sábado, 20 de maio de 2017

A música tem de transmitir sentimentos?

Estava à espera de tudo menos de filosofia no Festival da Eurovisão. Mas foi isso mesmo que, além de nos brindar com a melhor canção a concurso, o talentoso representante de Portugal nos trouxe.

Antes de falar da filosofia, deixo uma palavra sobre a canção e o concurso.


Ao contrário da generalidade das pessoas de bom gosto e com coisas mais importantes para fazer, eu vi o Festival na televisão, da primeira à última canção. Não assistia ao Festival da Eurovisão há décadas e nem sequer tinha a ideia de que havia eliminatórias e tantos países a participar, incluindo países de fora da Europa, como a Austrália. Mas a ideia com que fiquei é que, salvo o aparato tecnológico, a natural adaptação das canções às tendências da época e a predominância do inglês, está tudo mais ou menos na mesma. No meio de tudo isto, continua a destacar-se a fraca qualidade das canções, como era costume nos tempos em que, algo resignado, lá ia acompanhando a coisa.

O facto de ter ficado algo surpreendido com a canção que este ano Portugal escolheu despertou-me a curiosidade sobre o que poderia vir a acontecer no grande palco europeu. Da primeira vez que a ouvi pareceu-me demasiado familiar, como se já a conhecesse há muito. Mas, quando tentava precisar de onde a conhecia, nada de concreto me ocorria. De algum musical antigo? Podia ser, mas não descortinei exactamente qual. De algum filme dos anos 50? Talvez, mas também não consegui identificar. Seria uma adaptação de alguma canção de jazz antiga, ou talvez de bossanova? Também não consegui ver qual, até porque Amar Pelos Dois tem o ritmo de uma valsa. Os acordes do piano pareciam tirados do início de Gymnopédie N.º 1, de Erik Satie. Mas não era bem a mesma coisa. Começou a parecer-me um pouco disso tudo e nada disso em particular, fazendo-me pensar que talvez se tratasse de uma espécie de ovo de Colombo musical, capaz de deixar os festivaleiros surpreendidos. Até porque a canção é agradável logo à primeira audição e tem a capacidade de, sem ser excepcional, soar ainda mais agradável nas audições seguintes.

Creio mesmo que o aspecto mais forte da canção é precisamente soar a algo familiar; a algo que já conhecemos sem sabermos bem de onde, como se a autora a encontrasse algures por aí à espera de ser cantada e ouvida. Isso significa que a canção pouco traz de novo. Mas traz, em contrapartida, algo que quase soa a vintage, o que é bom. Essa é, muitas vezes, a marca de grandes sucessos intemporais. Como, por exemplo, Yesterday, dos Beatles, a canção com mais versões gravadas de toda a história da música. O próprio autor, Paul McCartney, conta que a canção lhe pareceu tão familiar, que nem sequer se deu conta que a estava a compor quando pegou na guitarra — diz a lenda que numa paragem para os quatro de Liverpool se refrescarem e esticarem as pernas a meio de uma viagem de automóvel na velha estrada de Lisboa para o Algarve, onde iam passar umas férias — para tocar simplesmente algo que lhe estava no ouvido. Diz McCartney que andou uns tempos a pensar de quem seria a canção e que, depois de verificar que não a conseguia atribuir a ninguém, assumiu ele próprio a autoria. E, apesar disso, Yesterday é um clássico, mesmo que pouco ou nada tenha de inovador. Está certamente entre as canções menos arrojadas que os Beatles escreveram.

Não se trata de equiparar Amar Pelos Dois a Yesterday, o que seria ridículo. Mas, sem dúvida que Amar Pelos Dois é uma canção bonita, aparentemente simples e despretensiosa. Ora, se combinarmos o facto de a canção soar muito familiar e de, ao mesmo tempo, ser algo atípica no contexto do Festival da Eurovisão, não seria difícil acreditarmos que teria uma grande probabilidade de vencer a Eurovisão. O cenário previsível seria as outras canções todas competirem entre si e a portuguesa competir com elas em bloco: no grupo das canções festivaleiras haveria uma grande dispersão de votos e uma grande concentração de votos na portuguesa da parte dos que desejassem uma coisa diferente. E assim veio a acontecer, ficando Salvador Sobral com o troféu. 

