sábado, 9 de julho de 2016

Cabanas inspiradoras

Que tal passar as férias numa cabana, longe das multidões? Tudo indica que as cabanas são lugares de inspiração e de trabalho criativo. A título de exemplo, refiro aqui algumas cabanas nas quais grandes escritores, filósofos e compositores encontraram inspiração.

O enorme compositor GUSTAV MAHLER (1860-1911) compôs a maior parte das suas obras em cabanas, todas elas na região dos Alpes. 

Na cabana de composição de Steinbach, Mahler compôs parte da Segunda Sinfonia (Ressurreição) e todos os seis andamentos da enorme Terceira Sinfonia. Parece que quando o então jovem maestro Bruno Walter foi visitar o compositor a Steinbach parou à porta da cabana para contemplar a bela paisagem do lago rodeado de montanhas. Mahler terá advertido Walter: "Não precisa de ficar para aí especado a olhar. Eu já compus isso tudo!" Estava, nessa altura Mahler a terminar a sua Terceira Sinfonia.

A cabana de Steinbach, na Áustria

Problemas pessoais levaram Mahler a escolher outra cabana: Marienigg. Foi nesta que ele compôs as Quarta, Quinta, Sexta, Sétima e Oitava sinfonias, além dos maravilhosos ciclos de canções Rückert Lieder e Kindertotenlieder (Canções das Crianças Mortas). Parece que Mahler passava dias inteiros de Verão a compor, dando instruções rigorosas para nunca ser incomodado. A própria criada que, pela manhã, costumava deixar algo para comer na cabana, tinha de ir por um caminho diferente para não se cruzarem quando ele se dirigia para o seu trabalho. 

A cabana de Marienigg, também na Áustria

A terceira cabana de composição de Mahler foi a de Toblach, e foi nela que compôs aquela que é talvez a sua mais irresistível obra: A Canção da Terra.

A cabana de Toblach, que actualmente se chama Dobbiaco e fica na Itália

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Outro grande compositor que encontrou inspiração numa cabana foi o norueguês EDVARD GRIEG (1843-1907), compositor das famosas Suites Peer Gynt e de um excelente Concerto para Piano e Orquestra em Lá menor. A cabana situa-se em Troldhaugen, na Noruega.

A cabana de Grieg

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Mas também há cabanas filosóficas famosas, entre as quais a que LUDWIG WITTGENSTEIN (1889-1951) construiu na perdida Skjolden, num remoto fiorde da Noruega. Fo aí que Wittgenstein engendrou o que viria a ser o seu famoso Tractatus.

A cabana de Wittgenstein em Skjolden, na Noruega

Actualmente só já se encontram os restos da cabana de Wittgenstein

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Também não podia faltar a cabana de MARTIN HEIDEGGER (1889-1976) na Floresta Negra, refúgio onde o filósofo alemão certamente se inspirou para escrever o seu Caminhos da Floresta.

A cabana de Heidegger em Todtnauberg, na Floresta Negra da Alemanha

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Também são muitos os escritores que procuraram inspiração na solidão das suas cabanas. O irlandês GEORGE BERNARD SHAW (1856-1950) foi um deles. Autor de Um Socialista Insociável, um dos livros que mais me impressionou na minha adolescência, Bernard Shaw foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1926 e foi também um dos fundadores da prestigiada London School of Economics.

Bernard Shaw saindo de Londres, como ele chamava à sua cabana

A cabana de Shaw continua preservada nos nossos dias

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Outra famosa cabana é a da escritora VIRGÍNIA WOOLF (1882-1941), na qual esta destacada figura do Grupo de Bloomsbury (a que também pertenceram vultos como Clive Bell, Roger Fry, John Maynard Keynes) encontrava o recato indispensável para escrever obras como Mrs. Dalloway ou Orlando.

A cabana de Virginia Woolf, junto a um frondoso castanheiro

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O mais importante poeta galês DYLAN THOMAS (1914-1953) também tinha a sua pequena cabana para escrever, junto ao estuário do rio Taf, no País de Gales. O facto de o boémio Dylan Thomas ter morrido alcoolizado com apenas 39 anos de idade poderia fazer pensar numa vida longe da solidão de uma cabana. Mas foi aí que Thomas (a quem, já agora, o jovem Robert Zimmerman, autor de Blowin' in The Wind, pediu emprestado o apelido) encontrou provavelmente inspiração para o poema que celebra o seu trigésimo aniversário e que começa assim:
 
Era o meu trigésimo rumo ao céu 
Quando chegou aos meus ouvidos, vindo do porto 
E do bosque ao lado, 
E da praia empoçada de mexilhões 
E sacralizada pelas garças, 
O aceno da manhã.

