domingo, 31 de dezembro de 2017

Lobo das estepes


A escassas horas de se concluir este ano de 2017 e de começar o de 2018, gostaria de escrever algo que vem mesmo a propósito: Steppenwolf. E vem a propósito porquê? 

Bem, porque este é um dia como qualquer outro e qualquer dia é o mais adequado para se escrever sobre qualquer coisa que nos apetece. Portanto, é de Steppenwolf, o conjunto musical —  aliás, o grupo; ou será antes a banda? — formado em Toronto (Canadá) nos distantes anos 60 do século passado. 

Os Steppenwolf — Lobo das Estepes, em português — são mais conhecidos pela canção Born To Be Wild, ponto alto da banda sonora do filme Easy Rider, uma despreocupada deambulação pelas estradas do sul dos EUA do trio de motoqueiros protagonizado por Dennis Hopper, Peter Fonda e Jack Nicholson. Born To Be Wild é, de resto, apontada por muitos como a música que está na origem do sub-género musical que veio a ser conhecido como heavy metal

Seja isso correcto ou não, Born To Be Wild está longe de ser o melhor que o blues-rock ácido dos Steppenwolf deu à luz. Os Steppenwolf são um caso curioso: não têm um único álbum memorável, mas têm excelentes canções espalhadas por vários deles. Talvez por isso nunca se tenham alçado ao estatuto de outras bandas rock de referência da época, apesar do seu som muito característico, devido sobretudo à guitarra saturada, à voz arranhada de John Kay e ao órgão dito psicadélico de Michael Wilk, que acabam por dar uma volta interessante aos blues de que partem.

Mesmo não sendo dos pontos altos da história da música rock, os Steppenwolf continuam a soar muitíssimo bem, sobretudo se não estivermos condicionados pelo que está ou deixa de estar actualmente em voga. Canções como The Monster, o musicalmente inspirado protesto contra a política americana que levou à Guerra do Vietname, mas também Desperation, For Ladies Only (desde que, neste caso, se esqueça o despropositado e pindérico interlúdio pianístico a meio da canção), Hippo Stomp, What Would You Do (If I Did That To You) e, claro, Born To Be Wild, entre outras, dariam um grande álbum de heavy-acid-blues-rock.

Há outras compilações muito bem sucedidas comercialmente, mas estão longe de me convencer. Aqui fica a minha.

E pronto, este foi o meu contributo para a despedida do ano de 2017. Até 2018 vou ficar calado... se conseguir.   

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Scruton sobre a natureza humana


Neste livro, Roger Scruton lança um olhar original sobre a natureza humana, sem deixar de ter em conta os mais sólidos resultados científicos — da biologia à ciência cognitiva e da psicologia à etologia — mas também o legado das artes e da cultura em geral. E consegue fazê-lo com elegância e concisão, sem tecnicismos nem referências gratuitas.

Ao defender que o ser humano não é apenas um animal racional, Scruton procura, de forma corajosa mas tranquila, mostrar como se pode fazer uma leitura do que as ciências têm para nos contar muito diferente da que tem sido habitual. Nesse sentido, Scruton rejeita não só as perspectivas de muitos psicólogos evolucionistas, mas também as concepções morais utilitaristas e sobretudo as abordagens materialistas da natureza humana — como as de Daniel Dennett e Richard Dawkins —, argumentando que não encontraremos a verdadeira natureza humana em animais racionais despojados dos elos essenciais que, além da biologia e da racionalidade, nos definem como seres que partilham um mesmo universo de valor. De acordo com Scruton, é neste universo de fidelidades, obrigações, direitos e relações que se descobre o eu que cada um de nós é e se revela a nossa natureza singular: a de sermos pessoas. Isto, sustenta Scruton, é algo que nenhuma categoria biológica permite compreender.


É no contexto dessa concepção da natureza humana decididamente personalista que Scruton nos fala do significado humano do riso, da sexualidade, do prazer, da culpa ou da moral, transferindo para quem o lê uma enorme bagagem literária e cultural que, mesmo quando defende pontos de vista não coincidentes com os do leitor, não deixa de ser intelectualmente gratificante.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Reinventar o marxismo


John E. Roemer é um economista político e um dos mais destacados filósofos marxistas dos últimos anos, juntamente com G. Cohen, J. Elster, van Parijs e outros representantes do chamado marxismo analítico.  

Este livro de Roemer é uma das mais claras tentativas de recuperação de um socialismo de inspiração marxista ainda não experimentado. Nesse sentido, Roemer propõe um modelo original de funcionamento de uma economia socialista, procurando mostrar como se comporta na prática.

Demarcando-se do socialismo revolucionário, utópico e romântico, que Roemer aqui descarta tranquilamente, estamos agora perante uma proposta concreta de organização socialista que não só aceita os mercados como lhes atribui uma grande utilidade numa economia socialista. E considera também que a denúncia da propriedade privada como fonte de desigualdades injustas não implica a defesa da estatização da propriedade (como acontecia nas falidas sociedades comunistas). 

Assim, Roemer tanto rejeita as nacionalizações das empresas como as suas privatizações, defendendo a propriedade pública não estatal e um novo tipo de titularidade, a considerar seriamente: uma espécie de carteira de ações ou cupões de empresas, atribuídos a cada pessoa maior de 21 anos, que cada um gere da forma que lhe parecer melhor, podendo trocar ou negociar ações, sem contudo poder transformá-las em liquidez. 

Roemer explica de forma bastante clara no livro quais as vantagens e o propósito disso, tendo em conta o triplo objectivo socialista da igualdade de oportunidades: para a auto-realização e o bem-estar; para a influência política; para o estatuto social. 

O livro estará nas livrarias no fim deste mês de Outubro e agradou-me muito estar ligado à sua publicação.

sábado, 14 de outubro de 2017

Os Beatles e o fim da ditadura musical do século XX


Quem já foi incomodado com infiltrações de água em casa deve ter descoberto que há casos em que de nada serve barrar-lhe o caminho, pois ela sempre acaba por encontrar outro, por vezes bem improvável.

Creio que algo semelhante ocorreu com a música na segunda metade do século XX. Estou a pensar no que, graças ao génio dos Beatles, aconteceu à melodia tonal, que apenas conseguia sobreviver dignamente em algumas variantes de jazz, no cinema e pouco mais.

Não é exagerado afirmar que a melodia é a principal responsável pelo irresistível apelo da música ocidental junto dos melómanos. E também não é por acaso que os amantes de música são referidos como melómanos e não harmoniómanos, ritmómanos ou timbrómanos. Embora quase toda a música, tonal ou atonal, tenha melodia — mesmo que algumas pessoas erroneamente protestem que certas peças atonais não são melódicas —, estou a pensar particularmente na melodia tonal.

A melodia tonal sempre foi a principal porta para a fruição musical, seja na música coral, na música puramente instrumental ou na ópera. Mas foi sobretudo na canção que a melodia tonal reinou acima de tudo o resto, presenteando-nos com verdadeiros tesouros musicais concentrados. Schumann, Schubert, Brahms, Wolf, Mahler e Strauss, entre outros, consolidaram a canção como um género musical de primeiríssima importância, enriquecido também por franceses e ingleses como Poulenc e Britten, respectivamente. E até os italianos lhe dão o destaque merecido, mesmo quando chamam ária à canção implantada na trama operática.

Mas muita coisa mudou no panorama musical do século seguinte. Assente na convicção de que o século XIX tinha esgotado os recursos da composição tonal e de que toda a música ocidental precisava de se reinventar, o início do século XX cravou o primeiro prego do que muitos acreditaram ser o caixão da melodia tonal, uma das vítimas da crise da tonalidade.

O enterro chegou a ser celebrado precipitadamente em plena ditadura vanguardista de meados do século passado, quando os proprietários institucionais da música dessa altura decretavam ferozmente o que era ou não era musicalmente admissível. É, de resto, irónico e significativo como algumas das mais belas canções jamais escritas — As Quatro Últimas Canções — compostas precisamente por essa altura, soaram como um comovente canto do cisne da melodia tonal ela própria. Ainda por cima escritas por alguém — Richard Strauss — que no passado chegara a roçar os limites da tonalidade.

