quarta-feira, 17 de abril de 2024

Lombadas rebeldes

Vejam-se as lombadas destes livros. Quando olhamos para eles nas estantes das livrarias, temos de ler os títulos das lombadas sempre de cima para baixo, sempre na mesma direcção. Seja qual for a editora, é sempre assim.

Que monotonia! E o pior é que o mesmo se passa com os discos compactos, seja qual for a editora e o género musical.

Vejam-se agora as lombadas dos livros editados em Portugal. 


Pelo menos aqui não temos de inclinar a cabeça sempre para o mesmo lado. E nem sequer depende da editora, pois há livros da mesma editora (e até da mesma colecção) que ora se lêem num sentido ora se lêem no outro. A saudável rebeldia da edição portuguesa até nas lombadas se vê. Haja diversidade!


terça-feira, 16 de abril de 2024

Pensar depressa: edições a eito

Vi ontem numa livraria Pensar Depressa e Devagar com um autocolante na capa a anunciar que se tratava da 14.ª edição do livro de Daniel Kahneman. Pensei para comigo: dado que já tenho uma edição anterior, valerá a pena comprar esta nova edição?

No entanto, pareceu-me muitíssimo improvável que um livro originalmente publicado em 2011 tenha tantas edições, tendo em conta que uma nova edição de um livro já existente é uma nova versão desse livro, ou seja, é uma alteração do conteúdo da edição anterior, seja porque algumas partes foram entretanto reescritas, acrescentadas ou eliminadas. 

Claro que, se houver novas secções ou partes do livro reformuladas, pode valer a pena adquirir a nova edição, mesmo que se possua uma edição anterior. Podemos, por exemplo, querer citar num artigo académico uma passagem desta edição e que não se encontra na edição anterior. E mesmo que esteja em ambas, poderá agora encontrar-se numa página diferente, pelo que, para se poder confirmar se a citação é correta, é relevante indicar se estamos a citar a 4.ª edição ou a 14.ª edição.   

Mas será que se trata realmente da 14.ª edição do livro de Kahneman, como se anuncia no autocolante? Se não for isso, que informação está a ser dada? Talvez se trate simplesmente de mais uma reimpressão. Nesse caso, ficamos a saber também que nada no livro foi alterado, salvo uma ou outra gralha pontual, entretanto detectada. Assim, quem já tem a edição original poderá concluir que estaria a esbanjar dinheiro ao comprar a 14.ª reimpressão.

Bem vistas as coisas, talvez não seja incoerente usar o termo «edições» em vez de «reimpressões» (ou «republicações»), pois esse é, entre nós, o negócio dos editores, ao passo que em Inglaterra, por exemplo, é o negócio dos publishers. Afinal, os portugueses editam ao passo que os ingleses publicam. Sendo assim, parece lógico os portugueses chamarem edições ao que os ingleses chamam republicações (ou reimpressões). Tudo bem, estamos esclarecidos.

Só que... qual é, então, a relevância de anunciar que esta é a 14.ª edição, sabendo nós que se trata exatamente da mesma coisa que encontramos na 4.ª edição? Tal informação serve para quê?

Ah, sim, é para dizer que o livro se tem vendido muito e que, portanto, há boas razões para aqueles que ainda não o compraram o comprem agora. Tudo bem, afinal é só publicidade.

Só que... é bom que não se trate de publicidade enganosa. E ela corre o risco de ser enganosa se não se indicar algures qual a tiragem de cada reimpressão. Basta pensar que um livro com apenas uma impressão de dez mil exemplares pode vender mais do que outro com dez reimpressões de oitocentos exemplares. Assim, pode-se anunciar que o livro já tem cinco, dez ou quinze «edições» e, no entanto, ele não vender assim tanto. Portanto, nenhuma informação relevante nos estará a ser dada quando apenas se anuncia que é a 14.ª «edição» do livro. Seria mais correcto dizerem quantos exemplares já foram vendidos. Mas, ao que parece, há quem não queira saber de números mas se impressione com tanta «edição».

 

domingo, 24 de março de 2024

Quando há arte!

Foi com muito gosto que contribuí para o livro de homenagem à saudosa professora Carmo d'Orey, uma das pessoas com quem mais aprendi a reflectir sobre a arte e cuja obra A Exemplificação na Arte é, apesar do seu subtítulo, muito mais do que um estudo sobre Nelson Goodman, com quem ela também trabalhou. Trata-se, em minha opinião, de uma das mais relevantes obras de filosofia da arte jamais escritas em português: pelo inigualável rigor filosófico, pela sua abrangência e pela enorme familiaridade com os diferentes universos da arte. Diria mesmo que, naquelas novecentas páginas, não se encontra um único parágrafo dispensável. 

