quarta-feira, 25 de junho de 2025

Amor, amor... e mais amor

Jean Vignaud, Abelardo e Heloísa surpreendidos por Fulbert (1819)

Se levarmos a sério o que as pessoas dizem valorizar acima de tudo, o amor é das coisas mais importantes das nossas vidas, senão mesmo a mais importante. Poucos se atrevem, como Nietzsche, a desvalorizar o amor, embora ele o tenha feito em relação a certas concepções comuns do amor, não ao que ele considera ser o amor autêntico.

Mas o que é, afinal, o verdadeiro amor?
 
Esta pergunta pode ser enganadora, pois pressupõe que há apenas um tipo de amor. Os antigos gregos já usavam diferentes termos — eroságape e philia — para falar do que nós dizemos ser amor, concebendo diferentes tipos de amor. Mas, dir-se-á, mesmo que haja diferentes tipos de amor, deve haver algo comum a todas as formas de amor: talvez seja um mesmo tipo de sentimento, ou um objectivo idêntico, ou o mesmo tipo de motivações. Se não houver uma natureza comum a todos os tipos de amor, por que razão usar o mesmo termo para coisas tão distintas?
 
Wittgenstein diria que aplicamos o mesmo conceito a coisas tão diferentes porque muitos dos nossos conceitos não têm limites definidos nem estáveis. Mas ele também acrescentaria que nem por isso temos de deixar de usar tais conceitos, ainda que os apliquemos a coisas tão diferentes, tal como usamos o conceito de jogo para coisas muitíssimo diferentes entre si: lutas (há competição) e paciências (não há competição), golfe (joga-se com bola) e corridas (não há bola), monopólio (jogo de tabuleiro) e corta-mato (joga-se no campo), sudoku (jogo solitário) e futebol (jogo colectivo), escalada (atividade física) e xadrez (atividade mental), esgrima (manejamento de instrumentos) e salto em comprimento (sem uso de instrumentos), corridas de cavalos (jogos com animais) e automobilismo (jogos motorizados), e assim por diante. 
 
Assim, mesmo que não sejamos wittgensteinianos, talvez não seja má ideia começarmos por aceitar a ambiguidade da pergunta «O que é o amor?» e, em vez de falarmos simplesmente do amor, especificarmos antes de que tipo de amor estamos a falar, de modo a não misturarmos tudo. 

Mas de que tipos de amor se pode falar? Há o chamado amor romântico (o eros dos gregos antigos); o amor divino e entre pais e filhos (o ágape dos gregos antigos); o amor pelo próximo e pelos nossos amigos (a philia dos gregos antigos); o amor por ideias, como as de verdade, de liberdade ou de pátria; o amor por lugares, como a terra onde se nasceu; o amor a Deus, para quem tem fé; e o amor-próprio, que uns consideram a forma mais pura de amor e outros uma expressão de narcisismo.

Tudo isso são coisas diferentes. Qualquer pessoa compreende que o amor entre duas pessoas apaixonadas é muito diferente do amor maternal, paternal e filial. Ainda assim, é geralmente o amor romântico que mais tem ocupado poetas, artistas, psicólogos e filósofos. O amor romântico, ou amor-paixão, é o que tem alimentado a arte e a literatura ocidentais. 

O ensaísta e filósofo suiço Denis de Rougemont defende, no seu interessante livro L'Amour et L'Occident, publicado no final dos anos 30 do século passado, que a literatura ocidental se alimenta da infeliz contradição, própria das sociedades ocidentais, entre o amor-paixão e a felicidade conjugal requerida pelo cristianismo. Daí que o adultério seja a principal expressão literária dessa contradição: «a julgar pelas nossas literaturas, o adultério parece uma das ocupações mais importantes a que se dedicam os ocidentais». Não é, pois, do amor realizado que se faz a boa literatura. O amor feliz não costuma dar boa literatura, ao contrário dos perigos da paixão amorosa ardente.
 
O amor romântico alimenta não apenas a literatura, mas todas as artes, no passado ou no presente. Como observou Frank Zappa, no mundo há mais música e canções sobre o amor do que sobre qualquer outro assunto. No entanto, também ele sublinhou que nem por isso o mundo se tornou um paraíso de felicidade amorosa. Talvez Rougemont tenha alguma razão e o amor romântico que encontramos na arte chamada ocidental, mais do que um modelo ou ideal a seguir, seja antes o reflexo da nossa condição cultural: a tensão entre o primitivismo místico da paixão abrasiva e a felicidade da comunhão conjugal cristã. 


Mas, podemos ao menos entender-nos sobre a natureza do próprio amor romântico? Mais uma vez, há quem garanta haver vários tipos de amor romântico. Stendhal, por exemplo, começa por discriminar, na sua obra De l'Amour, quatro tipos de amor: 1) o amor-paixão, dando como exemplos o amor da religiosa portuguesa pelo militar francês e o amor entre Heloísa e Abelardo; 2) o amor-prazer (amour-goût), que difere do anterior na medida em que, neste caso, tudo deve ser agradavelmente cor-de-rosa e o amante nunca perde o pé como acontece frequentemente no amor-paixão; 3) o amor físico, que surge bem cedo na juventude e é predominantemente sensual; 4) o amor-vaidade (amour de vanité), que é o amor cortês e galanteador, uma espécie de exibicionismo amoroso.

Em que ficamos, então? É possível encontrar algum elemento comum a estas expressões do amor romântico? Um mesmo tipo de sentimento? O mesmo tipo de desejo ou de disposição mental? Um certo tipo de motivação? E devemos procurar a resposta no âmbito da psicologia ou antes da filosofia?

Ao refletir sobre a natureza do tempo, Agostinho de Hipona perguntava no livro XI das suas Confissões: «O que é, pois o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar a quem me pergunta, já não sei». 

Será correcto dizer o mesmo sobre o amor?
 
 

Sem comentários:

Enviar um comentário