A cabana de Dylan Thomas junto ao estuário do Taf

Dylan Thomas junto à cabana

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O senhor Samuel Langhorne Clemens, conhecido como MARK TWAIN (1835-1910) usou duas e não apenas uma cabana para escrever. É no estado de Nova Iorque que se situa a cabana em que escreveu o seus mais importantes livros: As Aventuras de Huckleberry Finn e As Aventuras de Tom Sawyer.

A cabana de Mark Twain, no estado de Nova Iorque

Twain à janela da cabana

Menos usada foi a cabana do Colorado, mas onde escreveu também alguns ensaios.

A cabana de Twain no Colorado

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Por fim, refira-se a que é talvez a mais emblemática de todas as cabanas, construída com as próprias mãos de HENRY DAVID THOREAU (1817-1862) no Lago Walden (no Massachussets) para aí viver em completo isolamento da sociedade e em total comunhão com a natureza. Foi num terreno junto a esse pequeno lago, cedido pelo seu amigo Ralph Waldo Emerson, que Thoreau quis viver em regime de auto-suficiência e de que resultou a singular obra autobiográfica Walden ou a Vida nos Bosques, na qual declara: 

Fui para os bosques viver de livre vontade, 
Para sugar todo o tutano da vida... 
Para aniquilar tudo o que não era vida, 
E para, quando morrer, não descobrir que não vivi!

Uma réplica da cabana original de Henry Thoreau

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Sem dúvida que, ficcionais ou não, outras distintas cabanas haverá. Poderia referir, por exemplo, a inspiradora Cabana Junto à Praia, entre as dunas e os canaviais, que José Cid parece nunca ter chegado a esclarecer onde fica exactamente. 



sexta-feira, 8 de julho de 2016

São tudo histórias

Regra geral, os grandes artistas — sejam eles pintores, músicos, poetas ou cineastas — impressionam-nos, surpreendem-nos ou deixam-nos a pensar com o conteúdo e a genialidade das suas obras. Raramente, por mais geniais que sejam, o conseguem fazer quando reflectem sobre a sua obra e a sua arte. Quando interrogados sobre isso acabam tantas vezes por dizer pouco mais do que banalidades desinteressantes, muitas vezes sem grande nexo. 

Mas aos artistas tudo isso se perdoa, pois são macacos de outros galhos. Na verdade, não é grave que grande parte dos artistas não consigam dizer grande coisa com interesse sobre a sua obra e a sua arte — a não ser, como é óbvio, quando nos esclarecem sobre os pormenores técnicos e o contexto artístico das suas criações. Quando tem algo verdadeiramente interessante para nos mostrar, a melhor maneira de o grande artista o fazer consiste em mostrá-lo nas suas obras. E estas devem falar por si. 

Vem isto a propósito da entrevista à grande artista Paula Rego, publicada há dias pela revista do Expresso. Mas diga-se que as perguntas da entrevistadora também não ajudam Paula Rego, como se pode confirmar na passagem seguinte:


Porque é que diz que tem medo? 
Porque tenho medo de tudo. E tenho medo de tudo desde pequenina. Tenho medo do escuro. 
Mas quando pinta não tem medo? 
Não, porque se ponho na tela já não me mete medo. Pode é meter medo aos outros... [risos]. Também pinto para fazer troça das pessoas, pessoas de quem a gente não gosta nada, como as professoras e isso... 
Ficou muito marcada pela sua professora lá de casa, a D. Violeta. 
Exatamente [sussurra], mas já morreu. Que o diabo seja surdo, cego e mudo! [bate três vezes na madeira]. 
Acredita no diabo, no bem e no mal, em deus...? 
Sim. Então não existem? São tudo histórias, eu acho, mas o mundo é feito de histórias. Por isso, está claro que o diabo e deus existem, cada um à sua maneira.
A Revista do Expresso de 2 de Julho de 2016

A entrevistadora pergunta por que razão Paula Rego tem medo e Paula Rego responde que tem medo porque... tem medo. Tem, de resto, medo de tudo. Como era de adivinhar, ficámos na mesma. Contudo, lendo melhor, Paula Rego tem medo de tudo... mas das telas não tem medo. Afinal não tem mesmo medo de tudo. Ok, até se percebe a ideia: tem medo de tudo de que geralmente se tem medo quando se é pequenino. Mas, nesse caso, qual o propósito de perguntar a Paula Rego se tem medo quando pinta? Será para indagar se as suas pinturas são a expressão do medo sentido? Será para apurar se a motivação criativa de Paula Rego é transformar — oh, estafado lugar-comum! — os seus medos em quadros? Nada disso é claro.