Pouco depois desse melancólico e dourado ocaso outonal, já a ditadura vanguardista, liderada pela arrogância serialista, estendia o seu domínio sobre praticamente todo o universo musical erudito, fazendo da melodia tonal uma espécie de herança vergonhosa de um passado sepultado.

Não seria rigoroso afirmar que a melodia desaparecera totalmente, como referi acima, mas sobrevivia dignamente sem o brilho do passado. Até que surgiram os Beatles, que, como a água, irresistivelmente abriram outro caminho, reconciliando definitiva e descomplexadamente os amantes da música com a melodia tonal. Foram eles que retomaram o fio perdido que vinha de Schubert, Wolf e Verdi, devolvendo à melodia todo o seu esplendor e o público que já lhe faltava.

Claro que os Beatles não fizeram essa revolução completamente sozinhos. Mas sem o seu génio musical talvez a água da melodia tonal não tivesse encontrado leito apropriado. Além disso, o génio musical dos Beatles era totalmente afirmativo, pois não exprimia uma atitude negativa de recusa musical fosse do que fosse. Eles próprios aliaram, de forma espontânea e desinibida, uns toques de experimentalismo musical vanguardista à simplicidade desarmante dos princípios tradicionais da melodia tonal. Com os Beatles a música passou mesmo a ser diferente e voltou, de forma resoluta, a ser popular, como outrora foram as canções de Schubert ou as árias de Verdi.

De resto, não há muito na música popular urbana actual em que não se encontre, para o bem e para o mal — tantas vezes para o mal —, a herança musical dos Beatles. Com a diferença de que a música dos Beatles continua a ter a frescura das criações intemporais.

O mais surpreendente de tudo isto — ou talvez não — é que, se tivermos em conta a educação musical formal dos seus membros, os Beatles eram praticamente semi-analfabetos musicais. O que só torna o seu génio ainda mais notável, até porque ele não consiste simplesmente no seu sentido melódico, mas também nas suas harmonias vocais, no uso do contraponto e numa descomplexada liberdade instrumental que confere a muitas das suas canções uma riqueza tímbrica inesperada — a que o quinto Beatle, George Martin, não é alheio.

As mais de 210 canções compostas e gravadas pelos Beatles oferecem-nos abundantes exemplos do que digo. Mas, entre tantas canções memoráveis, arrisco a minha lista das melhores vinte, apresentada no post anterior a este. 

Beatles: 20 armas de revolução massiva

Esta é a minha lista das vinte melhores canções dos Beatles. O que não falta por aí são listas idênticas a esta: das melhores vinte, melhores dez, melhores cinquenta. Há até quem, como neste caso, ordene as 213 canções originais dos Beatles da menos boa até à melhor, acrescentando a devida justificação. Devo dizer que só nove das vinte melhores dessa lista constam da minha. Contudo, coincidimos nas três melhores, embora a ordem seja ligeiramente diferente.

A verdade é que não tenho grandes dúvidas em relação às cinco melhores, seja por que ordem for. Aqui fica a lista comentada, com comentários um pouco mais alargados apenas para essas cinco.

1. A Day In The Life (Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, 1967)
Esta canção consegue reunir o melhor de John Lennon com o melhor de Paul McCartney. Surge, de resto, da reunião de duas canções completamente diferentes de cada um deles: começa com a parte de Lennon e passa para a de McCartney, com uma transição instrumental de pura liberdade orquestral. É uma canção invulgar a todos os títulos: acordes de guitarra ao fundo que parecem não avançar, o piano como que a dar uma ordem de partida e que imediatamente se acomoda para que a voz moderadamente plangente de Lennon, ocasionalmente pontuada pela batida aparentemente irregular da bateria de Ringo Starr, comente as notícias do jornal do dia — alguém ganhou a lotaria, um jovem morreu num acidente de automóvel. A parte orquestral que se segue é uma verdadeira vertigem sonora ascendente que subitamente se acalma e passa para um despertar algo apressado, cantado agora por McCartney. A vertigem sonora orquestral regressa no final e conclui de forma improvável: um verdadeiro ponto final sonoro, com vários pianos a dar em uníssono um único acorde que se prolonga por muito tempo sem se desvanecer. Quem pensava que nada mais havia para inventar dentro dos cânones melódicos tradicionais, devia ouvir isto.

2. Penny Lane (single, 1967)
Parece que esta obra-prima composta por McCartney foi a resposta a Strawberry Fields Forever, outra obra-prima, composta pouco antes por John Lennon. Tal como a canção de Lennon, também Penny Lane evoca recordações da infância em Liverpool. Penny Lane é o nome de uma rua que fica perto da zona onde McCartney morava e por onde passava frequentemente. A letra consiste nas suas memórias de infância de quando cruzava essa rua: coisas banais, mas com os sons e as cores (Penny Lane is in my ears and in my eyes) da candura infantil que simplesmente se satisfaz com a felicidade de um céu azul (the blue suburban skies). A canção começa logo por surpreender com a sua melodia descendente, empurrada pelo baixo bem delineado e saltitante de McCartney. Outro aspecto que não é muito vulgar na música popular prende-se com o uso da bitonalidade, saltando de um tom para o outro ao longo da canção. Não menos surpreendente é o arranjo instrumental, em que se destaca a parte dos metais (trompetes) e um inesperado piccolo. Por vezes penso ser esta a melhor canção do Beatles.
The blue suburban skies,
da ponte sobre o caminho de ferro, em Penny Lane.

3. Strawberry Fields Forever (single, 1967)
Mais uma brilhante canção, que também começa de forma cativantemente estranha: uma primeira frase cantada de forma assertiva e imediatamente quebrada por uma espécie de anti-clímax melódico. E também ela é sobre a felicidade da infância de Lennon. Strawberry Fields é o nome do sítio, ali mesmo ao pé de casa, onde a sua tia o levava no Verão para brincar livre e despreocupadamente com outras crianças no pequeno bosque que lá havia: quem me dera ser sempre criança, é o que Lennon exprime com o refrão Strawberry Fields Forever. A sensação de algo guardado na memória de infância é dada logo a abrir com os aconchegantes acordes de mellotron, um instrumento inventado por essa altura, tocado por McCartney. Este era, aliás, um dos maiores segredos do sucesso musical dos Beatles: as canções de cada um dos dois principais autores eram sempre enriquecidas com as ideias do outro. Por isso se justifica plenamente atribuir a autoria à dupla Lennon e McCartney, independentemente de quem é o autor da ideia original. Tanto Penny Lane como Strawberry Fields Forever foram gravadas para o álbum Sgt. Pepper's, mas acabaram por sair à parte pouco antes de sair aquela obra-prima.

Strawberry Fields, em Liverpool

4. Eleonor Rigby (Revolver, 1966)
Outra canção irresistível, da autoria de McCartney, toda ela acompanhada apenas por uma orquestra de câmara, mas com o ritmo de uma genuína canção pop. A letra é sobre as pessoas solitárias e as pequenas coisas com que tentam preencher o seu quotidiano. A composição começa de forma pouco habitual, com o refrão. A veemência do refrão reforça o que se pede com as palavras (Ah, look at all the lonely people!) e contrasta melodicamente com a parte descritiva da letra. Por sua vez, o contraponto é breve e astuciosamente usado para relembrar o convite inicial contido no refrão. Tudo nesta canção funciona de forma perfeita e expressiva. Só os Beatles foram capazes de fazer uma canção assim.

