segunda-feira, 12 de março de 2012

Moral, para que te quero? Outra vez

Foto: Aires Almeida

A resposta referida no post anterior, é uma boa resposta? 

Note-se que não basta afirmar algo verdadeiro para que a resposta seja satisfatória. É também preciso que responda ao que, de facto, está em causa. Por exemplo, se alguém me perguntar qual é o atleta mais veloz do mundo e receber como resposta que Francis Obikwelu é um atleta muito veloz, não obtenho a resposta correcta, apesar de a afirmação ser verdadeira. 

Ora, passa-se algo semelhante com a resposta do aluno à pergunta sobre se haveria alguma razão para não roubar, caso ele tivesse a garantia de que ninguém iria alguma vez descobrir tal coisa. A resposta do aluno foi que, caso ninguém soubesse disso, não seria vergonha roubar. 

Em primeiro lugar, é verdade que vergonha não é roubar, mas sim roubar sem ser apanhado. Isto é assim porque o sentimento de vergonha por algo que fazemos envolve sempre a crença de que alguém sabe que fomos nós a fazê-lo. Portanto, se não acreditamos que alguém sabe disso, também não há qualquer razão para ter vergonha. O mesmo se passa, por exemplo, com o medo. Eu só posso ter medo de ser atacado se acreditar que há algo ou alguém que me pode atacar. Se acreditar mesmo que não há por perto qualquer ser que me possa atacar, então deixa de haver qualquer razão para ter medo. 

Só que o aluno ainda não está a responder à pergunta colocada, pois esta não é sobre se isso é ou não é vergonhoso, mas sobre se há ou não razões para o não fazer mesmo que tenhamos a certeza de que não seremos apanhados. Claro que podemos dizer que ele está no fundo a defender que a única razão para não roubar seria apanhar uma grande vergonha e que, visto estar livre de a apanhar, deixa de haver razão para não roubar. Logo, caso tivesse o anel de Giges colocado, não veria qualquer justificação para agir moralmente (não roubando, não mentindo, não faltando às suas promessas, etc.) No fundo, não teríamos qualquer razão para ser morais. 

Contudo, isto não é ainda satisfatório, pois podemos agora perguntar ao aluno por que razão haveria ele de sentir vergonha por ser apanhado a roubar. Por causa da censura dos outros? Mas não poderia estar-se nas tintas para o que os outros pensam disso? E, já agora, por que razão hão-de os outros achar vergonhoso roubar? Enquanto não conseguir dar uma resposta satisfatória a estas perguntas, o aluno ainda não terá conseguido defender adequadamente a sua ideia de que não há qualquer razão para sermos morais. 

Em suma, o aluno disse algo verdadeiro, mas ainda não respondeu adequadamente à pergunta. Seja qual for a resposta correcta.

Concordam?

quarta-feira, 7 de março de 2012

Moral, para que te quero?

Foto: Aires Almeida

Por que razão havemos de ser morais, se isso parece ser muitas vezes desvantajoso para nós próprios? Não é verdade que, por vezes, seria vantajoso para nós não cumprirmos as nossas promessas? Não seria muitas vezes vantajoso para nós mentir ou até roubar?

Algumas pessoas respondem que, ao contrário do que parece, nunca é vantajoso para nós roubar, mentir ou deixar de cumprir as nossas promessas. Bem vistas as coisas, dizem, nunca podemos estar seguros de que os outros não venham a descobrir isso, pelo que isso acabará, mais tarde ou mais cedo, por se voltar contra nós próprios: sermos presos, não sermos levados a sério pelas outras pessoas ou elas deixarem de se relacionar connosco.

E se tivéssemos a certeza absoluta de que as pessoas nunca iriam descobrir que roubávamos, que mentíamos e que não cumpríamos as nossas promessas? E se tivéssemos, como refere o filósofo Platão, uma espécie de anel mágico -- o anel de Giges -- que quando é colocado no dedo torna as nossas acções indetectáveis pelos outros? Poderíamos, então, fazer tudo o que fosse mais vantajoso para nós, desde roubar, mentir ou não cumprir as promessas feitas sem qualquer receio de virmos a ser descobertos. Será que, nesse caso, não teríamos qualquer razão para não roubar, não mentir e não faltar à nossa palavra? 

Fiz esta pergunta aos alunos do 10º ano numa aula. E, ao contrário do que alguns possam esperar, as respostas não foram todas no mesmo sentido -- o que não é novidade. Houve mesmo quem afirmasse seriamente que, caso tivesse a certeza absoluta que não seria apanhado, não via qualquer razão que o impedisse de roubar, de mentir e de faltar à sua palavra. A ideia é que não há qualquer razão para sermos morais, a não ser o receio de os outros levarem isso a mal e de, assim, nos complicarem a vida.

Procurando certificar-me melhor da posição do aluno, perguntei: 
— Serias capaz de roubar algumas das pessoas que estão aqui, caso tivesses a certeza absoluta que não serias apanhado?
— Na boa! -- esclareceu o aluno.
— Sem qualquer problema?
— Problema porquê, professor? Aprendi que não é vergonha roubar; vergonha é roubar e ser apanhado.
Terá o aluno razão? Se não tiver, como se lhe pode responder?