O livro de homenagem à professora Carmo d'Orey foi organizado por Vítor Guerreiro (U. Porto), Carlos João Correia (U. Lisboa) e Vítor Moura (U. Minho) e conta com dezasseis ensaios, incluindo o meu. Mas todos eles escritos por autores bem mais credenciados do que eu. 


O meu ensaio é sobre o estatuto artístico das falsificações de arte, justamente intitulado «Arte e contrafacção: valor estético e estatuto das falsificações». Começa assim:

Ao esclarecer a distinção introduzida por Goodman entre artes autográficas e artes alográficas, Carmo D’Orey recorre ao seguinte exemplo ficcional: 

Se pusermos um número infinito de macacos a escrever à máquina durante um infinito período de tempo, algum deles acabará por escrever Os Lusíadas sem que falte uma vírgula ou um ponto. Se os pusermos a tocar piano, algum acabará por tocar a Sonata ao Luar sem uma única nota falsa. Mas se os pusermos a pintar, com todos os materiais necessários, nenhum deles pintará a Gioconda, embora algum deva fazer uma pintura tão semelhante que, pelo simples olhar, os especialistas não poderão distingui-la do original. (Carmo D’Orey 1999: 69)

 

Mas por que razão os macacos seriam incapazes de pintar a Gioconda, ao passo que iriam escrever Os Lusíadas e tocar a Sonata ao Luar?

A justificação para que nenhum macaco seja alguma vez capaz de pintar Gioconda é a de que, seguindo Goodman, as obras de arte autográficas, como é o caso das pinturas, são entidades particulares concretas não-repetíveis. Sendo assim, qualquer réplica de uma pintura, por mais perfeita que seja, será uma pintura diferente. A réplica ou duplicação de Gioconda feita pelos macacos seria, pois, apenas uma cópia e não uma instância da obra original. E se alguém produzir uma cópia perfeita de Gioconda, fazendo-a passar pelo original, tal cópia será não apenas uma mera cópia, mas uma falsificação.

Cenário diferente encontramos nas chamadas artes alográficas, como a literatura e a música. Tanto as obras literárias como as obras musicais obedecem a um sistema de notação constituído por um conjunto de caracteres e regras de uso identificáveis que permitem a sua repetibilidade. Neste caso, a obra musical não é senão a classe de execuções concordantes com um dado sistema notacional (a partitura). É por isso que, quando assistimos a uma execução da Sonata ao Luar, não dizemos que estamos a ouvir uma cópia ou falsificação da Sonata ao Luar, mas a Sonata ao Luar, ela própria.

Como resume Carmo D’Orey (ibid.), ao passo que o locus da identidade na pintura é um objecto individual, na música é uma classe de execuções. Daí que, de acordo com a distinção de Goodman, nunca encontremos cópias nem falsificações das obras musicais; e tampouco encontremos diferentes instâncias de uma mesma pintura.   

sábado, 23 de março de 2024

Três livros actuais, para pensar e discutir

Há tempos, numa conversa sobre livros com amigos, referi alguns que gostaria de ver traduzidos para português. Felizmente, três deles acabaram mesmo por ser publicados em Portugal.

A Física e as Grandes Questões da Vida, o mais recente livro da física teórica alemã Sabine Hossenfelder é talvez o melhor que li nos últimos tempos. Hossenfelder é uma cientista invulgar. Desemproada e destemida entre os grandes nomes da física contemporânea, Hossenfelder considera que muitos deles acabam por se enredar em confusões conceptuais que um pouco de treino filosófico poderia ajudar a evitar. Mas ela é também muito popular no YouTube, onde tem um dos mais populares canais sobre ciência, além de mostrar a sua faceta de cantora e produtora de música pop electrónica. A sua investigação centra-se nos fundamentos da física e da mecânica quântica. Porém, A Física e as Grandes Questões da Vida não é uma obra de divulgação científica. E também não se destina a um público especializado. É sobretudo um livro de filosofia: trata das questões filosóficas fundamentais com que os físicos teóricos são frequentemente confrontados, as quais se situam nas fronteiras da ciência e da filosofia. São questões como: O que causou o Universo? O que é o tempo? Há lugar para o livre-arbítrio? A consciência é computável? O que somos e de que somos feitos? Há limites para o conhecimento? Hossenfelder procura, de forma desapaixonada e com um subtil mas incisivo toque de humor, mostrar até onde o melhor conhecimento científico disponível nos permite ir na resposta para tais perguntas. Ao fazê-lo, também nos permite compreender melhor os mais recentes desenvolvimentos da física.  