5. You Never Give Your Money - Sun King - Mean Mustard - Polythene Pam - She Came In Through The Bathroom Window - Golden Slumbers - Carry That Weight - The End (Abbey Road, 1969)
Em rigor, não temos aqui apenas uma canção, mas uma miscelânea de fragmentos de canções diferentes, aparentemente ligados entre si e correspondendo a quase todo o lado B de Abbey Road. Este foi o último álbum gravado pelos Beatles, apesar de ter sido lançado antes de Let It Be, gravado anteriormente. Lennon, autor de metade das canções — sendo a outra parte de McCartney — explicou que se tratou de aproveitar antigos esboços de canções abandonadas por ambos e que decidiram reunir aqui. A verdade é que, apesar das diferenças melódicas, e não só, elas ouvem-se como se fossem capítulos de uma só peça: como se tratasse de diferentes andamentos de uma sinfonia rock ou das árias de uma espécie de ópera rock sem libreto. O resultado é simplesmente brilhante: melodias viciantes e imprevisíveis, como Golden Slumbers; harmonias vocais cativantes como em You Never Give Me Your Money ou Sun King, com um toque de Beach Boys; guitarras incisivas como em She Came In Through The Bathroom Window e The End; hinos imparáveis como Carry That Weight; orquestrações brilhantes como em Carry That Weight e The End. As letras são quase todas pequenos flashes de situações banais e, por vezes, roçam mesmo o non sense, especialmente a mistura de palavras de diferentes línguas latinas em Sun King. Mas tudo funciona de forma irresistível, numa variedade melódica, vocal, harmónica e instrumental que nunca cansa.

6. She Said She Said (Revolver, 1966)
Os Beatles num registo mais puramente rock, com guitarras firmes, ácidas e enleantes. E a voz ligeiramente rugosa de Lennon subtilmente iluminada pelas harmonias vocais em que repousa.

7. She's Leaving Home (Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, 1967)
Uma pérola vocal, harmónica e orquestral. É sobre a uma jovem provinciana que sai de casa dos pais contrariados, em busca sabe-se lá bem de quê. Uma das coisas que mais se destaca nesta canção é o uso de duas vozes em contraponto, apresentando cada uma delas uma perspectiva diferente: a dos pais consternados e a da filha em busca de liberdade.

8. In My Life (Rubber Soul, 1965)
Uma das canções mais simples e mais belas dos Beatles. Tudo vem a propósito, incluindo o solo discreto de guitarra eléctrica no início, o belo solo bachiano no piano a meio, e o falsete final. De uma simplicidade tocante.

9. If I Feel (A Hard Day's Night, 1964)
Outra melodia tocante da primeira fase dos Beatles, composta e cantada por Lennon, a que se acrescentam belíssimas harmonias vocais.

10. Yesterday (Help!, 1965)
Diz-se que esta é só a canção com mais versões gravadas em toda a história da indústria discográfica. Não é fácil perceber porquê. Como confessou McCartney, quando a cantou pela primeira vez na guitarra, parecia que estava a cantar algo que já existia por aí desde sempre e que nem sequer tinha sido ele a compô-la. Mas foi. É uma canção melodicamente complexa, com muitos acordes e uma orquestração que acentua ainda mais a sua força melódica.

11. Here, There and Everywhere (Revolver, 1966)
Se a anterior é uma melodia complexa, esta é bem singela. Mas tem uma beleza desarmante e um sabor agradavelmente nostálgico, dado sobretudo pelos coros.

12. Here Comes The Sun (Abbey Road, 1969)
Nem só de Lennon e McCartney vivem os Beatles, como o prova esta sedutora canção, escrita e cantada por George Harrison. O que mais me agrada nela é a toada elegante e optimista como que a empurrar-nos suave mas decididamente. Gosto particularmente do toque da tarola de Ringo Starr.

13. Tomorrow Never Knows (Revolver, 1966)
Se em Yesterday abundam os acordes, nos 3 minutos de Tomorrow Never Knows não há mais do que um, e só um, acorde. Esta canção ilustra bem a ousadia e a liberdade criativa dos Beatles, que nunca se limitam a seguir a mesma fórmula, ao contrário do que infelizmente acontece com grande parte dos músicos rock. O mais interessante nesta canção não é só o uso de recursos tecnológicos inspirados nas experiências vanguardistas da música erudita da altura, como a fita magnética e o looping, mas o seu efeito melódico e o modo como tudo se conjuga de forma estranha mas harmónica.

14. Girl (Rubber Soul, 1965)
Esta é uma das mais bonitas baladas dos Beatles. Lennon canta nostalgicamente o seu amor definitivo pela rapariga que ainda nem sequer conhece (ele próprio disse que a rapariga era Yoko, a qual veio a conhecer anos mais tarde). A melodia, de tão singelamente bela, quase dispensa acompanhamento instrumental. E este restringe-se ao mínimo, como tinha mesmo de ser.

15. The Long and Winding Road (Let It Be, 1970)
Mais uma belíssima canção de McCartney, simultaneamente nostálgica e esperançosa. De facto, ela soa a despedida — a despedida dos Beatles, tanto pela melodia como — mesmo não parecendo à primeira vista — pela letra. Destacam-se os coros distantes e quase etéreos a dar uma aparentemente exagerada grandiosidade à melodia além dos arranjos orquestrais clássicos e envolventes. É certo que tudo isso foi introduzido pela mão solitária do produtor Phil Spector e que muito irritou Paul. Mas, mesmo contra o veredicto de Paul, isso não deixa de mostrar que a música dos Beatles soa bem em todos os registos.

16. While My Guitar Gently Weeps (White Album, 1968)
George Harrison de novo, com outra fantástica canção baseada sobretudo na sua guitarra — e com uma mãozinha de Eric Clapton nos solos instrumentais. A melodia é cantada na voz aparentemente frágil de Harrison, o que lhe dá um toque algo lírico, acentuado por uma batida simultaneamente indolente e acentuada.

17. The Fool On The Hill (Magical Mystery Tour, 1967)
Os méritos desta canção estão longe de reunir consenso, mesmo entre os apreciadores dos Beatles. Mas penso que merece estar entre as melhores por se tratar de um excelente exemplo do lirismo melódico aparentemente despojado de McCartney, conseguindo acentuar esse lirismo com um arranjo orquestral perfeito.

18. Help (Help!, 1965)
Ao usarem magistralmente as segundas vozes e o contraponto, com a sua melodia em forma de fuga, os Beatles mostravam nesta canção como a música rock não tinha de ser apenas constituída por melodias simplórias, envolvidas por instrumentos electrificados.

19. Ticket to Ride (Help!, 1965)
A irresistível malha inicial da famosa Rickenbacker de 12 cordas, aqui tocada por George e a afirmativa entrada da bateria de Ringo, ampliada pelas notas ressoantes do pequeno baixo Hõfner de Paul mostram logo ao que vêm: rock intenso, melodioso e instrumentalmente cativante. Mais uma canção inspirada de Lennon, com importantes contributos instrumentais de todos os outros, em especial de Paul.

20. Within You Without You (Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, 1967)
Outra faceta dos Beatles e também o seu lado mais exótico, liderado por George. Não se trata simplesmente de uma curiosidade de inspiração indiana, mas de uma verdadeira canção, com todos os melhores ingredientes que uma boa canção pode ter. E com George a cantar e a tocar sitar, que aprendera a tocar com músicos indianos, entre os quais Ravi Shankar.

Fora desta lista ficam canções memoráveis como Hey Jude, Let It Be, Paperback Writer, Day Tripper, Something, Blackbird, Across the Universe, Lady Madonna, Come Together, All You Need is Love, Revolution, With a Little Help From My Friends, Norwegian Wood, Drive My Car, I Want to Hold Your Hand, All My Loving, And I Love Her, Michelle e tantas outras que teria vontade de incluir. Mas isto são os Beatles, não é qualquer coisa.

A lista das 20 canções acima pode ser ouvida aqui.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Jorge Buescu sobre o ensino da Matemática

No mesmo volume referido no post anterior, vale a pena destacar o texto de Jorge Buescu, que apresentou interessantes dados empíricos sobre o ensino da Matemática e que, em muitos aspectos, podem ser semelhantes ao que se verifica no ensino outras disciplinas. 