A minha resposta fica para outra postagem. Adianto apenas que a última afirmação do aluno é verdadeira, mas não tem razão. Estranho? E qual é a vossa opinião?


quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Filósofos e banalidades

Foto de Aires Almeida

Eis duas afirmações que encontrei em respostas de alunos a perguntas dos testes (uma delas num teste do 10º ano e outra num teste do 11º ano):

1. A teoria filosófica do subjectivismo moral caracteriza-se por defender que há diferentes opiniões sobre o que é moralmente correcto e o que é moralmente errado. 
2. Uma das coisas que Descartes quer mostrar com o cogito é que para pensar é preciso existir.

É fácil imaginar a que perguntas se está a responder, mas não é isso que interessa agora. Prestemos antes atenção ao que se diz e pensemos se as afirmações anteriores são filosoficamente interessantes, ou sequer informativas.

Em 1 diz-se que há diferentes opiniões sobre questões morais. Mas haverá alguém que discorde disso? Qualquer pessoa sabe isso. Não precisamos de filósofos para descobrirmos tal coisa. Que há pessoas com opiniões diferentes sobre este e outros assuntos parece óbvio. Basta ouvir o que elas dizem e observar como discordam umas das outras. Assim, defender que há opiniões diferentes sobre o mesmo assunto é afirmar uma banalidade que dispensa qualquer justificação, uma vez que se trata de algo que qualquer pessoa pode observar directamente.

Em 2 diz-se que para pensar é preciso existir, e que é disso que o filósofo em causa nos quer convencer. Mas, mais uma vez, será preciso um filósofo reflectir tanto e gastar tantas das suas energias para mostrar o que, afinal, já toda a gente sabe? Claro que para pensar é preciso existir, tal como para tossir ou espirrar é preciso existir. Um filósofo que se dedique a convencer-nos de tal coisa não passaria certamente de um tolo.

Mas os filósofos não costumam ser tolos, pois não é suposto existirem para afirmar banalidades.

Se os filósofos e as teorias filosóficas servissem para nos mostrar o que já sabemos sem precisarmos sequer de filosofar, então os filósofos e as teorias filosóficas não serviriam de nada. Nesse caso, sim, aqueles que acusam os filósofos de defenderem tolices, apelidando-os de lunáticos, teriam alguma razão. Mas muitas pessoas chamam tolos e lunáticos aos filósofos precisamente porque pensam, erradamente, que eles se dedicam a dizer coisas como essas. É o que acontece quando interpretam apressadamente algumas das suas afirmações mais famosas, como «Penso, logo existo», «Só sei que nada sei» ou «O homem é a medida de todas as coisas».

Parece, então, claro que os subjectivistas morais não se caracterizam por defenderem que há diferentes opiniões sobre o que é moralmente correcto ou incorrecto. Isso é algo que tanto o subjectivista como o objectivista dão como certo. E também não é verdade que o objectivo do cogito cartesiano seja o de mostrar que para pensar é preciso existir.

Assim, o que recomendo aos alunos de filosofia quando lêem ou escrevem algo que lhes pareça uma banalidade, é que voltem atrás e pensem melhor nisso: talvez estejam a compreender mal as coisas e a tirar conclusões precipitadas. Não porque os filósofos estejam livres de dizer banalidades (por vezes, acontece encontrarmos filósofos que, por detrás de um palavreado complicado, acabam por dizer coisas que verificamos serem, afinal, banais), mas porque não é suposto os filósofos fazerem tal coisa. Aliás, se descobrirmos que um filósofo está, afinal, a dizer banalidades, esse filósofo deixa de ter interesse filosófico. Ora, é pouco provável que a maioria dos filósofos, sobretudo os que têm sido minuciosamente estudados e aqueles cujas teorias têm sido amplamente escrutinadas, como é o caso de Descartes, digam banalidades tão desinteressantes. 

Mas só verificamos que estamos perante banalidades filosoficamente desinteressantes quando estamos a pensar mesmo no que lemos, dizemos ou escrevemos. É por isso que o mais importante para um estudante de filosofia não é tanto estudar (também é, sim, também é!), mas pensar cuidadosamente nas coisas. Dá trabalho, mas correm-se menos riscos de dizer disparates. 

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Os animais têm direitos?


A XIII Conferência de Filosofia da Teixeira Gomes foi um sucesso, tanto pelo interesse despertado no público, que encheu o auditório, como pela qualidade da comunicação proferida pelo conferencista Pedro Galvão, da Universidade de Lisboa. Pedro Galvão, especialista em ética, é organizador de vários livros na área da ética prática (a que também se chama «ética aplicada»), entre os quais se conta precisamente Os Animais têm Direitos? Perspectivas e Argumentos (Dinalivro, 2010). Assim, a qualidade e a clareza da comunicação proferida não foi inteiramente surpreendente.

