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terça-feira, 16 de maio de 2017

O lado bom da hipocrisia


Parece que o Papa declarou há dias que era preferível um ateu sincero e bem intencionado a um católico hipócrita. 

Eu, que sou ateu — pois tenho a crença persistente de que Deus não existe —, acho desinteressante distinguir as pessoas entre católicas, ou mesmo crentes, e ateias. Penso que há aspectos bem mais relevantes para avaliar o carácter e as atitudes das pessoas do que elas serem católicas ou ateias. 

Mas compreendo que, para o Papa, que é o chefe da família católica, a distinção possa ser relevante. Talvez, para ele, ser católico seja uma espécie de propriedade complexa que inclui uma série de outras propriedades mais simples como ser sincero, ser caridoso, ser honesto, e ser crente, claro. Contudo, para grande parte das pessoas, mesmo das que se dizem católicas, ser católico é pouco mais do que ser baptizado e participar nos rituais católicos. Será que o Papa queria dizer que essas pessoas não merecem verdadeiramente ser chamadas católicas? Ou será que queria antes dizer que ser católico nem sempre é, afinal, o mais importante? 

Não sei bem qual a interpretação correta, mas verifico que a hipocrisia tem má fama e que é um péssimo sinal alguém parecer hipócrita. Acho que esta é uma forma radical de ver as coisas, pois considero que a hipocrisia também pode ser um bom sinal. 

O que a hipocrisia tem de censurável é principalmente o seu carácter enganador: alguém que procura passar pelo que não é, livrando-se da maçada de ter de enfrentar a censura social quando não faz o que se espera de si. Neste sentido, a hipocrisia é um defeito epistémico, uma estratégia de ocultação da realidade. 

Mas isso também mostra que a hipocrisia é frequentemente a expressão de uma certa vergonha moral. "A hipocrisia é o tributo que o vício paga à virtude", como escreve Peter Singer no saboroso livro Ética no Mundo Real, acabado de publicar entre nós pelas Edições 70. Uma sociedade em que, por exemplo, o machismo e o racismo não precisam sequer de ser hipocritamente mascarados é, apesar de tudo, pior do que uma sociedade em que a hipocrisia é o refúgio de machistas e racistas. Neste caso, tem-se ao menos a noção de que o machismo e o racismo são coisas vergonhosas, o que mostra, apesar de tudo, que estamos numa sociedade em que isso é inaceitável, o que é um progresso. 

Sem dúvida que nem o machismo descarado e auto-satisfeito nem o machismo hipócrita são aceitáveis. Mas a hipocrisia, embora sendo sempre um perigoso defeito, não deixa de ser um animador sinal de civilização.

Poder-se-á dizer que o machista descarado é ao menos sincero e torna-se mais fácil combatê-lo, por sabermos onde ele está, ao passo que o machista disfarçado é esquivo e difícil de combater. Mas creio que isto é ver mal as coisas, pois a parte mais difícil do combate ao machismo assumido é precisamente tornar, aos seus próprios olhos, vergonhoso o machismo.    

1 comentário:

  1. Portanto é crença. Como os que crêem que há, há os que crêem que não há. Não é certeza fundada em provas e na razão.

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