Estava à espera de tudo menos de filosofia no Festival da Eurovisão. Mas foi isso mesmo que, além de nos brindar com a melhor canção a concurso, o talentoso representante de Portugal nos trouxe.
Antes de falar da filosofia, deixo uma palavra sobre a canção e o concurso.
Ao contrário da generalidade das pessoas de bom gosto e com coisas mais importantes para fazer, eu vi o Festival na televisão, da primeira à última canção. Não assistia ao Festival da Eurovisão há décadas e nem sequer tinha a ideia de que havia eliminatórias e tantos países a participar, incluindo países de fora da Europa, como a Austrália. Mas a ideia com que fiquei é que, salvo o aparato tecnológico, a natural adaptação das canções às tendências da época e a predominância do inglês, está tudo mais ou menos na mesma. No meio de tudo isto, continua a destacar-se a fraca qualidade das canções, como era costume nos tempos em que, algo resignado, lá ia acompanhando a coisa.
O facto de ter ficado algo surpreendido com a canção que este ano Portugal escolheu despertou-me a curiosidade sobre o que poderia vir a acontecer no grande palco europeu. Da primeira vez que a ouvi pareceu-me demasiado familiar, como se já a conhecesse há muito. Mas, quando tentava precisar de onde a conhecia, nada de concreto me ocorria. De algum musical antigo? Podia ser, mas não descortinei exactamente qual. De algum filme dos anos 50? Talvez, mas também não consegui identificar. Seria uma adaptação de alguma canção de jazz antiga, ou talvez de bossanova? Também não consegui ver qual, até porque Amar Pelos Dois tem o ritmo de uma valsa. Os acordes do piano pareciam tirados do início de Gymnopédie N.º 1, de Erik Satie. Mas não era bem a mesma coisa. Começou a parecer-me um pouco disso tudo e nada disso em particular, fazendo-me pensar que talvez se tratasse de uma espécie de ovo de Colombo musical, capaz de deixar os festivaleiros surpreendidos. Até porque a canção é agradável logo à primeira audição e tem a capacidade de, sem ser excepcional, soar ainda mais agradável nas audições seguintes.
Creio mesmo que o aspecto mais forte da canção é precisamente soar a algo familiar; a algo que já conhecemos sem sabermos bem de onde, como se a autora a encontrasse algures por aí à espera de ser cantada e ouvida. Isso significa que a canção pouco traz de novo. Mas traz, em contrapartida, algo que quase soa a vintage, o que é bom. Essa é, muitas vezes, a marca de grandes sucessos intemporais. Como, por exemplo, Yesterday, dos Beatles, a canção com mais versões gravadas de toda a história da música. O próprio autor, Paul McCartney, conta que a canção lhe pareceu tão familiar, que nem sequer se deu conta que a estava a compor quando pegou na guitarra — diz a lenda que numa paragem para os quatro de Liverpool se refrescarem e esticarem as pernas a meio de uma viagem de automóvel na velha estrada de Lisboa para o Algarve, onde iam passar umas férias — para tocar simplesmente algo que lhe estava no ouvido. Diz McCartney que andou uns tempos a pensar de quem seria a canção e que, depois de verificar que não a conseguia atribuir a ninguém, assumiu ele próprio a autoria. E, apesar disso, Yesterday é um clássico, mesmo que pouco ou nada tenha de inovador. Está certamente entre as canções menos arrojadas que os Beatles escreveram.
Não se trata de equiparar Amar Pelos Dois a Yesterday, o que seria ridículo. Mas, sem dúvida que Amar Pelos Dois é uma canção bonita, aparentemente simples e despretensiosa. Ora, se combinarmos o facto de a canção soar muito familiar e de, ao mesmo tempo, ser algo atípica no contexto do Festival da Eurovisão, não seria difícil acreditarmos que teria uma grande probabilidade de vencer a Eurovisão. O cenário previsível seria as outras canções todas competirem entre si e a portuguesa competir com elas em bloco: no grupo das canções festivaleiras haveria uma grande dispersão de votos e uma grande concentração de votos na portuguesa da parte dos que desejassem uma coisa diferente. E assim veio a acontecer, ficando Salvador Sobral com o troféu.
Claro que houve também a fraca qualidade das canções concorrentes, com excepção da interessante, embora ligeiramente monótona, canção pop da Bélgica. E houve ainda a própria figura descontraída de outsider do Salvador, a que se juntou a simpatia e inteligência da sua irmã que, apesar de tudo, não conseguiu impedir o irmão de interpretar a canção com um ou dois tiques vocais despropositados, de que a canção não precisa. Fora isso, Salvador é, sem dúvida, um bom cantor e intérprete.