A primeira coisa a sublinhar é que se tratou de uma conferência de filosofia e não de uma sessão de campanha a favor ou contra os direitos dos animais. Assim, o conferencista procurou apresentar as principais perspectivas acerca dos direitos dos animais não humanos, fossem a favor ou contra, e os principais argumentos em que tais perspectivas se apoiam, sem deixar de fazer a sua própria avaliação crítica e fundamentada de cada uma dessas perspectivas: a perspectiva tradicional (Kant e outros), a perspectiva utilitarista clássica (Bentham, Singer e outros), a perspectiva deontologista (Tom Regan) e, finalmente, a perspectiva do utilitarismo de regras (defendida pelo próprio conferencista).

Pedro Galvão começou por fazer três advertências de carácter teórico. 

A primeira é que, ao falar de direitos, o que estava em causa não eram os direitos legais, mas os direitos morais. Trata-se de coisas muito diferentes, pois para sabermos se os animais têm, num dado país, direitos legais, e quais são esses direitos, é apenas uma questão de consultar a legislação desse país sobre a matéria. Não há aí lugar a qualquer discussão filosófica. Mas se alguém tiver, por exemplo, o direito moral à liberdade, então nem nos países onde a lei não reconhece o direito à liberdade das pessoas (nos países com regimes autoritários e ditatoriais) esse direito se extingue: mesmo que não tenham legalmente o direito à liberdade podem ter o direito moral à liberdade.

A segunda é que, ao falar de animais não humanos, não se está a pensar em todos os animais, mas apenas em alguns. A diversidade de espécies animais é tão grande e as suas características tão diferentes, que não seria correcto incluí-las todas. Assim, não se incluem animais como, por exemplo, os insectos e a maior parte dos peixes. Do que se está a falar é sobretudo de mamíferos e aves, cuja complexidade neurológica e cerebral permite afirmar, sem grandes dúvidas, que têm alguma forma de senciência (capacidade de sofrer e de ter prazer) e algum grau de consciência de si. Isto é crucial, pois o facto de serem sencientes e autoconscientes (características que se podem ter em graus diferentes), permite concluir que esses animais, ao contrário dos outros, têm interesses, nomeadamente o interesse de não sofrer.

A terceira é que a expressão «ter direitos» é ambígua, podendo ser interpretada de duas maneiras diferentes, uma num sentido mais amplo e outra num sentido mais estrito. Num sentido amplo, dizer que um indivíduo ou espécie têm direitos significa que esse indivíduo ou espécie têm estatuto moral -- que são dignos de consideração moral. Num sentido mais estrito, dizer que um indivíduo ou espécie têm direitos, significa que esse indivíduo ou espécie têm direitos deontológicos, isto é, direitos invioláveis. Sendo assim, haveria duas questões que precisavam de resposta: se, por um lado, os animais não humanos têm estatuto moral e se, por outro lado, eles têm direitos deontológicos. Quem pensar que os animais têm direitos deontológicos, aceita implicitamente que eles têm estatuto moral, mas o inverso não acontece: podemos achar que eles têm estatuto moral e não concordar que têm direitos deontológicos. Assim, defender que os animais têm direitos deontológicos é defender uma tese mais forte do que a tese de que eles têm apenas estatuto moral. Portanto, dizer que têm estatuto moral é defender que os seus interesses devem ser considerados, mas não que sejam necessariamente satisfeitos. Estas questões colocam-se também acerca dos seres humanos, pelo que é esclarecedor pensar nisso também.

Afinadas estas questões prévias e feitas as distinções conceptuais necessárias, Pedro Galvão partiu então para a caracterização e discussão de quatro das mais importantes perspectivas sobre os direitos dos animais, sem deixar de referir que há outras que mereceriam atenção.

A primeira, a que deu o nome de «tradicional», não reconhece estatuto moral aos animais não humanos. A ideia é que os animais existem com a finalidade de servir os seres humanos e de ser por eles dominados, como alegadamente refere a Bíblia, mas também Aristóteles e Tomás de Aquino, entre outros. Esta ideia, apesar de ser amplamente partilhada, não deixa de ser estranha, como sublinhou Pedro Galvão: como podem os animais estar ao serviço dos seres humanos se no longo percurso da evolução das espécies os seres humanos surgiram muitíssimo depois de milhares de outras espécies animais, muitas delas entretanto extintas? Será que, por exemplo, os dinossauros foram criados com a finalidade de servirem os seres humanos e de serem dominados por estes? Esta visão antropocêntrica tem, contudo, uma versão menos radical, defendida pelo filósofo iluminista alemão Immanuel Kant. Este filósofo afirmava que o princípio fundamental da moral se baseia na razão, a qual nos manda tratar os nossos semelhantes como fins e nunca como meios, impedindo-nos de os instrumentalizar e de, assim, ferir a sua humanidade. Tratar os nossos semelhantes, e a nós próprios, como fins equivale a respeitar a autonomia de cada ser humano, considerando que as pessoas têm direitos invioláveis. Mas não poderemos ferir a humanidade de quem não é ser humano, pelo que os outros animais nem sequer fazem parte do universo da moralidade. A não ser indirectamente: temos deveres indirectos para com os animais na medida em que maltratar um animal implica prejudicar o seu proprietário. No caso de alguém maltratar o seu próprio animal em público, então estará a ferir a susceptibilidade de outras pessoas, que serão obrigadas a assistir a cenas que lhes são desagradáveis. Mas se for o próprio dono de um animal a maltratá-lo longe de olhares alheios? Nesse caso, alega Kant, estará a fazer algo que degrada o seu próprio carácter, pelo que estará a fazer mal a si próprio, o que também não é moralmente aceitável. Assim, Kant conclui que, em geral, é errado maltratar os animais, mas daí não se segue que eles tenham estatuto moral.  

