quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Compreender a natureza divina

Luca Cambiaso, Benção de Deus Pai (c. 1565)

De acordo com a concepção teísta da divindade, há um só Deus e tem as seguintes características:

— é um ser pessoal incorpóreo (uma pessoa não humana);

— é criador do universo (criou o espaço e o tempo, assim como as próprias leis da natureza);

— é omnipotente (pode fazer rigorosamente tudo o que é logicamente possível);

— é omnisciente (conhece rigorosamente tudo o que pode ser conhecido);

— é omnibenevolente (é moralmente perfeito, fazendo e desejando apenas o bem e tudo o que é bom);

— é transcendente (está para além do universo, ainda que tenha o poder de actuar nele);

— é eterno (não tem começo nem fim: não começou nem deixará de existir);

— é livre (a sua vontade não é determinada, fazendo tudo o que quer e só o que quer, sem quaisquer constrangimentos externos).

Numa palavra, Deus é um ser que reúne todas as perfeições.

Há quem acrescente outras características e quem afirme que a lista poderia ser mais reduzida, dado que algumas daquelas características acabam por ser implicadas por outras. Por exemplo, ser criador do universo implica ser transcendente, uma vez que, para criar o universo, o criador tem de existir antes da criação, ou seja, tem de existir antes de haver universo. 

Por outro lado, não parece fácil conciliar de forma coerente todas aquelas características num mesmo ser, o que torna particularmente difícil justificar a crença na existência de um ser assim. Como conciliar, por exemplo, a omnipotência, a omnisciência e a omnibenevolência de um ser que criou um mundo onde o mal abunda? 

Mas há outras dificuldades, mais banais e mundanas, acerca das qualidades divinas e a que os teístas têm tentado responder. Eis algumas delas:

1. Deus está limitado pelas leis da natureza?

Diz-se que Deus não está limitado pelas leis que ele mesmo criou. Além disso, sendo transcendente (ou sobrenatural), as leis da natureza não se lhe aplicam. De resto, ele poderia até mudar as leis da natureza, escolhendo outras em vez destas. Mas, ... poderia mesmo? Que razões teria para alterar a sua própria obra, alegadamente perfeita? Não seria isso admitir a imperfeição da obra-prima de um ser perfeito? Como explicar tal decisão num ser que se diz ser omnipotente, omnisciente e infinitamente bom?

2. Deus pode realmente escolher fazer o mal, em vez do bem? 

O teísta tem de insistir que Deus nunca fará o mal, mas dirá também que Deus é totalmente livre. O problema é se isso é mesmo possível: ser livre escolhendo apenas o bem. 

3. Deus conhece o sabor e o cheiro a café?

Claro que, na sua omnisciência, Deus sabe tudo acerca de tudo, pelo que sabe tudo acerca do café. Contudo, Deus não consegue ter a experiência de saborear ou de cheirar o odor do café, dado que se trata de experiências ligadas aos nossos sentidos. Ora, Deus não tem corpo e, portanto, também não tem os órgãos dos sentidos. Nesse caso, como poderá Deus sentir o cheiro a cafe ou o seu sabor? É possível ele ter na sua mente o qualia do sabor a café, isto é, a qualidade subjetiva da experiência de saborear o café?

E acrescento outras perguntas, a que os teólogos naturais e filósofos teístas talvez não tenham tanta dificuldade em responder.

4. Deus tem sexo?

Bem, a resposta aqui é mais simples, posto que Deus é uma pessoa incorpórea. Por isso, ele não é do sexo masculino nem do sexo feminino, apesar de os pintores o terem representado quase sempre como um homem.

5. Deus pode fazer ginástica?

Mais uma vez, não tendo corpo também não poderá fazer ginástica. Que pena, dirão uns. Que descanso, dirão outros. Bem vistas as coisas, Deus não precisa sequer de se deslocar de um lugar para o outro, dado estar em todos os lugares ao mesmo tempo. 

6. Deus pode suicidar-se?

Claro que não, pois ele é, por definição, eterno. Nesse caso, a sua inexistência é inconcebível. 

Alguns poderão concluir: bem, há afinal algumas coisas que os simples seres humanos podem fazer e Deus não. 

Mas, será isso um problema para o teísmo?


quarta-feira, 9 de outubro de 2024

O cinzeiro de Kuhn

As discussões filosóficas nem sempre são tão pacíficas como se pensa, havendo mesmo algumas que chegaram a ser fisicamente ameaçadoras. A célebre história do atiçador com que Wittgenstein ameaçou o seu conterrâneo Popper no Clube de Ciência Moral, em Cambridge, não é caso único. Wittgenstein não chegou a vias de facto mas a ameaça parece ter sido séria. Curiosamente, Popper também era, por vezes, pouco meigo, como nos encontros com o positivista lógico Carnap. Diz-se que era quase sempre Popper quem se irritava e perdia a compostura, ao contrário da serenidade de Carnap. Mais radical e descontrolado se mostrou o celebrado autor de A Estrutura das Revoluções Científicas quando, no seu gabinete de Princeton, atirou um cinzeiro com beatas na direcção do seu aluno de doutoramento Errol Morris. Este só teve tempo de se desviar do cinzeiro que passou mesmo ao lado da sua cabeça. Morris acabou por abandonar os estudos de filosofia da ciência em Princeton, tornando-se mais tarde um aclamado realizador de cinema (Werner Herzog e o compositor Philip Glass foram alguns dos nomes que colaboraram em filmes seus). Entretanto, Morris decidiu escrever The Ashtray, publicado em 2018, onde nos conta o episódio do cinzeiro e a tensa, embora curta, relação com o seu orientador de doutoramento Thomas Kuhn. Felizmente, a tradução portuguesa deste notável livro parece estar para breve. 

O livro não se limita a descrever o caricato episódio no gabinete de Kuhn, sendo simultaneamente uma obra de filosofia e uma obra de arte, notável a vários títulos. Seja pelo seu formato de álbum com abundantes e curiosas ilustrações, seja pelas entrevistas originais a  filósofos como Putnam, Chomsky e Kripke, seja pelos oportunos comentários laterais, com referências históricas, artísticas e filosóficas, esta é uma obra verdadeiramente singular. Diria que se trata de um documentário ou reportagem filosófica em forma de livro.

Morris também discute desenvolvidamente as ideias de Kuhn, reforçando as acusações de relativismo e de idealismo, que tanto irritavam o famoso filósofo da ciência. É possível que Morris tenha sido demasiado severo e algo injusto com o pensamento de Kuhn, como sugeriu o filósofo da ciência Philip Kitcher na sua recensão do livro. Mas, ainda assim, não deixamos de estar perante uma obra singular, com muitos pontos de interesse filosófico. Além disso, proporciona uma leitura muito agradável. E, já agora, é também um regalo para os olhos.

E, pelo que sei, a tradução portuguesa procura reproduzir, página por página, a edição original. Boa!