progresso da humanidade. Assim, o wokismo resulta de motivações justas, mas instrumentalizadas por propostas teóricas reacionárias e iliberais. O activismo woke acaba, assim, por ser um subproduto corrompido da esquerda. Não é essa, pois, a esquerda liberal e progressista em que Neiman se reconhece. Até aqui, tudo bem. Mas o problema do raciocínio de Neiman é que o seu ponto de partida não é claro: a esquerda é apenas um conjunto de princípios teóricos ou inclui também as reivindicações concretas dos que actuam em nome dela? Se a prática concreta também for relevante para caracterizar a esquerda, então deixa de ser rigoroso afirmar que a esquerda não é woke. Os termos usados para caracterizar a esquerda não devem, de resto, ser diferentes dos termos usados para caracterizar a direita, pelo que se a prática não contar para um lado, então também não deve contar para o outro. Qual é, então, a verdadeira esquerda? É a esquerda dos princípios, isto é, a tal esquerda ideal? Ou será a dos que, na prática, agem politicamente em nome da esquerda, isto é, a esquerda real? Ou será uma combinação de ambas? Claro que a esquerda que interessa a Neiman é a esquerda dos princípios, que ela designa de esquerda liberal. Mas, nesse caso, o título do livro é enganador, dado que apenas alguma esquerda não é woke.