A perspectiva tradicional foi posta em causa pelo fundador do utilitarismo, o britânico Jeremy Bentham. O princípio moral fundamental dos utilitaristas é que uma acção é moralmente boa se o bem-estar for superior ao mal-estar daí resultante, de um ponto de vista imparcial. Acresce que para os utilitaristas como Bentham o bem estar (ou felicidade) consiste no prazer e na ausência de sofrimento. Bentham irá, então, argumentar que aquilo que determina se um ser tem estatuto moral não é a racionalidade, mas a senciência: o que importa não é se os animais podem raciocinar ou falar, mas se os animais podem sofrer. O que há de errado em maltratar uma pessoa ou um animal não é ele ser capaz de reflectir sobre isso ou de ser capaz de o verbalizar, mas o facto dessa pessoa ou animal sentirem dor e estarem, por isso, a sofrer -- quer esse sofrimento seja físico ou psicológico. Ora, neste particular, não há qualquer diferença entre os seres humanos e alguns animais não humanos. Assim, alguns animais têm estatuto moral do mesmíssimo modo que os seres humanos o têm e não há qualquer razão para estabelecer diferença entre uns e outros. Qualquer outra diferença seria moralmente arbitrária. Mas, dado que tudo o que conta para a moralidade é a maximização do bem-estar geral, não pode haver direitos invioláveis, pois isso iria colocar limites à maximização do bem-estar. Logo, nem sequer os seres humanos têm direitos deontológicos. Isto parece ter consequências indesejáveis, pois teríamos de considerar como moralmente aceitável matar uma pessoa saudável para lhe retirar os seus órgãos e com eles salvar a vida a meia-dúzia de pessoas que deles necessitassem, o que contribuiria para maximizar o bem-estar geral. Mas isso parece ir contra as nossas mais firmes intuições morais; parece-nos que há direitos que simplesmente não podem ser violados e que há direitos que são moralmente mais importantes do que a maximização do bem-estar geral. O problema agora passa a ser o seguinte: se os seres humanos têm direitos deontológicos, então não se percebe o que impediria os animais de os terem também. Ora, isso é um problema porque implicaria alterar radicalmente o modo como tratamos os animais, contrariando as nossas intuições de que há diferenças de estatuto moral entre seres humanos e animais.

Mas o deontologista americano Tom Regan defende precisamente que não há qualquer diferença de estatuto moral entre uns e outros, defendendo que animais e seres humanos têm direitos invioláveis. Esta foi a terceira perspectiva discutida. Regan afasta-se do deontologismo clássico de Kant porque isso implicaria negar estatuto moral a seres humanos desprovidos das suas faculdades racionais, como é o caso dos deficientes mentais profundos e de idosos que perderam as suas faculdades racionais, entre outros. Ora, se queremos incluir esses casos dentro da esfera de seres dignos de consideração moral, então o critério de atribuição de direitos não pode ser o da racionalidade. Qual é, então, esse critério? Regan responde que é o de ser sujeito de uma vida: ter uma vida com um grau razoável de unidade psicológica. Ser sujeito de uma vida não é apenas viver. Em vez de uma vida à qual se vão acrescentando momentos uns a seguir aos outros sem nada que os ligue, aquele que é sujeito de uma vida consegue ligar esses momentos numa unidade, sendo capaz de ter memórias de momentos passados, expectativas sobre o que se segue, desejos, medos, etc. Ora, isso verifica-se não só nos seres humanos, mas também em alguns animais. Assim, certos direitos, como o direito à vida, à liberdade e à integridade corporal são invioláveis, tanto no caso dos seres humanos como no caso de alguns animais. Deve-se, pois, acabar imediatamente com a criação e abate de aves e mamíferos na indústria alimentar, com as touradas, os circos com animais, os jardins zoológicos, as gaiolas, as corridas de cães, etc. Pedro Galvão considerou esta perspectiva demasiado radical. Seria, de resto, interessante discutir se, de acordo com Regan, as pessoas que padecem da doença de Alzheimer em estado avançado são realmente sujeitos de uma vida e, portanto, se serão dignos de consideração moral.