O texto de Buescu apresenta algumas das principais conclusões daquele que é talvez o mais abrangente e extenso estudo de sempre sobre o ensino da Matemática nos EUA. As conclusões do estudo, que levou 20 meses de intenso trabalho realizado por um painel de professores, matemáticos, investigadores e especialistas em educação, alguns deles de reputação mundial, foram apresentadas num relatório, cuja síntese está disponível aqui

Esta síntese, intitulada Foundations for Success (FS), que tem por detrás mais de 16 mil relatórios sobre políticas educativas e publicações científicas sobre o ensino da Matemática, visa ultrapassar as velhas e infrutíferas Math Wars (Guerras da Matemática) sobre o que deve e como deve ser ensinada a disciplina nas escolas. 

No seu texto, Jorge Buescu destacou e esclareceu algumas das conclusões desse importante documento. Destaco aqui duas delas, que podem ser surpreendentes para muitos, e que também se podem aplicar a outras disciplinas. Os sublinhados são meus.

(clicar para ampliar)



quarta-feira, 13 de setembro de 2017

O que ensinar e como ensinar?


O texto da minha comunicação no Colóquio Currículo e Conhecimento, organizado pelo Conselho Nacional de Educação, em Março de 2016, foi recentemente publicado pelo CNE no Volume 1 da Lei de Bases do Sistema Educativo - Balanço e Prospetiva.

Defendo aí que o ensino público não deve ter como principal finalidade o desenvolvimento económico do país nem a formação de bons cidadãos nem a preservação da herança cultural colectiva nem o sucesso profissional dos indivíduos nem o desenvolvimento da autonomia pessoal. Mais do que isso, e acima de tudo isso, o ensino público deve estar ao serviço do florescimento humano, em sentido aristotélico.



Nesse sentido, defendo ainda que não cabe aos pais decidir o que os seus filhos menores devem aprender na escola e que essa decisão também não compete ao Estado. O que se aprende deve ser o resultado de escolhas individuais informadas, tendo em conta as diferentes formas de vida com valor, de acordo com o mais sólido conhecimento (não apenas o conhecimento de verdades, mas também o conhecimento prático e o conhecimento directo) disponível nas diferentes áreas de atividade humana.


A filosofia é uma dessas áreas centrais do conhecimento, pelo que não deve ser excluída do currículo. Apresento os núcleos centrais do que poderia ser um tal currículo de filosofia. 


O esquema seguinte, incluído no texto, resume as diferentes perspectivas sobre as finalidades do ensino. Faço também uma breve descrição e avaliação de cada uma dessas perspectivas e procuro mostrar que só uma delas promove de forma adequada o respeito pelos direitos humanos fundamentais.



O texto completo também pode ser lido aqui.
  

sábado, 12 de agosto de 2017

Santos e autores


Quem é o autor da Suma Teológica?
Resposta: Tomás de Aquino.

E o autor de A Cidade de Deus?
Resposta: Agostinho de Hipona.

E o autor de Proslogion?
Resposta: Anselmo (de Cantuária ou de Aosta ou de Bec).

Se é assim, por que razão, em vez desses nomes, se encontra nas capas de algumas traduções portuguesas daquelas obras os nomes São Tomás de Aquino, Santo Agostinho e Santo Anselmo? 

É porque a Igreja Católica os canonizou.

Mas essa não é uma boa razão. Primeiro, porque os autores dessas obras só muito depois de as terem escrito foram canonizadas. Depois, porque a santidade é o reconhecimento de uma virtude religiosa, não constituindo um elemento objectivo da identificação de um autor. Finalmente, porque acrescentar o título de santidade ao autor em nada contribui para uma identificação mais precisa. Faz tanto sentido como identificar o autor de A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos como Sir Karl Popper.

Em suma, o mais correto é identificar os autores dessas obras usando os nomes pelos quais respondiam quando as escreveram e deixar os santos apenas para a instituição religiosa que lhes atribui o título de santidade. Numa edição filosófica da Suma Teológica, parece-me uma falta de cuidado e de rigor histórico identificar o autor como São Tomás de Aquino. 

Assim, os autores de A Cidade de Deus e de Suma Teológica são, respectivamente, Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino. Em nome do rigor histórico, que todos os académicos deviam prezar, é o que devia surgir nas capas dos seus livros.

terça-feira, 27 de junho de 2017

Exames: e se fosse como na França?


Dez dias antes do exame, um jovem interceptou dados sobre 20 dos temas da prova de Física e Química, tendo sido vários os alunos que beneficiaram dessa informação durante a sua realização, no dia 7 de Junho de 2017. O Ministério da Educação abriu um inquérito para apurar responsabilidades, mas decidiu não repetir o exame com o argumento de que estavam apenas 4 pontos em jogo.

No dia 14 de Junho, o Ministério da Educação descobriu que tinha havido uma fuga de informação sobre um dos três temas do exame de Filosofia (dos cursos tecnológicos), a realizar no dia seguinte. O ministério decidiu, na tarde anterior ao dia da realização do teste, recorrer a um tema de reserva. Contudo, levou bastante tempo para imprimir 140 mil exemplares e os distribuír pelas escolas de todo o país, pelo que milhares de alunos receberam o tema de reserva cerca de uma hora após o início da prova.

Cerca de 18 mil alunos tiveram de repetir no dia 23 de Junho a prova de Espanhol, já realizada no dia 19 do mesmo mês, dado que a primeira delas incluía um capítulo que tinha saído na prova de 2016. O ministro da educação mandou fazer mais um inquérito.

Os alunos de uma das cidades do sul do país terão de repetir a prova de língua estrangeira, uma vez que a escola foi evacuada no dia 19 de Junho, enquanto a prova decorria, por ter soado o alarme de incêndio. Houve, de facto, incêndio nas proximidades, mas não atingiu a escola.

Durante a distribuição das provas pelas escolas, uma parte da prova de Economia-Direito, seguiu inadvertidamente misturada com a prova de outra disciplina para uma escola do leste do país. Essa parte foi recolhida imediatamente após os alunos a terem recebido, mas alguns já tinham visto de que se tratava. A informação circulou rapidamente pelas redes sociais e muitos alunos que iriam fazer a prova de Economia-Direito no dia seguinte aproveitaram-se disso. O Ministério da Educação decidiu não recorrer aos temas de reserva por falta de tempo para a sua impressão. Entretanto, devido à polémica instaurada, acabou por anular esse tema.

Isto aconteceu nas últimas semanas. Sabe onde? Na França! Não acredita? Leia aqui.

Como seria se isto sucedesse em Portugal? E, já agora, o que vos parece o exame de Filosofia (baccalauréat general, série S)? Podem ver aqui. O modelo de prova — que tem gerado alguma contestação em França, mesmo da parte de professores de Filosofia — tem três temas e o aluno responde apenas a um. Eis os temas:

Tema 1: "Defender os seus direitos é defender os seus interesses?"
Tema 2: "Pode alguém libertar-se da sua cultura?"
Tema 3: "Explicar o texto seguinte: (Segue-se um texto de 18 linhas, de Foucault)".

sábado, 24 de junho de 2017

A democracia não nos enobrece

Quem o diz é o filósofo político Jason Brennan no seu mais recente livro, de 2016, precisamente intitulado Contra a Democracia, e agora disponível em tradução portuguesa, na qual tive o gosto de estar envolvido.

Quem entende a filosofia da forma como os grandes filósofos a entenderam sabe que nada é indiscutível. E a democracia também não o é. No caso da democracia diria mesmo que, quanto menos discutida, menos democracia haverá.

Neste estimulante livro de Jason Brennan, o leitor não irá encontrar qualquer projecto político sub-reptício nem tiradas ideológicas impressionantes. Em vez disso, será antes confrontado com  argumentos de carácter moral, cujas premissas são cuidadosamente explicitadas, como seria de esperar de um filósofo respeitável. Cabe ao leitor avaliar se tais argumentos colhem.