Já agora, não é arriscado dizer que Amar Pelos Dois foi a melhor canção que alguma vez Portugal mostrou no Festival da Eurovisão — e provavelmente uma das melhores que já venceram a Eurovisão —, a uma grande distância das participações portuguesas dos anos 1960-1980. Quem se der ao trabalho de perder tempo a ouvir canções como a pobre e beata Oração (a primeira participação de Portugal, com uma letra de sacristia), ou a agitada Desfolhada (em que Simone de Oliveira canta como quem ralha com o ouvinte), ou a enfadonha Flor de Verde Pinho (na voz semi-falada e desbotada de Carlos do Carmo), ou ainda a infantil Sobe Balão Sobe, a oca Playback e a submissa inutilidade musical de Não Sejas Mau Para Mim. Em minha opinião, só se aproveitam mesmo E Depois do Adeus e algumas letras de Ary dos Santos. Claro que em Portugal também se faz boa música — escritores de canções como o genial José Afonso, mas também Rui Veloso e Fausto ou, por vezes, Sérgio Godinho, Tiago Bettencourt e Rodrigo Leão, entre outros, são prova disso. Mas a música destes autores sempre se dirigiu a outro tipo de audiência.
Voltando à Eurovisão, foi só após a entrega do troféu que Salvador Sobral decidiu filosofar em directo, em resposta à habitual pergunta sobre as razões para a vitória da sua canção. As palavras de Salvador foram as seguintes:
Vivemos num mundo de música descartável, de música ‘fast-food’ sem qualquer conteúdo. Isto pode ser uma vitória da música, das pessoas que fazem música que de facto significa alguma coisa. A música não é fogo-de-artifício, é sentimento. Vamos tentar mudar isto. É altura de trazer a música de volta, que é o que verdadeiramente interessa.
Antes de mais, acho infelizes e algo deselegantes estas palavras de Salvador, mesmo que se concorde totalmente com o que ele diz. São infelizes porque destacam sobretudo o demérito das canções concorrentes, sugerindo que não são verdadeiramente música. Isso equivale a desvalorizar indirectamente a sua própria canção. É quase como dizer que venceu por falta de comparência dos adversários ou porque eles eram demasiado fracos. São deselegantes porque o momento da vitória não é o mais adequado para depreciar os derrotados. Sobra ainda a questão filosófica.
Ao defender que a música tem de significar alguma coisa e que é suposto veicular sentimento, Salvador está a exprimir uma perspectiva filosófica acerca da música como se fosse consensual, sem o ser. A perspectiva expressivista da arte em geral — e, em particular, da música — tem as suas raízes nas reflexões de Tolstói e de R. G. Collingwood e, numa versão mais recente e sofisticada, da filósofa Suzanne Langer. Esta concepção da arte tem, contudo, sido sujeita a diversas objeções e contraexemplos, que não cabe agora aqui expor.
Basta lembrar que abundam os exemplos de música muito respeitável cujo conteúdo, consciente ou inconsciente, está longe de ser o sentimento. Sem dúvida que o sentimento pode ser um aspecto muito importante da música e que muita da melhor música tem, de algum modo, conteúdo emocional. Mas dizer que a música é essencialmente sentimento implica desclassificar ou retirar do universo musical uma enorme quantidade de reputadíssimas obras e géneros musicais: de música concebida para ser dançada (das famosas valsas vienenses ao samba carioca), para acompanhar o trabalho (como o cante alentejano) para fins bélicos (marchas militares), para adormecer (canções de embalar), para orar (canto gregoriano), ou simplesmente com o intuito de repetir padrões sonoros interessantes (música minimalista) e até para acompanhar refeições (como, por exemplo, Tafelmusik do compositor barroco Telemann).
Basta lembrar que abundam os exemplos de música muito respeitável cujo conteúdo, consciente ou inconsciente, está longe de ser o sentimento. Sem dúvida que o sentimento pode ser um aspecto muito importante da música e que muita da melhor música tem, de algum modo, conteúdo emocional. Mas dizer que a música é essencialmente sentimento implica desclassificar ou retirar do universo musical uma enorme quantidade de reputadíssimas obras e géneros musicais: de música concebida para ser dançada (das famosas valsas vienenses ao samba carioca), para acompanhar o trabalho (como o cante alentejano) para fins bélicos (marchas militares), para adormecer (canções de embalar), para orar (canto gregoriano), ou simplesmente com o intuito de repetir padrões sonoros interessantes (música minimalista) e até para acompanhar refeições (como, por exemplo, Tafelmusik do compositor barroco Telemann).
Estará Salvador Sobral disposto a excluir tudo isto do universo musical? Será que não poderá haver aí boa música? E por que razão não pode haver boa música de dança, boa música electrónica, boa música repetitiva? Tem de haver sempre sentimento? Mas que sentimento há na conhecida canção Frère Jacques, que o grande compositor Gustav Mahler usa no terceiro andamento da sua Sinfonia Nº 1? Que sentimento é expresso pelas belíssimas Jazz Suites de Chostakovich? Sugerir que as canções concorrentes não são boa música digna de ser ouvida porque não têm sentimento é, no contexto em que a afirmação foi produzida, uma afirmação totalmente unilateral e descabida. É uma perspectiva filosófica sobre a natureza da musica perfeitamente legítima, mas não parece adequado avaliar os adversários, naquele momento, como se essa perspectiva fosse indisputável.
Em suma, Salvador é um músico talentoso, mas se quer filosofar, poderia fazê-lo melhor e ser menos intransigente quanto a abordagens musicais diferentes. De resto, que maçada seria ouvir duas horas de canções carregadas de sentimento.