A última perspectiva foi a defendida pelo próprio conferencista. Trata-se de uma perspectiva utilitarista, mas diferente do utilitarismo clássico, que tem em conta as consequências de cada acto isoladamente. Ao invés, o que conta nesta perspectiva utilitarista são as consequências que resultam da adopção de diferentes códigos morais, isto é, de diferentes sistemas de regras morais. Pedro Galvão pensa que os seres humanos têm direitos deontológicos, mas não os animais. Mas também defende que alguns animais têm estatuto moral, afastando-se assim das três perspectivas anteriores. 

Não vou adiantar aqui mais pormenores, que Pedro Galvão sumariou na sua conferência. Em vez disso, fica aqui a sugestão de lerem o que Pedro Galvão vai publicando sobre o assunto. Vale mesmo a pena.


quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Os fundamentos da moral

Foto de Aires Almeida

Praticamente todas as pessoas fazem a distinção moral entre o bem e o mal, o certo e o errado, o que se deve e não deve fazer. Mas de onde nos vêm as ideias de bem e de mal, do certo e do errado? O que justifica tais distinções? Numa palavra, quais os fundamentos da moral?

Eis algumas respostas possíveis.

Algumas pessoas pensam que a moral se baseia nos sentimentos e opiniões de cada sujeito, havendo assim diferentes critérios, todos eles aceitáveis, para distinguir o que é moralmente certo do que é moralmente errado. 

Outros pensam que as questões morais não dependem tanto das opiniões pessoais, sendo antes algo estabelecido por consenso no seio de cada sociedade. Assim, diferentes sociedades ou culturas têm diferentes códigos morais e diferentes critérios para distinguir o que é moramente certo do que é moralmente errado. As noções morais não passam, pois, de convenções sociais, que mudam consoante a sociedade ou cultura em causa.

Mas também há quem defenda que as questões morais não dependem dos sentimentos de cada um nem de quaisquer convenções sociais, defendendo que tais noções vêm de Deus. Para essas pessoas, é Deus quem decide de uma vez por todas o que é o bem e o que é o mal, oferecendo-nos critérios fixos e universais para distinguir o que é moralmente certo do que é moralmente errado. Sem Deus não saberíamos distinguir o bem do mal e viveríamos no «reino do vale tudo», dizem.

Outros ainda pensam que não é Deus quem estabelece o que é bom ou mau, apesar de haver critérios universais para distinguir o que é moralmente certo do que é moralmente errado. Estes dizem que a distinção entre o bem e o mal é uma questão racional; é uma questão de reflectir cuidadosamente sobre as coisas e nos deixarmos guiar pela nossa razão natural para chegar a conclusões racionalmente justificadas sobre o que devemos ou não devemos fazer.

Recapitulando, qual é, então, o fundamento ou a natureza da moral?

1. São os sentimentos de cada um? Tem a moral uma natureza emocional e subjectiva?
2. É a sociedade? Tem a moral uma natureza social?
3. É Deus? Tem a moral um fundamento divino ou uma natureza religiosa?
4. É a razão? Tem a moral um fundamento racional?

Haverá outras respostas? Qual é a vossa opinião? Porquê? 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Três perguntas

Foto de Aires Almeida

1. Será que podemos saber que algo é verdade e não acreditar nisso (por exemplo, saber que Neil Armstrong foi o primeiro ser humano a pisar a Lua, mas não acreditar que Neil Armstrong foi o primeiro ser humano a pisar a Lua)?

2. Será que se algo é verdade, alguém tem de saber isso (por exemplo, se for verdade que há extraterrestres inteligentes, então alguém tem de saber que há extraterrestres inteligentes)?

3. Será que alguém sabe mesmo que há (ou que não há) extraterrestres inteligentes?

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Cinema na sala de aula

Do filme Doze Homens em Fúria, de Sidney Lumet

Com as matérias previstas para o primeiro período e as avaliações arrumadas, aproveito estas últimas aulas antes do Natal para dar aos alunos uma ideia do que vamos discutir no período seguinte. Aproveito também para sugerir algumas leituras e outras boas maneiras de ocupar algum do seu tempo disponível: livros, música e filmes. Um dos filmes que costumo sugerir aos alunos do 11º ano é Matrix (o primeiro da trilogia), dos irmãos Wachowsky, de que costumo falar a propósito de Descartes.

A verdade é que são normalmente poucos os alunos que ligam a tais sugestões, preferindo muitas vezes passar horas a fio a jogar videojogos, a trocar bocas e inutilidades no Facebook ou a ver TV. Por isso, decidi desta vez adiantar-me e passar-lhes o filme mesmo nas aulas. Até porque, ao contrário do que tantas vezes nós professores supomos, os alunos raramente conhecem os filmes que nos entusiasmaram e achamos imprescindíveis. 

Tive o cuidado de perguntar quantos já tinham visto Matrix. Sem surpresas, a esmagadora maioria nem sequer tinha ideia de que tipo de filme se tratava. Eles dificilmente conhecem filmes com mais de meia-dúzia de anos. Assim, pensar que os alunos ficam entusiasmados quando falamos de filmes nas aulas é uma completa ilusão. O melhor mesmo é arranjar maneira de eles os verem antes.