Pode haver boas razões para se discordar de Brennan, mas quem o ler verá que não é assim tão fácil encontrá-las. E ele até se esforça por nos ajudar nessa procura.

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Compilações

Conheço vários coleccionadores de discos que têm as suas discotecas pessoais recheadas de compilações. Por vezes, têm as mesmas músicas dispersas por vários discos dos mesmos artistas. Conheço também pessoas que não estão para gastar muito dinheiro em discos e que, para pouparem, compram apenas compilações. E há ainda quem, como eu, não seja adepto de compilações. Mas também não é preciso exagerar, pois há casos em que valem mesmo a pena. Destaco aqui alguns desses casos.

Antes disso, talvez seja útil ter em conta que há três tipos principais de compilações: os Greatest Hits, os The Best Of e as retrospectivas. Do primeiro tipo são, como o nome indica, as colecções das músicas mais populares (mais vendidas) de um dado artista, durante um certo período, que pode ser toda a sua carreira; do segundo tipo, fazem parte as colecções das melhores músicas, sejam ou não as que mais sucesso tiveram; no terceiro tipo, encontramos a colecção das músicas mais representativas das várias fases criativas do artista, independentemente de serem as mais vendidas ou até a melhores. Em minha opinião, raramente os Greatest Hits valem a pena, pois não é invulgar as músicas com mais sucesso de um artista serem também as menos interessantes. Claro que a qualidade dos The Best Of também depende de quem faz a selecção (há casos em que são os próprios artistas e outros em que são as editoras). Por sua vez, as retrospectivas têm um interesse mais documental, chegando a incluir músicas que não fazem parte de discos anteriores e versões diferentes das originais.

Aqui fica uma meia-dúzia das melhores compilações que conheço.

DEEP PURPLE, Mark I & II (1973)


Os Deep Purple são frequentemente subestimados e compreende-se porquê: a partir de certa altura passaram a macaquear-se a si próprios e a esbanjar a boa reputação adquirida nos seus melhores tempos. De tal modo que quase tudo o que fizeram a partir de 1974 é para esquecer. Mas para quem quer ouvir o melhor da melhor fase dos DP não precisa de mais do que a excelente compilação Mark I & II, um duplo álbum que penso ter sido editado só em vinil. O título da compilação Mark I & II refere as duas primeiras formações dos DP (havendo ainda as formações posteriores, conhecidas como Mark III e Mark IV).

O primeiro disco contém apenas músicas do período conhecido como Mark I (o vocalista desta primeira formação era Rod Evans), e o segundo disco inteiramente dedicado ao mais inspirado período dos DP, o Mark II, já com a belíssima e poderosa voz de Ian Gillan. Uma curiosidade: no início dos anos 70 do século passado, o genial compositor russo Chostakovich assistiu em Londres à ópera-rock Jesus Christ Superstar e disse ter ficado simplesmente encantado, a ponto de acrescentar que gostaria de ter composto algo nessa linha. A personagem de Jesus era interpretada precisamente por Ian Gillan.

Foi do período Mark II que saíram as mais brilhantes canções dos DP e que os impuseram como um dos principais fundadores do chamado hard rock. Trata-se de um hard rock progressivo, com um toque sinfónico dado sobretudo pelo inconfundível organista Jon Lord. Mas todos os membros desta formação eram músicos fantásticos. Os DP desta fase chegaram mesmo a gravar um álbum ao vivo com a Royal Philharmonic Orchestra, dirigida pelo maestro e compositor Malcolm Arnold.

O disco 2 desta compilação inclui algumas das melhores músicas deste período, sem esquecer a bela balada When a Blind Man Cries, originalmente editada como single (lado B), e a versão ao vivo de Highway Star, que é bem melhor do que a versão original de estúdio. O disco 1 é totalmente dedicado a Mark I, onde encontramos preciosidades como Hush, mas também interessantes versões de canções alheias como Help dos Beatles ou Hey Joe, mais conhecida pela voz de Hendrix.

Em suma, neste duplo álbum está quase tudo o que interessa dos DP. Só não se compreende como um disco com boa música tem uma capa tão má. Dificilmente se consegue imaginar pior.


LEONARD COHEN, The Best Of (1975)


Esta colectânea de 1975 inclui apenas canções dos quatro primeiros discos de originais de Leonard Cohen: Songs of Leonard Cohen (1967), Songs From a Room (1969), Songs of Love and Hate (1971) e New Skin For the Old Ceremony (1974). Mas são, em minha opinião, também os quatro melhores discos de Cohen. E o melhor de tudo é que esta colectânea reune mesmo o melhor dos quatro, fazendo dele um disco irresistível, onde não há uma única canção dispensável: Bird on The Wire, Sisters of Mercy, Hey, That's No Way to Say Goodbye, Suzanne, So Long, Marianne, Famous Blue Raincoat ou Who By Fire. É talvez a melhor colectânea que conheço. Um disco perfeito. E mais uma capa fraquinha.


LOU REED, A Walk on the Wild Side: The Best of Lou Reed (1977)


O que não falta são compilações de Lou Reed. Em geral, as compilações mais tardias acabam por deixar de fora algumas das melhores canções de Reed para poderem entrar outras mais recentes, mas também mais banais. Mas esta compilação abrange apenas o que considero ser o período mais criativo de Reed. E há ainda o cuidado de não optar pelo mais fácil, dispensando acertadamente canções tão óbvias como Perfect Day. Digna de registo é também a qualidade do som (só conheço o disco em vinil). 


THE SMITHS, Hatful of Hollow (1984)


Este disco quase poderia contar como um álbum de originais. Por estranho que possa parecer, saiu pouco depois do primeiro disco de The Smiths. Contudo, o grupo liderado pela dupla Morrissey e Marr (a propósito, Marr diz ser um ávido leitor de filosofia, sobretudo de filosofia da religião) tinha o hábito de regravar as suas músicas com diferentes arranjos e sonoridades, de que resultavam canções quase novas, nalguns casos melhores do que as versões originais. Além disso, esta compilação inclui ainda singles que não fazem parte de qualquer outro álbum. Isto porque The Smiths raramente encaravam  os singles como estratégia de promoção de álbuns mas antes como criações autónomas. Por isso se encontram aqui grandes canções como How Soon is Now, que está ausente de qualquer dos seus discos de originais.


JOY DIVISION, Substance (1988)


Os Joy Division só gravaram dois (e que dois!) álbuns de originais. Mas ainda antes do seu primeiro álbum, quando eram um grupo seguido apenas em Manchester e pouco mais, já tinham gravado vários singles de circulação bastante restrita. Esta compilação, organizada pelos três ex-membros dos Joy Division, é uma verdadeira retrospectiva do grupo de Ian Curtis, pois inclui material representativo de toda a sua história, desde os primeiros anos. Integra mais de meia-dúzia de canções dos Joy Division que não fazem parte dos seus dois álbuns Unknown Pleasures e Closer, entre as quais a marcante Love Will Tear Us Apart.


FRANK ZAPPA, Strictly Commercial: The Best of Frank Zappa (1995)


A discografia de Zappa é, como se sabe, tão grande quanto variada. E a sua música é tudo menos comercial. Muitas das suas melhores criações são totalmente instrumentais, com frequentes incursões pelo jazz e pela música experimental. Não se vê como uma compilação poderia dar conta de tudo isso. Mas também não é isso que esta compilação procura fazer, limitando-se a abrir as portas do universo musical de Zappa pelo lado mais acessível. Neste caso, isso é muito bem conseguido, graças à excelente selecção de canções. Entre elas contam-se Peaches En Regalia, Dirty Love, Joe's Garage, Montana e o popular Bobby Brown Goes Down (esta apenas na edição europeia). É o Zappa ideal para quem gosta de Zappa mas não aguenta demasiado Zappa.

sábado, 20 de maio de 2017

A música tem de transmitir sentimentos?

