quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Filosofia e literatura: Lolita

Aí está mais um dia mundial da filosofia. Desta vez foi-me pedido para escrever sobre uma obra literária que levante questões filosóficas. Escrevi o seguinte texto sobre o romance Lolita, de Vladimir Nabokov.

 
Pode a literatura substituir a filosofia? E a filosofia, pode substituir a literatura? A resposta é, em ambos os casos, negativa. Felizmente, seja para quem aprecia literatura, seja para quem se interessa realmente pelas questões filosóficas. Mas do facto de literatura e filosofia não serem a mesma coisa, não se segue que cada uma delas não possa dar importantes contributos para a outra. A literatura pode fecundar a filosofia tanto como a filosofia pode tornar a literatura fecunda, cada uma no seu próprio domínio. 

Embora os filósofos criem por vezes cenários ficcionais — como o fizeram Platão com a alegoria da caverna e o anel de Giges, Descartes com o génio maligno, Rawls com a posição original, Nozick com a máquina de experiências, Searle com o quarto chinês ou Putnam com a Terra gémea e o cérebro numa cuba, entre outros exemplos —, eles estão sobretudo interessados em desenvolver respostas para certo tipo de questões. Essas respostas consistem em teorias desejavelmente suportadas por bons argumentos. A tarefa do filósofo é, pois, essencialmente teórica. O poeta e o romancista, por sua vez, tipicamente não visam resolver problemas nem desenvolver teorias. Mas, quando se trata de boa filosofia e de grande literatura, tanto o filósofo como o poeta e o romancista nos desafiam e nos deixam a pensar, impelindo-nos a rever algumas das nossas ideias e convicções aparentemente mais firmes. 

A grande literatura é aquela que consegue testar as nossas intuições mais básicas: as nossas crenças morais, estéticas, políticas, religiosas, etc. Não é tanto aquela que afaga os nossos preconceitos e vai de encontro ao que já damos como garantido. É certo que pode ilustrar de forma luminosa algumas ideias que temos e que ainda não estão completamente claras para nós, mas torna-se filosoficamente fecunda sobretudo quando nos consegue incomodar e nos quer tirar a razão, surpreendendo-nos sobre nós próprios e as nossas reacções, fazendo-nos vacilar e pensar novamente. Quando consegue fazê-lo com elegância e subtileza, sem nos dizer o que devemos pensar ou o que devemos sentir, a literatura adquire uma eficácia inigualável, o que só está ao alcance de uns quantos génios literários. É por isso que os romances em que o narrador se põe a pensar pelo leitor me parecem insuportáveis. E isso explica por que razão os romances moralizadores — que não é a mesma coisa que os romances com conteúdo moral — só convencem os já convencidos. Ora, um desses romances não é certamente Lolita, do escritor russo Vladimir Nabokov. 

Lolita, originalmente escrito em inglês mas publicado pela primeira vez em França no ano de 1955, é um romance irresistivelmente perturbador. Não foi, de resto, por acaso que a sua publicação foi proibida em muitos países europeus — e não só — e que nunca deixou de gerar polémica. Não só porque nos conta a história de uma personagem moralmente sórdida, mas porque Nabokov o faz com tal requinte, que chega a levar o leitor a simpatizar com tal personagem, fazendo estremecer as convicções morais mesmo do leitor mais distanciado. 

O livro conta a história de um professor de literatura, Humbert Humbert, que vai da Europa para os Estados Unidos para ensinar literatura numa universidade americana. Acaba por arrendar um quarto na casa de uma mulher viúva, onde vive com a sua filha de 12 anos, Dolores Haze, a quem a mãe chama Lolita — o diminutivo de Dolores. O professor fica imediatamente apaixonado por Lolita, fantasiando o mais improvável e voluptuoso romance com aquela «sua» ninfita. A mãe de Lolita começa, por sua vez, a sentir-se atraída pelo professor. Humbert Humbert acha a mãe de Lolita completamente desinteressante senão mesmo detestável, mas acaba por se casar com ela com o intuito de ficar para sempre perto de Lolita. Mas isso não é suficiente, pois deseja ficar apenas com Lolita, o que o leva a cismar em matar a sua insuportável mulher. O problema é que não só não tem coragem como lhe parece imprudente e mesmo indigno de uma pessoa refinada como ele ter de manusear armas ou dar-se ao trabalho de misturar veneno na comida da sua mulher. Ainda assim, o destino dá-lhe caprichosamente uma ajuda: num belo dia, recebe a feliz notícia de que a sua mulher foi atropelada mortalmente, deixando-o como único responsável pelo sustento e pela educação da sua ninfita. Fica, assim, o caminho livre para desenvolver uma relação incestuosa e pedófila com Lolita. 