Mas continua a ser ilusório pensar que basta eles terem visto os filmes para ficarem motivados para a discussão filosófica. Por vezes os filmes acrescentam até novas dificuldades, pois é para alguns difícil compreender a história que se desenrola diante de si. Os meus alunos do 11º ano que lerem este texto sabem bem que tive de interromper Matrix a meio para lhes explicar aspectos centrais da própria história, e cuja incompreensão os deixava perdidos. Isto apesar de os mesmos alunos estarem a gostar do que viam - é preciso reconhecer que há diferentes razões para se gostar de um filme. 

Tudo isto me leva a pensar que não vale a pena recorrer ao cinema para ensinar filosofia, se isso não for previamente preparado e devidamente enquadrado, o que não é trabalho fácil. Sem essa preparação, a utilização de filmes nas aulas dificilmente é um elemento motivador.  Não é claro que ajudem a esclarecer seja o que for, resultando facilmente em ruído didáctico. 

O meu colega e amigo Carlos Café tem feito o tal trabalho imprescindível, elaborando guiões de visionamento de filmes para as aulas de Filosofia. Alguns deles encontram-se no seu blogue a filosofia vai ao cinema e mostram como se deve encarar o uso do cinema nas aulas de Filosofia.

E não se admirem de ver por lá guiões de filmes antigos, alguns dos quais a preto e branco. Eu também pensava que filmes antigos a preto e branco não captavam a atenção de jovens adolescentes. Mas essa é outra coisa que verifiquei ser ilusória. Os alunos até podem começar por protestar, mas alguns desses filmes acabam por despertar mais entusiasmo do que sucessos mais recentes. Os alunos do 10º ano acabaram por mostrar mais entusiasmo com Doze Homens em Fúria, um filme a preto e branco de 1957, de Sidney Lumet, do que propriamente os do 11º ano por Matrix.

Nesta matéria (como em outras) convém não partir para o terreno com ideias feitas, seja em que sentido for.


terça-feira, 29 de novembro de 2011

Questões práticas

Foto de Aires Ameida

Numa das últimas aulas do 11º ano estávamos a tentar resolver um exercício de lógica quando um aluno me interpelou da seguinte maneira:

- Ó professor, não estou a perceber isto. Eu cá sou uma pessoa prática e não vejo porque hei-de estar a esforçar-me para aprender algo de que não irei precisar no futuro. Para quê, afinal?

A pergunta é natural e até compreensível, além de ter sido feita de boa fé. E até nem sequer é uma pergunta inabitual. Tinha, pois, o dever de lhe responder. E disse-lhe que havia, não uma, mas três maneiras diferentes de lhe responder.

A primeira é que a pergunta dele revela, afinal, pouco sentido prático. Uma pessoa prática pensaria assim: dado que esta disciplina faz parte do meu currículo escolar e que essas matérias fazem parte do programa, então é inútil perguntar para que serve. Perder tempo com isso é apenas uma maneira de fugir ao assunto em vez de simplesmente aprender o que, de qualquer modo, lhe é exigido.

A segunda é que raramente (ou mesmo nunca) precisamos de recorrer à maior parte do que aprendemos na escola, seja em Filosofia, Matemática, História, Biologia ou outra disciplina qualquer. Eu, por exemplo, não me recordo da última vez que precisei de recorrer ao teorema de Pitágoras, de invocar as causas da batalha de Alcácer Quibir ou de referir o processo da fotossíntese. E estou só a falar de aspectos centrais do estudo daquelas disciplinas. Mas daí não se segue que não devíamos ter perdido tempo a aprender essas coisas, pois nunca podemos prever se iremos ou não precisar delas em momentos cruciais da nossa vida pessoal e profissional. É por isso que não achamos inútil o dinheiro que gastamos a comprar enciclopédias e dicionários que só parcial e esporadicamente consultamos. Há circunstâncias em que só eles conseguem esclarecer as nossas dúvidas e ajudar a ultrapassar dificuldades. Por isso é bom tê-los na estante, mesmo que passemos meses sem os consultar. O mesmo se passa com muito do que aprendemos na escola, incluindo na disciplina de Filosofia.

A terceira é que estamos frequentemente enganados quando dizemos que não precisamos de certos conhecimentos afastados da nossa área principal de interesses pessoais ou profissionais. Os modos como as coisas se podem ligar e influenciar umas às outras são muitos e surpreendentes. Muitas vezes nem sequer nos damos conta dos conhecimentos de que, na prática, precisamos e estamos a aplicar. 

Mas há ainda uma quarta resposta, que eu não lhe cheguei a referir: que, independentemente da sua aplicação prática profissional, o conhecimento é, em si mesmo, algo valioso; é algo que nos enriquece e nos torna pessoas mais interessantes. 

Como se vê, as questões práticas têm, na prática, muito que se lhes diga.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Mais lugares da filosofia: a cabana de Heidegger

Desta vez deixo aqui o texto sobre os lugares da filosofia que, respondendo ao nosso convite, o colega Alexandre Guerra (professor da Escola Secundária António Aleixo) escreveu a propósito do Dia Mundial da Filosofia.