Estava à espera de tudo menos de filosofia no Festival da Eurovisão. Mas foi isso mesmo que, além de nos brindar com a melhor canção a concurso, o talentoso representante de Portugal nos trouxe.

Antes de falar da filosofia, deixo uma palavra sobre a canção e o concurso.


Ao contrário da generalidade das pessoas de bom gosto e com coisas mais importantes para fazer, eu vi o Festival na televisão, da primeira à última canção. Não assistia ao Festival da Eurovisão há décadas e nem sequer tinha a ideia de que havia eliminatórias e tantos países a participar, incluindo países de fora da Europa, como a Austrália. Mas a ideia com que fiquei é que, salvo o aparato tecnológico, a natural adaptação das canções às tendências da época e a predominância do inglês, está tudo mais ou menos na mesma. No meio de tudo isto, continua a destacar-se a fraca qualidade das canções, como era costume nos tempos em que, algo resignado, lá ia acompanhando a coisa.

O facto de ter ficado algo surpreendido com a canção que este ano Portugal escolheu despertou-me a curiosidade sobre o que poderia vir a acontecer no grande palco europeu. Da primeira vez que a ouvi pareceu-me demasiado familiar, como se já a conhecesse há muito. Mas, quando tentava precisar de onde a conhecia, nada de concreto me ocorria. De algum musical antigo? Podia ser, mas não descortinei exactamente qual. De algum filme dos anos 50? Talvez, mas também não consegui identificar. Seria uma adaptação de alguma canção de jazz antiga, ou talvez de bossanova? Também não consegui ver qual, até porque Amar Pelos Dois tem o ritmo de uma valsa. Os acordes do piano pareciam tirados do início de Gymnopédie N.º 1, de Erik Satie. Mas não era bem a mesma coisa. Começou a parecer-me um pouco disso tudo e nada disso em particular, fazendo-me pensar que talvez se tratasse de uma espécie de ovo de Colombo musical, capaz de deixar os festivaleiros surpreendidos. Até porque a canção é agradável logo à primeira audição e tem a capacidade de, sem ser excepcional, soar ainda mais agradável nas audições seguintes.

Creio mesmo que o aspecto mais forte da canção é precisamente soar a algo familiar; a algo que já conhecemos sem sabermos bem de onde, como se a autora a encontrasse algures por aí à espera de ser cantada e ouvida. Isso significa que a canção pouco traz de novo. Mas traz, em contrapartida, algo que quase soa a vintage, o que é bom. Essa é, muitas vezes, a marca de grandes sucessos intemporais. Como, por exemplo, Yesterday, dos Beatles, a canção com mais versões gravadas de toda a história da música. O próprio autor, Paul McCartney, conta que a canção lhe pareceu tão familiar, que nem sequer se deu conta que a estava a compor quando pegou na guitarra — diz a lenda que numa paragem para os quatro de Liverpool se refrescarem e esticarem as pernas a meio de uma viagem de automóvel na velha estrada de Lisboa para o Algarve, onde iam passar umas férias — para tocar simplesmente algo que lhe estava no ouvido. Diz McCartney que andou uns tempos a pensar de quem seria a canção e que, depois de verificar que não a conseguia atribuir a ninguém, assumiu ele próprio a autoria. E, apesar disso, Yesterday é um clássico, mesmo que pouco ou nada tenha de inovador. Está certamente entre as canções menos arrojadas que os Beatles escreveram.

Não se trata de equiparar Amar Pelos Dois a Yesterday, o que seria ridículo. Mas, sem dúvida que Amar Pelos Dois é uma canção bonita, aparentemente simples e despretensiosa. Ora, se combinarmos o facto de a canção soar muito familiar e de, ao mesmo tempo, ser algo atípica no contexto do Festival da Eurovisão, não seria difícil acreditarmos que teria uma grande probabilidade de vencer a Eurovisão. O cenário previsível seria as outras canções todas competirem entre si e a portuguesa competir com elas em bloco: no grupo das canções festivaleiras haveria uma grande dispersão de votos e uma grande concentração de votos na portuguesa da parte dos que desejassem uma coisa diferente. E assim veio a acontecer, ficando Salvador Sobral com o troféu. 

Claro que houve também a fraca qualidade das canções concorrentes, com excepção da interessante, embora ligeiramente monótona, canção pop da Bélgica. E houve ainda a própria figura descontraída de outsider do Salvador, a que se juntou a simpatia e inteligência da sua irmã que, apesar de tudo, não conseguiu impedir o irmão de interpretar a canção com um ou dois tiques vocais despropositados, de que a canção não precisa. Fora isso, Salvador é, sem dúvida, um bom cantor e intérprete. 

Já agora, não é arriscado dizer que Amar Pelos Dois foi a melhor canção que alguma vez Portugal mostrou no Festival da Eurovisão — e provavelmente uma das melhores que já venceram a Eurovisão —, a uma grande distância das participações portuguesas dos anos 1960-1980. Quem se der ao trabalho de perder tempo a ouvir canções como a pobre e beata Oração (a primeira participação de Portugal, com uma letra de sacristia), ou a agitada Desfolhada (em que Simone de Oliveira canta como quem ralha com o ouvinte), ou a enfadonha Flor de Verde Pinho (na voz semi-falada e desbotada de Carlos do Carmo), ou ainda a infantil Sobe Balão Sobe, a oca Playback e a  submissa inutilidade musical de Não Sejas Mau Para Mim. Em minha opinião, só se aproveitam mesmo E Depois do Adeus e algumas letras de Ary dos Santos. Claro que em Portugal também se faz boa música — escritores de canções como o genial José Afonso, mas também Rui Veloso e Fausto ou, por vezes, Sérgio Godinho, Tiago Bettencourt e Rodrigo Leão, entre outros, são prova disso. Mas a música destes autores sempre se dirigiu a outro tipo de audiência.

Voltando à Eurovisão, foi só após a entrega do troféu que Salvador Sobral decidiu filosofar em directo, em resposta à habitual pergunta sobre as razões para a vitória da sua canção. As palavras de Salvador foram as seguintes:


Vivemos num mundo de música descartável, de música ‘fast-food’ sem qualquer conteúdo. Isto pode ser uma vitória da música, das pessoas que fazem música que de facto significa alguma coisa. A música não é fogo-de-artifício, é sentimento. Vamos tentar mudar isto. É altura de trazer a música de volta, que é o que verdadeiramente interessa.

Antes de mais, acho infelizes e algo deselegantes estas palavras de Salvador, mesmo que se concorde totalmente com o que ele diz. São infelizes porque destacam sobretudo o demérito das canções concorrentes, sugerindo que não são verdadeiramente música. Isso equivale a desvalorizar indirectamente a sua própria canção. É quase como dizer que venceu por falta de comparência dos adversários ou porque eles eram demasiado fracos. São deselegantes porque o momento da vitória não é o mais adequado para depreciar os derrotados. Sobra ainda a questão filosófica.

Ao defender que a música tem de significar alguma coisa e que é suposto veicular sentimento, Salvador está a exprimir uma perspectiva filosófica acerca da música como se fosse consensual, sem o ser. A perspectiva expressivista da arte em geral — e, em particular, da música — tem as suas raízes nas reflexões de Tolstói e de R. G. Collingwood e, numa versão mais recente e sofisticada, da filósofa Suzanne Langer. Esta concepção da arte tem, contudo, sido sujeita a diversas objeções e contraexemplos, que não cabe agora aqui expor.

Basta lembrar que abundam os exemplos de música muito respeitável cujo conteúdo, consciente ou inconsciente, está longe de ser o sentimento. Sem dúvida que o sentimento pode ser um aspecto muito importante da música e que muita da melhor música tem, de algum modo, conteúdo emocional.  Mas dizer que a música é essencialmente sentimento implica desclassificar ou retirar do universo musical uma enorme quantidade de reputadíssimas obras e géneros musicais: de música concebida para ser dançada (das famosas valsas vienenses ao samba carioca), para acompanhar o trabalho (como o cante alentejano) para fins bélicos (marchas militares), para adormecer (canções de embalar), para orar (canto gregoriano), ou simplesmente com o intuito de repetir padrões sonoros interessantes (música minimalista) e até para acompanhar refeições (como, por exemplo, Tafelmusik do compositor barroco Telemann). 