Claro que houve também a fraca qualidade das canções concorrentes, com excepção da interessante, embora ligeiramente monótona, canção pop da Bélgica. E houve ainda a própria figura descontraída de outsider do Salvador, a que se juntou a simpatia e inteligência da sua irmã que, apesar de tudo, não conseguiu impedir o irmão de interpretar a canção com um ou dois tiques vocais despropositados, de que a canção não precisa. Fora isso, Salvador é, sem dúvida, um bom cantor e intérprete. 

Já agora, não é arriscado dizer que Amar Pelos Dois foi a melhor canção que alguma vez Portugal mostrou no Festival da Eurovisão — e provavelmente uma das melhores que já venceram a Eurovisão —, a uma grande distância das participações portuguesas dos anos 1960-1980. Quem se der ao trabalho de perder tempo a ouvir canções como a pobre e beata Oração (a primeira participação de Portugal, com uma letra de sacristia), ou a agitada Desfolhada (em que Simone de Oliveira canta como quem ralha com o ouvinte), ou a enfadonha Flor de Verde Pinho (na voz semi-falada e desbotada de Carlos do Carmo), ou ainda a infantil Sobe Balão Sobe, a oca Playback e a  submissa inutilidade musical de Não Sejas Mau Para Mim. Em minha opinião, só se aproveitam mesmo E Depois do Adeus e algumas letras de Ary dos Santos. Claro que em Portugal também se faz boa música — escritores de canções como o genial José Afonso, mas também Rui Veloso e Fausto ou, por vezes, Sérgio Godinho, Tiago Bettencourt e Rodrigo Leão, entre outros, são prova disso. Mas a música destes autores sempre se dirigiu a outro tipo de audiência.

Voltando à Eurovisão, foi só após a entrega do troféu que Salvador Sobral decidiu filosofar em directo, em resposta à habitual pergunta sobre as razões para a vitória da sua canção. As palavras de Salvador foram as seguintes:


Vivemos num mundo de música descartável, de música ‘fast-food’ sem qualquer conteúdo. Isto pode ser uma vitória da música, das pessoas que fazem música que de facto significa alguma coisa. A música não é fogo-de-artifício, é sentimento. Vamos tentar mudar isto. É altura de trazer a música de volta, que é o que verdadeiramente interessa.

Antes de mais, acho infelizes e algo deselegantes estas palavras de Salvador, mesmo que se concorde totalmente com o que ele diz. São infelizes porque destacam sobretudo o demérito das canções concorrentes, sugerindo que não são verdadeiramente música. Isso equivale a desvalorizar indirectamente a sua própria canção. É quase como dizer que venceu por falta de comparência dos adversários ou porque eles eram demasiado fracos. São deselegantes porque o momento da vitória não é o mais adequado para depreciar os derrotados. Sobra ainda a questão filosófica.

Ao defender que a música tem de significar alguma coisa e que é suposto veicular sentimento, Salvador está a exprimir uma perspectiva filosófica acerca da música como se fosse consensual, sem o ser. A perspectiva expressivista da arte em geral — e, em particular, da música — tem as suas raízes nas reflexões de Tolstói e de R. G. Collingwood e, numa versão mais recente e sofisticada, da filósofa Suzanne Langer. Esta concepção da arte tem, contudo, sido sujeita a diversas objeções e contraexemplos, que não cabe agora aqui expor.

Basta lembrar que abundam os exemplos de música muito respeitável cujo conteúdo, consciente ou inconsciente, está longe de ser o sentimento. Sem dúvida que o sentimento pode ser um aspecto muito importante da música e que muita da melhor música tem, de algum modo, conteúdo emocional.  Mas dizer que a música é essencialmente sentimento implica desclassificar ou retirar do universo musical uma enorme quantidade de reputadíssimas obras e géneros musicais: de música concebida para ser dançada (das famosas valsas vienenses ao samba carioca), para acompanhar o trabalho (como o cante alentejano) para fins bélicos (marchas militares), para adormecer (canções de embalar), para orar (canto gregoriano), ou simplesmente com o intuito de repetir padrões sonoros interessantes (música minimalista) e até para acompanhar refeições (como, por exemplo, Tafelmusik do compositor barroco Telemann). 