A pergunta mais curiosa é, contudo, a última. É curiosa porque a entrevistadora não se dá conta que a pergunta é falaciosa. A pergunta assenta numa falácia bem conhecida, a falácia da questão complexa. Imagine-se que Paula Rego, como tantas outras pessoas, acreditava no bem e no mal, mas não em Deus nem no Diabo. Que resposta deveria ela dar: que sim ou que não? 

Sem se dar conta, a entrevistadora parte do pressuposto filosófico tendencioso — e, por isso, enganador — que acreditar no bem e no mal equivale a acreditar em Deus e no Diabo. Isto é partir do princípio que a perspectiva dos mandamentos divinos acerca da moral é consensual. Mas não só não é consensual como nem sequer é partilhada pela maior parte daqueles que reflectem sobre essas coisas. Será que os ateus, por exemplo, não acreditam no bem e no mal?

Ainda assim, a resposta de Paula Rego não deixa de ser desconcertante: acha que o bem e o mal, Deus e o Diabo são tudo histórias. Por isso mesmo existem, diz ela. Como as pedras, os montes e as estrelas, tudo são histórias.

Há quem concorde que no princípio era o Verbo — ou o Logos —, mas Paula Rego acha, além disso, que tudo é Verbo.

Seja como for, Paula Rego é uma mulher divertida e uma grande pintora. E o resto são histórias.


domingo, 3 de julho de 2016

Gales dá música

Muitos portugueses têm, nesta altura, os olhos postos no País de Gales. Bom, não tanto no país em si, mas antes na sua equipa de futebol. O futebol galês talvez tenha sido uma das mais inesperadas surpresas do Campeonato Europeu de Futebol, que está a decorrer em França. Mas vale a pena aproveitar a embalagem e descobrir também algumas das melhores surpresas musicais de Gales. Destaco aqui três dos mais sonantes músicos galeses da actualidade.

Karl Jenkins foi um dos mais importantes membros dos Soft Machine, o grupo que combinava o rock progressivo com o jazz de fusão, criado por Robert Wyatt e Kevin Ayers, entre outros, no final dos anos sessenta do século XX. Foi Jenkins que liderou os Soft Machine após a saída destes, tocando saxofone, oboé, teclados e sintetizadores. Depois de abandonar os Soft Machine, Jenkins ganhou a vida a compor música para filmes publicitários (da Pepsi e da Levi's, por exemplo), passando entretanto a compor obras de maior fôlego para orquestra e voz, principalmente polifonias corais. A sua longa canção Adiemus: Songs of Sanctuary (uma mistura de música clássica com música moderna e world music, e de que confesso não ser grande apreciador), composta em colaboração com Mike Ratledge, outro dos antigos membros dos Soft Machine, foi um enorme sucesso. Mais recentemente compôs um Requiem e outras obras corais religiosas, de que destaco a missa The Armed Man, talvez a sua melhor obra. O Agnus Dei que aqui partilho faz parte dessa missa. Vários intérpretes de renome, como o barítono Bryn Terfel (também ele galês) e a soprano neozelandesa Kiri Te Kanawa, têm dado a sua voz a obras de Jenkins (em gravações para editoras como a Deutsche Grammophon, a EMI ou a Warner Classics). Jenkins tem também participado em discos de Mike Oldfield.



Outro nome de primeiro plano com quem Jenkins tem colaborado é a harpista e compositora Catrin Finch, sua compatriota. Catrin Finch também aborda diferentes tipos de música, como o jazz e o folk. Mas é sobretudo como harpista que o seu nome se tem imposto mundialmente. Partilho aqui a sua excelente interpretação em harpa da Aria inicial das Variações Goldberg, de J. S. Bach. 


Para terminar, John Cale, um dos fundadores dos seminais Velvet Underground, formados em Nova Iorque com a benção do inevitável Andy Warhol. Mas Cale foi musicalmente mais do que isso, com uma carreira a solo de que sobressai um dos melhores discos da história do rock alternativo experimental: Music For a New Society (1982). A quantidade de músicos de primeiríssimo plano com que Cale colaborou é impressionante, continuando a ser um dos mais marcantes autores de música popular moderna. A canção aqui partilhada, (I Keep a) Close Watch faz originalmente parte do álbum Music For a New Society


Se Gales tiver tão bons jogadores de futebol como músicos, é caso para Portugal temer o seu adversário do jogo das meias-finais. Estão avisados!