Estará Salvador Sobral disposto a excluir tudo isto do universo musical? Será que não poderá haver aí boa música? E por que razão não pode haver boa música de dança, boa música electrónica, boa música repetitiva? Tem de haver sempre sentimento? Mas que sentimento há na conhecida canção Frère Jacques, que o grande compositor Gustav Mahler usa no terceiro andamento da sua Sinfonia Nº 1? Que sentimento é expresso pelas belíssimas Jazz Suites de Chostakovich? Sugerir que as canções concorrentes não são boa música digna de ser ouvida porque não têm sentimento é, no contexto em que a afirmação foi produzida, uma afirmação totalmente unilateral e descabida. É uma perspectiva filosófica sobre a natureza da musica perfeitamente legítima, mas não parece adequado avaliar os adversários, naquele momento, como se essa perspectiva fosse indisputável. 

Em suma, Salvador é um músico talentoso, mas se quer filosofar, poderia fazê-lo melhor e ser menos intransigente quanto a abordagens musicais diferentes. De resto, que maçada seria ouvir duas horas de canções carregadas de sentimento. 

quarta-feira, 17 de maio de 2017

A importância da verdade

As civilizações nunca progrediram de modo saudável, e não podem progredir de modo saudável, sem grandes quantidades de informação factual fidedigna. Também não podem florescer se estiverem acometidas de infecções perturbadoras de crenças erróneas. Para estabelecer e manter uma cultura avançada, precisamos de evitar ser debilitados tanto pelo erro como pela ignorância. Precisamos de saber muitas verdades – e, claro, temos também de perceber como fazer um uso produtivo destas. 
Isto não é apenas um imperativo social. Aplica-se igualmente a cada um de nós, enquanto indivíduos. Os indivíduos precisam de verdades para conseguirem orientar-se com eficácia no matagal de riscos e oportunidades com que todas as pessoas se defrontam no decurso da vida. Precisam de saber a verdade sobre o que comer e não comer, como se vestir (dados os factos das condições climatéricas), onde viver (informação sobre falhas tectónicas, ocorrência frequente de avalanches e proximidade de comércio, escolas e empregos), assim como o modo de fazer aquilo que são pagas para fazer, como criar os filhos, o que pensar das pessoas que conhecem, o que são capazes de alcançar, e uma variedade infinda de outros aspectos corriqueiros e, contudo, vitais. 
O nosso sucesso ou fracasso em seja o que for que nos proponhamos – e, por conseguinte, na vida em geral – depende de sermos guiados pela verdade ou, ao invés, de avançarmos na ignorância ou com base em falsidades. Claro que também depende, de modo fulcral, daquilo que fazemos com a verdade. No entanto, sem verdade é que ficamos logo em maus lençóis ainda antes de começarmos seja o que for.

terça-feira, 16 de maio de 2017

O lado bom da hipocrisia


Parece que o Papa declarou há dias que era preferível um ateu sincero e bem intencionado a um católico hipócrita. 

Eu, que sou ateu — pois tenho a crença persistente de que Deus não existe —, acho desinteressante distinguir as pessoas entre católicas, ou mesmo crentes, e ateias. Penso que há aspectos bem mais relevantes para avaliar o carácter e as atitudes das pessoas do que elas serem católicas ou ateias. 

Mas compreendo que, para o Papa, que é o chefe da família católica, a distinção possa ser relevante. Talvez, para ele, ser católico seja uma espécie de propriedade complexa que inclui uma série de outras propriedades mais simples como ser sincero, ser caridoso, ser honesto, e ser crente, claro. Contudo, para grande parte das pessoas, mesmo das que se dizem católicas, ser católico é pouco mais do que ser baptizado e participar nos rituais católicos. Será que o Papa queria dizer que essas pessoas não merecem verdadeiramente ser chamadas católicas? Ou será que queria antes dizer que ser católico nem sempre é, afinal, o mais importante? 

Não sei bem qual a interpretação correta, mas verifico que a hipocrisia tem má fama e que é um péssimo sinal alguém parecer hipócrita. Acho que esta é uma forma radical de ver as coisas, pois considero que a hipocrisia também pode ser um bom sinal. 

O que a hipocrisia tem de censurável é principalmente o seu carácter enganador: alguém que procura passar pelo que não é, livrando-se da maçada de ter de enfrentar a censura social quando não faz o que se espera de si. Neste sentido, a hipocrisia é um defeito epistémico, uma estratégia de ocultação da realidade. 

Mas isso também mostra que a hipocrisia é frequentemente a expressão de uma certa vergonha moral. "A hipocrisia é o tributo que o vício paga à virtude", como escreve Peter Singer no saboroso livro Ética no Mundo Real, acabado de publicar entre nós pelas Edições 70. Uma sociedade em que, por exemplo, o machismo e o racismo não precisam sequer de ser hipocritamente mascarados é, apesar de tudo, pior do que uma sociedade em que a hipocrisia é o refúgio de machistas e racistas. Neste caso, tem-se ao menos a noção de que o machismo e o racismo são coisas vergonhosas, o que mostra, apesar de tudo, que estamos numa sociedade em que isso é inaceitável, o que é um progresso. 

Sem dúvida que nem o machismo descarado e auto-satisfeito nem o machismo hipócrita são aceitáveis. Mas a hipocrisia, embora sendo sempre um perigoso defeito, não deixa de ser um animador sinal de civilização.

Poder-se-á dizer que o machista descarado é ao menos sincero e torna-se mais fácil combatê-lo, por sabermos onde ele está, ao passo que o machista disfarçado é esquivo e difícil de combater. Mas creio que isto é ver mal as coisas, pois a parte mais difícil do combate ao machismo assumido é precisamente tornar, aos seus próprios olhos, vergonhoso o machismo.    

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Como avaliar um interpretação musical sem saber música?

Quem o diz é a Musical America Awards, o que certamente quer dizer algo, mas não tanto como o que se pode ver e ouvir aqui, em que a jovem chinesa Yuja Wang interpreta o magnético segundo andamento (Adagio) do Concerto para Piano em Sol, de Ravel.


Como decidem aqueles que, como eu, não são músicos, nem musicólogos — nem sequer lêem partituras — se esta interpretação é melhor ou pior do que outras da mesma obra? Não estão autorizados a decidir seja o que for sem tais conhecimentos técnicos?

Claro que estão! Muito ficaria por explicar sobre a fruição musical e sobre a própria natureza da música se as únicas opiniões respeitáveis fossem as dos especialistas com formação musical avançada. Como alguém dizia, não é preciso ser capaz de pôr ovos para saber apreciar o seu sabor. E, para se estar apto a apreciá-los, também não é preciso conhecer a constituição molecular dos ovos. Sem dúvida que conhecer a constituição molecular dos ovos pode ajudar a explicar por que razão os ovos têm o sabor característico que têm. Mas explicar uma coisa é diferente de justificar um juízo de valor sobre essa coisa.

Porém, daí não se segue que todos os juízos de valor sobre uma dada interpretação musical se equivalham. E também não se segue que o conhecimento técnico especializado não ajude a iluminar certos aspectos que explicam por que razão apreciamos mais umas coisas do que outras. O facto de esse conhecimento técnico não ser condição necessária não significa que não possa ser conhecimento útil. Na verdade, quando fazemos um juízo de valor acerca de uma dada interpretação musical, há normalmente algum conhecimento prévio implícito na justificação que apresentamos. Nem que seja o conhecimento de outros casos semelhantes com os quais comparamos, mesmo que inconscientemente, a interpretação que estamos a avaliar.