Ora, tudo isto é moralmente repugnante. Contudo, só um escritor genial consegue tornar uma história destas irresistível, a ponto de deixar o leitor ávido, surpreendido e mesmo irritado com a sua própria complacência em relação a uma personagem tão execrável. E este é o aspecto filosoficamente mais interessante do romance, na medida em que funciona como um teste às nossas intuições morais mais básicas, tal como os filósofos imaginam situações hipotéticas para testar as nossas convicções e as suas teorias. As teorias filosóficas não podem ser testadas com experiências reais. Felizmente, a boa literatura é capaz de gerar as mais vivas experiências ficcionais. Mas estas experiências só são eficazes se tiverem impacto real no leitor. Isso é tarefa para os grandes génios da literatura, como Sófocles, Shakespeare, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, George Orwell ou... Vladimir Nabokov. 

Outra questão filosófica interessante que Lolita sugere é a da avaliação da arte, em particular a relação entre arte e moralidade: será que a grande arte pode ser imoral? Tolstói considerava a arte como algo valioso por contribuir para o aperfeiçoamento moral de quem a aprecia. Assim, uma falha moral numa obra implica sempre, segundo ele, uma falha artística, comprometendo irremediavelmente o seu valor qua arte. Esta posição é conhecida como moralismo. A perspectiva de Tolstói é de tal modo exigente que ele próprio conclui que quase nenhum dos seus romances — Guerra e Paz e Ana Karenina, por exemplo — tem valor artístico precisamente por os considerar moralmente fúteis. De acordo com Tolstói, talvez Lolita fosse uma obra literária falhada. Em sentido oposto, o autonomismo é a perspectiva filosófica segundo a qual nenhum defeito moral é um defeito artístico, na medida em que a arte é autónoma e, portanto, independente da moral. O esteticismo é uma forma de autonomismo e o decadentismo uma forma extrema de esteticismo, de acordo com a qual a estética se sobrepõe sempre à moral: qualquer imoralidade é justificável se for cometida em nome da arte. 

Resta saber se Lolita é mesmo uma obra imoral. Se encararmos Lolita como uma espécie de experiência ficcional destinada a testar a firmeza das nossas convicções morais, então talvez seja uma obra com um grande interesse moral e filosófico. Há quem, como eu, pense que é este o caso e que é precisamente isso que faz de Lolita um dos mais importantes romances do século XX. É por isso que ler Lolita é um desafio intelectual, um teste moral e... um inesquecível prazer estético.





sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Diz a coruja sobre orfeu



Este ano termina com uma excelente novidade editorial: Filosofia da Música: Uma Antologia, organizada por Vitor Guerreiro para a editora Dinalivro (colecção Filosofia Pública). Este livro tem todas as qualidades para ser uma obra de referência para o leitor de língua portuguesa interessado nas questões filosóficas colocadas pela música e para quem, além das questões sobre o consumo e da mera fruição musical, se interessa também pela discussão esclarecida da arte sónica. É interessante para filósofos porque se trata de filosofia no seu melhor, e é interessante para quem pensa que a música dá que pensar porque reflecte sobre a própria natureza da música e da sua compreensão.  

O livro é ainda uma referência porque nele se encontram alguns dos mais importantes textos de filosofia da música, da autoria dos mais destacados filósofos da arte contemporâneos: Jerrold Levinson, Stephen Davies, Andrew Kania, Julian Dodd, Jenefer Robinson, Nick Zangwill, Roger Scruton e Malcolm Budd. Só um nome sonante da área da filosofia da música está mesmo a faltar: Peter Kivy. Isso acontece porque, como a excelente introdução de Vítor Guerreiro deixa antever, os textos apresentados funcionam como um diálogo aos pares: cada par de textos diz respeito a um problema, sendo o segundo texto uma resposta alternativa à posição defendida no primeiro. Foi apenas para tornar o diálogo filosófico mais vivo que o organizador optou por aqueles textos em vez de outros. Mas o texto de referência de Kivy sobre ontologia da música, intitulado «Orquestrando o platonismo», em que este responde ao texto de Levinson, também foi excluído porque o próprio Kivy declinou o convite para a sua publicação por ter mudado de opinião sobre o assunto. Contudo, as ideias de Kivy são referidas na introdução, onde Vítor Guerreiro nos dá uma excelente panorâmica dos principais problemas e teorias da filosofia da música, em particular dos quatro problemas a que os textos seleccionados respondem: definição de música, ontologia da música, expressão musical e compreensão musical. 

Do que tenho acompanhado é provavelmente o melhor livro de filosofia publicado entre nós neste ano.