Heideggers Hütte

Por Alexandre Guerra

Todos os jovens têm os seus heróis e eu, porque também fui jovem, tive os meus. Heidegger foi, sem dúvida, o meu pensador herói. Porque a juventude é uma idade propícia aos excessos, bebi-o com o mesmo excesso de quem descobre a embriaguez. 
Visitei sempre o pensamento de Heidegger como quem visita o oráculo de Delfos, que não mostra, não esconde, apenas indica. Partilhava intuitivamente a mesma crença na decadência mecanicista do ocidente e desprezava o temor da filosofia em perder a sua importância, caso não apanhasse o comboio da ciência. Era-me insuportável a ética e toda a dimensão técnica e prática do pensar. Também eu partilhava a crença de que com o surgimento de nomes como «Lógica», «Ética» e «Física», o pensamento original tinha chegado ao fim. 
Dizia Heidegger que na interpretação técnica do pensar, e a «Lógica» seria a confirmação desta interpretação, o ser é abandonado como elemento do pensar. Heidegger, de espírito fino, usou esta imagem na sua Carta Sobre o Humanismo: «Julga-se o pensar de acordo com uma medida que lhe é inadequada. Um tal julgamento assemelha-se a um procedimento que procura avaliar a natureza e as faculdades do peixe, sobre a sua capacidade de viver em terra seca.» 
Lembro uma história citada por Heidegger, invocando um relato de Aristóteles. Narra-se que Heraclito foi visitado por forasteiros. Quando chegaram ao local onde habitava o sábio pensador, cedo a ansiedade se transformou em frustração e desconcerto ao verem um lugar rude e despojado onde um homem de aparência humilde se aquecia junto ao fogo. Ao ver o desconcerto dos curiosos, Heraclito exclamou: - «Também aqui habitam os deuses.» O paralelismo entre estes pensadores sempre me pareceu evidente. A minha imaginação explodia ao visualizar o pensador Heidegger na sua cabana na Floresta Negra na tarefa do pensar e do poetizar. O elitismo de Heidegger era irresistível: perante o pensar, a multidão, tal como os recém-chegados, na falta da sensação esperada, volta para trás. Eu jamais vacilaria, estava preparado para pensar com o mestre junto ao fogo na sua cabana. Imaginava-a embrenhada na floresta densa, tal como o seu pensamento. Imaginava-a fundada nas raízes da floresta sombria e na terra de homens robustos, sólidos no querer. 
Há coisa de um ano, visitei a célebre cabana onde Heidegger escreveu muitas da suas obras e se entregou à tarefa do pensar. Fica numa aldeia chamada Todtnauberg no município de Todtnau, na região de Baden-Württemberg. A poucos quilómetros, fica a cidade de Freiburg, onde Heidegger lecionou. 
Quando se chega à aldeia, vemos ostentado o respetivo brasão e cedo compreendemos que chegámos a uma terra de lenhadores. Esta aldeia fica num vale que constitui uma das muitas clareiras da Floresta Negra. Ao contrário do que sempre imaginei para a minha primeira visita, o dia estava apolíneo, seco e morno – a experiência do frio e da humidade teutónicos teria de esperar. Chegado a Todtnauberg, cedo procurei algum sinal que me levasse à cabana onde o pensador teria «trazido à linguagem, pelo pensar, apenas a palavra impronunciada do ser.» Não suportei a espera da procura e, de imediato, perguntei a um caminhante, que por ali passava, se me poderia indicar onde ficava a cabana de Heidegger. Sereno e complacente com a minha ansiedade, disse-me que seguisse as tabuletas de madeira que estavam mesmo à minha frente, no início de um trilho que subia um dos montes que nos rodeavam. Bastava ter lido: «Heidegger-Rundweg». 
Após uma longa e íngreme subida, cheguei ao tão desejado destino. A cabana de Heidegger, agora da família, ali estava, não na densa e escura floresta, mas na orla do bosque, numa saliência de um dos lados do monte, com vista para o vale de Todtnaubeg, para a clareira da floresta. À medida que fui percorrendo os caminhos da floresta até à vista para a clareira, revisitei as minhas leituras de jovem e confirmei que o pensamento de Heidegger estava sustentado naquela terra, tal como as botas do lenhador no seu passo robusto e firme. Embora seca, assim me pareceu, ainda lá está a célebre bica de madeira. 
Porque já perdi os dotes sibilinos do passado, afirmo com clareza que Heidegger tentou traduzir na linguagem a experiência de um pensamento que está para além da racionalidade e que não é, necessariamente, irracional. A verdade é que continuo a visitar uma dimensão semelhante do pensar, quando os tempos modernos o permitem, ou, pelo menos, continuo convencido de que a visito. No entanto, hoje considero perigoso pensar o «ser»; o «autêntico» e o «originário» sem gente dentro ou sem considerar algumas regras de racionalidade básicas. Por mais sedutora e originalmente profunda que seja esta experiência do pensar, nomes como «Lógica», «Ética» e «Física», permitem-nos pôr à prova as nossas crenças, confrontando-as e partilhando-as efetivamente com outros, diminuindo, assim, a possibilidade dos grandes erros.
Fotos de Alexandre Guerra