Mas, com que critério (ou critérios) uma pessoa sem uma sólida formação musical avalia uma dada interpretação?

A minha sugestão é que, se essa pessoa tem alguma cultura musical (ex: ouve regularmente o tipo de música em causa ou essa obra em particular, interessa-se pelo que ouve e tentar perceber porquê, tem algum conhecimento do contexto artístico em que a obra foi criada, etc.), mas não tem conhecimentos técnicos avançados, então ela tem tendência para tomar como modelo, ou referência, a interpretação que pela primeira vez a despertou (dado que muitas vezes ouvimos algo sem prestarmos verdadeiramente atenção).

Esta minha sugestão nada tem de filosófico. É apenas uma hipótese empírica baseada na minha observação. Vejo isso repetidamente no meu caso. A primeira vez que me detive a ouvir este concerto de Ravel foi numa interpretação de Arturo Benedetti Michelangeli ao piano. A partir daí, e após repetidas audições dessa interpretação, todas as outras interpretações que ouço são mentalmente contrastadas com ela, como se ela fosse a matriz pela qual as outras vão ser avaliadas. E não é fácil evitar isso.

Mesmo assim, dei por mim a pensar que esta interpretação de Yuja Wang não tem a impessoalidade que imagino ao ouvir Michelangeli (impessoalidade no sentido de ser capaz de imaginar os sons de cada nota do piano como se estivessem a ecoar directamente da natureza e não de um agente humano), mas noto a agradável presença de alguém que, ao percorrer o teclado do piano, se deixa envolver com ele. O que me agrada de maneira diferente.

É muita imaginação minha? Certamente. Mas não é principalmente para isso que a música serve?

sábado, 29 de abril de 2017

Deus, o Universo e tudo o que existe



PEDRO: Parou de chover, graças a Deus.

HELOÍSA: Qual deus?

PEDRO: O único, o Deus criador.

HELOÍSA: Criador de quê?

PEDRO: Ora, criador de tudo!

HELOÍSA: Mas tudo é muita coisa.

PEDRO: Pois é. Por isso é que Deus é único, em muitos aspectos, incluindo quanto ao seu ilimitado poder. Foi com esse poder que criou tudo quanto existe. Assim, ele é o criador tanto do que se vê como do que existe mesmo sem se poder ver.

HELOÍSA: Vejo os sapatos que tenho calçados. Foi Deus que os criou? Consigo ver a Torre Eiffel. Foi Deus que a criou? E não consigo ver, mas sou capaz de ouvir, a Quinta Sinfonia de Beethoven. Afinal o seu criador foi Deus e não Beethoven?

PEDRO: Estou a ver que estás a interpretar "tudo quanto existe" de uma forma algo diferente do que se pretende. Não devemos fazer caricaturas.

HELOÍSA: Como devo interpretar, então, essa expressão?

PEDRO: Ok, talvez seja mais adequado dizer antes que Deus é o criador do Universo. Compreendes agora o que queria dizer?

HELOÍSA: Mas consultei um vulgar dicionário de português e lá diz que o Universo é tudo o que existe. Ora isso inclui na mesma os meus sapatos, a Torre Eiffel e a Quinta Sinfonia de Beethoven, pelo que não encontro diferença.

PEDRO: Estou a ver a tua dificuldade. Mas, em certo sentido, é correcto dizer que Deus criou os teus sapatos, a Torre Eiffel e a Quinta Sinfonia de Beethoven.

HELOÍSA: Em certo sentido? Que sentido é esse?

PEDRO: No sentido em que ele é a causa primeira do Universo e que, portanto, é indirectamente a causa de tudo o resto. Sem ele, os teus sapatos, a Torre Eiffel e a Quinta Sinfonia de Beethoven não poderiam sequer existir.

HELOÍSA: Estou a ver. Nesse mesmo sentido, é também correcto dizer que a minha bisavó materna, que nem a própria filha chegou a conhecer, criou o desenho que acabei mesmo agora de fazer. E os antepassados dos trabalhadores da fábrica de calçado onde estes sapatos foram criados também foram, indirectamente, criadores dos sapatos. E, quem sabe, talvez mesmo D. Afonso Henriques tenha sido também um dos criadores indirectos destes sapatos. E, já agora, não seria totalmente disparatado dizer que, a terem existido realmente, talvez Adão e Eva sejam criadores indirectos da Torre Eiffel e da Quinta Sinfonia de Beethoven.

PEDRO: Por favor, nada de caricaturas!

HELOÍSA: Limito-me a seguir o teu raciocínio. Aliás, de acordo com ele, quanto mais antiga for uma pessoa e quanto mais descendência tiver deixado, mais coisas essa pessoa criou, ainda que indirectamente. E daí chegamos a Deus, o primeiro de todos, que desencadeou todas as criações que conhecemos.

PEDRO: Calma aí! Não estás certamente a levar em conta um poder que apenas Deus tem.

HELOÍSA: Que poder é esse?

PEDRO: É o poder de, a todo o momento saber tudo o que se passa no mundo e de, a todo o momento, intervir para que umas coisas aconteçam e outras não cheguem a acontecer.

HELOÍSA: Estou a ver, os meus sapatos existem porque, de alguma maneira misteriosa para nós, foi Deus que quis que eles existissem.

PEDRO: Mais ou menos isso. E também que foi Deus que inspirou Eiffel a projectar a torre que se encontra em Paris e inspirou Beethoven a descobrir aquela estrutura sonora que constitui a Quinta Sinfonia. E dizemos que a sinfonia é de Beethoven apenas porque Beethoven nos parece a causa mais próxima. Também dizemos que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil, quando havia pessoas que já lá estavam antes disso. Não nos devemos deixar levar pela maneira como frequentemente falamos, que nem sempre tem de ser precisa.

HELOÍSA: Percebo. Estás no fundo a referir aquilo a que outros chamam simplesmente inspiração, sem precisar de meter Deus na conversa. Só que, além de isto me parecer muito pouco, deixa-me algo intrigada.

PEDRO: Com o quê?

HELOÍSA: Imagina a quantidade de disparates produzidos por seres humanos, do lixo às armas nucleares, de obras que agridem outros seres humanos e a Natureza a obras que supostamente insultam o próprio Deus. Será também Deus o inspirador e criador indirecto dessas coisas?

PEDRO: Nunca ouviste dizer que essas coisas manifestamente más, feitas exclusivamente por seres humanos, resultam de uma coisa em si mesma boa, que nos foi concedida por Deus?

HELOÍSA: Estás a falar de quê?

PEDRO: Estou a falar do livre-arbítrio, claro. Se Deus interviesse em rigorosamente tudo o que fazemos, não deixaria lugar para o nosso livre-arbítrio, que é uma coisa boa, embora muitas vezes a apliquemos mal.

HELOÍSA: Nesse caso o que defendeste atrás de nada serve, pois Deus não é, afinal o criador de tudo quanto existe — ou, se preferires, do Universo, que vai dar ao mesmo.

PEDRO: Bom, talvez não vá dar ao mesmo. Reconheço que tenho de precisar melhor o que se entende por "Universo".

HELOÍSA: Mas não tínhamos dito que o Universo é tudo quanto existe?

PEDRO: Sim, mas não fomos suficientemente precisos.

HELOÍSA: Então?

PEDRO: O Universo não é tudo o que existe mas antes o lugar onde tudo existe.

HELOÍSA: Ah, mas isso já é outra coisa. Confirmas, então, que de nada serviu grande parte da nossa conversa anterior.

PEDRO: Bem, às vezes temos de começar por ideias imprecisas para chegar a bom porto. Aprende-se sempre algo pelo caminho, mesmo que este dê voltas estranhas.

HELOÍSA: Podemos, então resumir o que tens estado a dizer em duas frases: 1) Deus é criador do Universo e 2) O Universo é o lugar onde tudo existe.

PEDRO: Certíssimo.

HELOÍSA: Logo, Deus não é criador de tudo quanto existe.