A propósito das discussão que nos últimos dias tem empolgado muitas pessoas, ocorreu-me esta passagem de um livro de Nigel Warburton, que merece bem a pena ser lido.
Poderá parecer que das perspectivas de Mill acerca da livre expressão e do valor das falsidades sinceramente expressas se segue que deveríamos procurar activamente proporcionar um palco àqueles de quem discordamos fortemente. Trata‑se de uma forma pública de submeter as nossas perspectivas ao teste mais exigente: a confrontação com o erro sinceramente defendido. Inspirando‑se ou não em Mill, houve quem argumentasse neste sentido. Por exemplo, num debate em 2007 sobre o tópico da liberdade de expressão na Oxford Union Society, o seu presidente, Luke Tryl, justificou os seus convites a Nick Griffin (do Partido Nacional Britânico) e a David Irving afirmando que para um debate apropriado era importante escutar todas as perspectivas, ainda que fossem abjectas.
Muitas pessoas crêem haver fortes argumentos a favor de não dar palco a esses oradores. Poderá tratar‑se literalmente de um palco, como sucedeu no convite para a Oxford Union Society, ou poderá ser um palco metafórico, como ser‑lhes concedido espaço num jornal reputado ou serem entrevistados a propósito das suas perspectivas para um programa de rádio ou televisão. Os que adoptam a posição contrária a «dar palco» (e.g. sob a forma de «não dar palco a racistas» ou «não dar palco a negadores do Holocausto») argumentam que é moralmente errado dar credibilidade a tais pessoas, permitindo‑lhes acesso a esses canais de comunicação, canais que não raro trazem implícita uma marca de respeitabilidade. Por exemplo, convidar Irving para falar na Union Society poderia ser visto como um reconhecimento das suas credenciais como historiador académico, podendo desse modo fazer que fosse levado mais a sério do que deveria ser.
Por outro lado, quem convidou Irving frisou que a Oxford Union tem uma longa história de convidar oradores controversos, inclusive, no passado, Malcolm X, e que um convite para esse palco em particular não acarretava de todo qualquer aceitação das perspectivas do orador. Os oradores são muitas vezes seleccionados com base na notoriedade, em vez de na probabilidade de uma contribuição intelectual para um debate importante.
Analogamente, numa conferência de zoologia, o comité organizador poderá muito bem decidir que seria inapropriado um Criacionista da Terra Jovem, alguém que considera a Bíblia como uma explicação literal da origem da vida, partilhar um palco com cientistas reputados, porque isso parece sugerir que as perspectivas dos Criacionistas da Terra Jovem são cientificamente respeitáveis, o que claramente não sucede. Richard Dawkins cita um comentário cínico de um colega cientista, acerca deste tópico. Sempre que um criacionista o convida para um debate formal acerca dos indícios a favor da evolução, este cientista replica: «Isso ficaria muito bem no seu CV, mas não tão bem no meu.»
Uma variante da perspectiva contra «dar palco» foi usada por Deborah Lipstadt, que, apesar de ser uma entre pouquíssimas pessoas adequadamente preparada para refutar passo a passo e em grande detalhe as perspectivas de Irving sobre o Holocausto, recusou aparecer em debate com Irving, com base em que aparecer sequer em público com ele lhe daria uma credibilidade que não merecia. Neste caso, a presença de Lipstadt como académica íntegra ao lado de Irving equivaleria a um reconhecimento indirecto da sua respeitabilidade como historiador. A ideia é que, tendo‑se mostrado que Irving é sistematicamente enganador acerca de algumas das suas fontes primárias, ele se desacreditou inteiramente a si próprio. Um terçar de armas com alguém credível poderia ser lido como parte da sua reabilitação enquanto investigador.
É importante distinguir entre os argumentos contra dar palco e outros fenómenos relacionados. Primeiro, os argumentos contra dar palco não constituem uma censura total. Posso acreditar no direito jurídico que o leitor tem de dar voz às suas perspectivas sem com isso ter qualquer obrigação de lhe dar os meios para o fazer. Em particular na era da Internet, a maioria de nós pode encontrar meios de exprimir as suas perspectivas a um público vasto. A completa censura é uma tentativa de impedir toda a expressão de perspectivas particulares. Os argumentos contra dar palco são acerca de se evitar sancionar indirectamente um orador, dando‑lhe um pódio a partir do qual possa comunicar as suas perspectivas.
Deve‑se também distinguir entre os argumentos contra dar palco e a perspectiva de que só os tolerantes são dignos de serem tolerados, que não temos a obrigação de preservar a liberdade de expressão daqueles que restringiriam o discurso de outros. Este género de raciocínio, por tentador que seja, não merece a designação de «livre expressão». Pode levar a um tipo de censura. Sem dúvida, os argumentos de Mill a favor da livre expressão não discriminarão os intolerantes como indignos de serem escutados. As pessoas intolerantes podem muito bem dar voz à verdade em muitos assuntos, ou as suas perspectivas poderão conter elementos de verdade. Os argumentos contra dar palco são argumentos acerca do que fazemos indirectamente ao dar palco a determinadas pessoas, e não uma recusa absoluta de dar palco seja em que situação for, como punição pela intolerância do orador.
Os veredictos de Mill sobre a livre expressão poderão, aparentemente, justificar que se convide extremistas a participarem nos debates públicos, apesar de as suas perspectivas nos parecerem repugnantes. No entanto, como consequencialista, Mill teria sido também sensível aos efeitos secundários desses convites, que, em alguns casos, podem ter bastantes ramificações. Também esboçaria muito claramente um limite para lá do qual a expressão dos oradores se tornaria incitamento à violência.
Porém, quando uma pessoa é repetidamente impedida de usar a imprensa e a televisão para apresentar uma mensagem a uma audiência mais vasta, isto pode começar a assemelhar‑se a censura informal. Se a consequência fosse as ideias dessa pessoa não chegarem a ser expressas abertamente e não são sujeitas ao escrutínio crítico, seria um resultado infeliz.
(pp. 48-51)