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Viena: viveiro do pensamento contemporâneo

Foto de Aires Almeida
Talvez nenhum outro lugar no mundo moderno tenha conseguido ser tão intelectual e culturalmente excitante como a cidade de Viena entre o início dos anos 10 e meados dos 30 do século passado. Da pintura e da arquitectura à matemática e à ciência, passado pela literatura e pela música, o fulgor de Viena não teve rival no mundo ocidental dessa época.
Durante esse período Viena não era só a capital de movimentos artísticos, como o Jugendstill – a Arte Nova austríaca – em que já se tinham destacado pintores como Gustav Klimt e Egon Schiele ou arquitetos como Otto Wagner. Era também o umbigo do modernismo em arquitetura, que se opunha radicalmente ao Jugendstill e que tinha como figura de proa Adolf Loos, um dos mais controversos arquitectos do século XX. 
Era ainda palco de dramaturgos, escritores e ensaístas como o elegante Hugo Von Hofmannsthal, o singular Robert Musil, o provocatório Arthur Schnitzler, além do temido – e sempre actual – Karl Kraus. Essa mesma Viena assistiu à maior revolução musical do século, a chamada Segunda Escola de Viena (a primeira tinha surgido no séc. XVIII, com Mozart, Haydn e Beethoven), encabeçada pelo visionário compositor Arnold Schoenberg, e desenvolvida por Alban Berg e Anton Webern, todos eles influenciados por Gustav Mahler, outro vulto maior da Viena do início do século XX.
Tudo isto enquanto Sigmund Freud fazia nascer a psicanálise e escandalizava o mundo com os seus livros sobre a estreita relação entre o comportamento humano, o inconsciente e a sexualidade, ao mesmo tempo que recebia e analisava a alta sociedade vienense no seu consultório, no nº 13 de Berggasse.
Nessa mesma altura, o físico vienense Erwin Schrödinger começava a dar as suas primeiras contribuições para a física quântica e Kurt Gödel marcava definitivamente, a partir de Viena, a lógica matemática, tornando-se seguramente um dos maiores lógicos de sempre. Isto sem esquecer figuras como o ilustre etologista Konrad Lorenz e aquele que ainda é talvez o mais influente historiador da arte do último século, Ernst Gombrich.
Foi ainda por essa altura que a teoria económica e a economia política viram nascer, com Friedrich Hayek e Ludwig von Mises, as primeiras ideias liberais que estiveram na base da conhecida e influente Escola Austríaca. 
Tudo isto é impressionante, mas ainda nem sequer se falou do panorama filosófico. Ora, não será exagero afirmar que essa Viena foi precisamente um dos mais importantes viveiros da filosofia contemporânea. Não só porque foi a cidade onde nasceu um dos movimentos filosóficos mais abrangentes e influentes do último século, o célebre Círculo de Viena, a que estiveram ligados alguns dos vultos anteriores (Gödel, por exemplo), mas também a cidade natal de gigantes da história da filosofia contemporânea como Ludwig Wittgenstein e  Karl Popper.
Não é errado dizer, por um lado, que uma boa parte da filosofia contemporânea visa uma de duas coisas: desenvolver as ideias centrais do Círculo de Viena ou, pelo contrário, desembaraçar-se delas. Seja como for, o Círculo de Viena, onde se destacou acima de todos Rudolf Carnap, contribuiu para libertar a filosofia do pântano místico e idealista em que se estava a atolar, dando-lhe rigor, precisão e algum tino. Por outro lado, há quem considere, talvez com algum exagero, que há uma filosofia anterior a Wittgenstein e outra que tem em conta Wittgenstein, por muitos encarado como o maior filósofo do último século. Quanto a Popper, arriscaria dizer que a sua filosofia política e a sua filosofia da ciência se tornaram hoje uma espécie de senso comum académico. Popper, que tanto se opôs ao Círculo de Viena como ao seu conterrâneo Wittgenstein, a ponto de este, no meio de uma animada discussão filosófica entre ambos, o ter ameaçado com o atiçador de uma certa lareira em Cambridge.
Viena não é, pois, apenas a cidade das valsas, da ópera, da psicanálise e dos requintados cafés. É também uma das capitais mundiais da filosofia, o que não é, afinal, de espantar, pois a filosofia não nasce da reflexão solitária, mas do confronto aberto de todo o tipo de ideias. Pena é que o ódio nazi à pluralidade de ideias tenha posto fim ao esplendor intelectual de Viena, levando a que quase todas essas figuras se vissem forçadas a fugir da barbárie, procurando abrigo noutras paragens.


Wittgenstein, filho de um dos maiores milionários da Europa, era também um arquitecto amador. Esta é a casa que o filósofo desenhou para a sua irmã Margaret, em Kundmanngasse, Viena. Trata-se de uma obra assumidamente influenciada pelas recentes ideias modernistas de Adolf Loos.