Estará Salvador Sobral disposto a excluir tudo isto do universo musical? Será que não poderá haver aí boa música? E por que razão não pode haver boa música de dança, boa música electrónica, boa música repetitiva? Tem de haver sempre sentimento? Mas que sentimento há na conhecida canção Frère Jacques, que o grande compositor Gustav Mahler usa no terceiro andamento da sua Sinfonia Nº 1? Que sentimento é expresso pelas belíssimas Jazz Suites de Chostakovich? Sugerir que as canções concorrentes não são boa música digna de ser ouvida porque não têm sentimento é, no contexto em que a afirmação foi produzida, uma afirmação totalmente unilateral e descabida. É uma perspectiva filosófica sobre a natureza da musica perfeitamente legítima, mas não parece adequado avaliar os adversários, naquele momento, como se essa perspectiva fosse indisputável. 

Em suma, Salvador é um músico talentoso, mas se quer filosofar, poderia fazê-lo melhor e ser menos intransigente quanto a abordagens musicais diferentes. De resto, que maçada seria ouvir duas horas de canções carregadas de sentimento. 

quarta-feira, 17 de maio de 2017

A importância da verdade

As civilizações nunca progrediram de modo saudável, e não podem progredir de modo saudável, sem grandes quantidades de informação factual fidedigna. Também não podem florescer se estiverem acometidas de infecções perturbadoras de crenças erróneas. Para estabelecer e manter uma cultura avançada, precisamos de evitar ser debilitados tanto pelo erro como pela ignorância. Precisamos de saber muitas verdades – e, claro, temos também de perceber como fazer um uso produtivo destas. 
Isto não é apenas um imperativo social. Aplica-se igualmente a cada um de nós, enquanto indivíduos. Os indivíduos precisam de verdades para conseguirem orientar-se com eficácia no matagal de riscos e oportunidades com que todas as pessoas se defrontam no decurso da vida. Precisam de saber a verdade sobre o que comer e não comer, como se vestir (dados os factos das condições climatéricas), onde viver (informação sobre falhas tectónicas, ocorrência frequente de avalanches e proximidade de comércio, escolas e empregos), assim como o modo de fazer aquilo que são pagas para fazer, como criar os filhos, o que pensar das pessoas que conhecem, o que são capazes de alcançar, e uma variedade infinda de outros aspectos corriqueiros e, contudo, vitais. 
O nosso sucesso ou fracasso em seja o que for que nos proponhamos – e, por conseguinte, na vida em geral – depende de sermos guiados pela verdade ou, ao invés, de avançarmos na ignorância ou com base em falsidades. Claro que também depende, de modo fulcral, daquilo que fazemos com a verdade. No entanto, sem verdade é que ficamos logo em maus lençóis ainda antes de começarmos seja o que for.

terça-feira, 16 de maio de 2017

O lado bom da hipocrisia


Parece que o Papa declarou há dias que era preferível um ateu sincero e bem intencionado a um católico hipócrita. 

Eu, que sou ateu — pois tenho a crença persistente de que Deus não existe —, acho desinteressante distinguir as pessoas entre católicas, ou mesmo crentes, e ateias. Penso que há aspectos bem mais relevantes para avaliar o carácter e as atitudes das pessoas do que elas serem católicas ou ateias. 

Mas compreendo que, para o Papa, que é o chefe da família católica, a distinção possa ser relevante. Talvez, para ele, ser católico seja uma espécie de propriedade complexa que inclui uma série de outras propriedades mais simples como ser sincero, ser caridoso, ser honesto, e ser crente, claro. Contudo, para grande parte das pessoas, mesmo das que se dizem católicas, ser católico é pouco mais do que ser baptizado e participar nos rituais católicos. Será que o Papa queria dizer que essas pessoas não merecem verdadeiramente ser chamadas católicas? Ou será que queria antes dizer que ser católico nem sempre é, afinal, o mais importante? 

Não sei bem qual a interpretação correta, mas verifico que a hipocrisia tem má fama e que é um péssimo sinal alguém parecer hipócrita. Acho que esta é uma forma radical de ver as coisas, pois considero que a hipocrisia também pode ser um bom sinal. 

O que a hipocrisia tem de censurável é principalmente o seu carácter enganador: alguém que procura passar pelo que não é, livrando-se da maçada de ter de enfrentar a censura social quando não faz o que se espera de si. Neste sentido, a hipocrisia é um defeito epistémico, uma estratégia de ocultação da realidade. 

Mas isso também mostra que a hipocrisia é frequentemente a expressão de uma certa vergonha moral. "A hipocrisia é o tributo que o vício paga à virtude", como escreve Peter Singer no saboroso livro Ética no Mundo Real, acabado de publicar entre nós pelas Edições 70. Uma sociedade em que, por exemplo, o machismo e o racismo não precisam sequer de ser hipocritamente mascarados é, apesar de tudo, pior do que uma sociedade em que a hipocrisia é o refúgio de machistas e racistas. Neste caso, tem-se ao menos a noção de que o machismo e o racismo são coisas vergonhosas, o que mostra, apesar de tudo, que estamos numa sociedade em que isso é inaceitável, o que é um progresso. 