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A Matéria de Que Somos Feitos é a tradução de Material Girls, um dos mais discutidos livros dos últimos tempos no Reino Unido. Foi este livro, algo atípico na produção filosófica de Kathleen Stock, que a tornou amplamente conhecida e que também acabou por a afastar irremediável e definitivamente da Universidade de Sussex, onde fora professora de filosofia da arte. Tudo começou com uma conferência que a autora fora convidada a proferir sobre os conceitos de sexo e género. As reações foram de tal ordem, que decidiu escrever este livro para explicar e defender de forma mais completa e robusta a sua posição de que uma mulher transgénero não é uma mulher e que um homem transgénero não é um homem, não havendo maneira de um homem passar a ser uma mulher nem de uma mulher passar a ser um homem. Apresentou também razões contra a partilha de casas de banho por pessoas de sexos diferentes. A tese central do livro é que o sexo de uma pessoa não é uma questão subjectiva e que isso não pode deixar de depender da matéria biológica de que cada um de nós é feito. Apesar de não ser uma tese particularmente inovadora, o livro gerou uma feroz contestação, sobretudo nos campus universitários ingleses. Foram realizadas manifestações públicas para tentar silenciar Stock onde quer que fosse convidada a apresentar e discutir publicamente as suas ideias. A contestação acabou por levar Stock a abandonar a sua promissora carreira académica, fruto da hostilidade do próprio corpo docente da Universidade de Sussex. Tudo isto parece muito estranho, dado que Stock não tem sido a única a defender as mesmas teses. Porém, há duas características que fazem dela uma caso especial e que a tornam especialmente «perigosa» aos olhos dos seus censores: uma delas prende-se com o facto de Stock ser uma mulher lésbica, casada com outra mulher; a segunda, e talvez mais difícil de digerir, reside no rigor analítico e na clareza da sua argumentação filosófica, solidamente apoiada pelos dados empíricos disponíveis. Trata-se, além do mais, de um excelente exemplo da melhor prática filosófica e de como a filosofia pode ser útil para nos ajudar a compreender melhor o mundo.   


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O último livro de Susan Neiman é uma espécie de alerta sobre a crescente descaracterização da esquerda levada a cabo pelo chamado activismo woke. A Esquerda Não é Woke começa por expor os princípios fundamentais que historicamente têm caracterizado a esquerda e, de seguida, mostrar que o wokismo, apesar de se reclamar de esquerda, viola claramente tais princípios. Segundo Neiman, a esquerda liberal herdou do Iluminismo os seus três princípios políticos fundamentais: o universalismo, por oposição ao particularismo divisionista; a distinção entre poder e justiça, contra a ideia de que a justiça é sempre a razão do mais forte; a crença no progresso social, rejeitando a ideia de que a finalidade de qualquer luta é uma luta pelo poder e nada mais. Neiman procura mostrar que o wokismo é incompatível com esses três princípios ou teses, ao mesmo tempo que identifica a origem de tal degeneração. Neiman concede que o wokismo parte de uma genuína preocupação com aqueles que, ao longo da história, têm sido mais maltratados e desprezados. Contudo, tal preocupação acabou, segundo ela, por ser instrumentalizada e capturada por ideias irracionalistas que pouco ou nada têm que ver com a defesa dos mais fracos e humilhados. Trata-se das ideias de pensadores como Foucault, Carl Schmitt, Heidegger e outros que, apostados em ajustar contas com a história, eram motivados sobretudo pelo combate aos ideais iluministas da racionalidade, da universalidade e do progresso da humanidade. Assim, o wokismo resulta de motivações justas, mas instrumentalizadas por propostas teóricas reacionárias e iliberais. O activismo woke acaba, assim, por ser um subproduto corrompido da esquerda. Não é essa, pois, a esquerda liberal e progressista em que Neiman se reconhece. Até aqui, tudo bem. Mas o problema do raciocínio de Neiman é que o seu ponto de partida não é claro: a esquerda é apenas um conjunto de princípios teóricos ou inclui também as reivindicações concretas dos que actuam em nome dela? Se a prática concreta também for relevante para caracterizar a esquerda, então deixa de ser rigoroso afirmar que a esquerda não é woke. Os termos usados para caracterizar a esquerda não devem, de resto, ser diferentes dos termos usados para caracterizar a direita, pelo que se a prática não contar para um lado, então também não deve contar para o outro. Qual é, então, a verdadeira esquerda? É a esquerda dos princípios, isto é, a tal esquerda ideal? Ou será a dos que, na prática, agem politicamente em nome da esquerda, isto é, a esquerda real? Ou será uma combinação de ambas? Claro que a esquerda que interessa a Neiman é a esquerda dos princípios, que ela designa de esquerda liberal. Mas, nesse caso, o título do livro é enganador, dado que apenas alguma esquerda não é woke.