Sem dúvida que nem o machismo descarado e auto-satisfeito nem o machismo hipócrita são aceitáveis. Mas a hipocrisia, embora sendo sempre um perigoso defeito, não deixa de ser um animador sinal de civilização.

Poder-se-á dizer que o machista descarado é ao menos sincero e torna-se mais fácil combatê-lo, por sabermos onde ele está, ao passo que o machista disfarçado é esquivo e difícil de combater. Mas creio que isto é ver mal as coisas, pois a parte mais difícil do combate ao machismo assumido é precisamente tornar, aos seus próprios olhos, vergonhoso o machismo.    

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Como avaliar um interpretação musical sem saber música?

Quem o diz é a Musical America Awards, o que certamente quer dizer algo, mas não tanto como o que se pode ver e ouvir aqui, em que a jovem chinesa Yuja Wang interpreta o magnético segundo andamento (Adagio) do Concerto para Piano em Sol, de Ravel.


Como decidem aqueles que, como eu, não são músicos, nem musicólogos — nem sequer lêem partituras — se esta interpretação é melhor ou pior do que outras da mesma obra? Não estão autorizados a decidir seja o que for sem tais conhecimentos técnicos?

Claro que estão! Muito ficaria por explicar sobre a fruição musical e sobre a própria natureza da música se as únicas opiniões respeitáveis fossem as dos especialistas com formação musical avançada. Como alguém dizia, não é preciso ser capaz de pôr ovos para saber apreciar o seu sabor. E, para se estar apto a apreciá-los, também não é preciso conhecer a constituição molecular dos ovos. Sem dúvida que conhecer a constituição molecular dos ovos pode ajudar a explicar por que razão os ovos têm o sabor característico que têm. Mas explicar uma coisa é diferente de justificar um juízo de valor sobre essa coisa.

Porém, daí não se segue que todos os juízos de valor sobre uma dada interpretação musical se equivalham. E também não se segue que o conhecimento técnico especializado não ajude a iluminar certos aspectos que explicam por que razão apreciamos mais umas coisas do que outras. O facto de esse conhecimento técnico não ser condição necessária não significa que não possa ser conhecimento útil. Na verdade, quando fazemos um juízo de valor acerca de uma dada interpretação musical, há normalmente algum conhecimento prévio implícito na justificação que apresentamos. Nem que seja o conhecimento de outros casos semelhantes com os quais comparamos, mesmo que inconscientemente, a interpretação que estamos a avaliar.

Mas, com que critério (ou critérios) uma pessoa sem uma sólida formação musical avalia uma dada interpretação?

A minha sugestão é que, se essa pessoa tem alguma cultura musical (ex: ouve regularmente o tipo de música em causa ou essa obra em particular, interessa-se pelo que ouve e tentar perceber porquê, tem algum conhecimento do contexto artístico em que a obra foi criada, etc.), mas não tem conhecimentos técnicos avançados, então ela tem tendência para tomar como modelo, ou referência, a interpretação que pela primeira vez a despertou (dado que muitas vezes ouvimos algo sem prestarmos verdadeiramente atenção).

Esta minha sugestão nada tem de filosófico. É apenas uma hipótese empírica baseada na minha observação. Vejo isso repetidamente no meu caso. A primeira vez que me detive a ouvir este concerto de Ravel foi numa interpretação de Arturo Benedetti Michelangeli ao piano. A partir daí, e após repetidas audições dessa interpretação, todas as outras interpretações que ouço são mentalmente contrastadas com ela, como se ela fosse a matriz pela qual as outras vão ser avaliadas. E não é fácil evitar isso.

Mesmo assim, dei por mim a pensar que esta interpretação de Yuja Wang não tem a impessoalidade que imagino ao ouvir Michelangeli (impessoalidade no sentido de ser capaz de imaginar os sons de cada nota do piano como se estivessem a ecoar directamente da natureza e não de um agente humano), mas noto a agradável presença de alguém que, ao percorrer o teclado do piano, se deixa envolver com ele. O que me agrada de maneira diferente.

É muita imaginação minha? Certamente. Mas não é principalmente para isso que a música serve?