terça-feira, 29 de novembro de 2011

Questões práticas

Foto de Aires Ameida

Numa das últimas aulas do 11º ano estávamos a tentar resolver um exercício de lógica quando um aluno me interpelou da seguinte maneira:

- Ó professor, não estou a perceber isto. Eu cá sou uma pessoa prática e não vejo porque hei-de estar a esforçar-me para aprender algo de que não irei precisar no futuro. Para quê, afinal?

A pergunta é natural e até compreensível, além de ter sido feita de boa fé. E até nem sequer é uma pergunta inabitual. Tinha, pois, o dever de lhe responder. E disse-lhe que havia, não uma, mas três maneiras diferentes de lhe responder.

A primeira é que a pergunta dele revela, afinal, pouco sentido prático. Uma pessoa prática pensaria assim: dado que esta disciplina faz parte do meu currículo escolar e que essas matérias fazem parte do programa, então é inútil perguntar para que serve. Perder tempo com isso é apenas uma maneira de fugir ao assunto em vez de simplesmente aprender o que, de qualquer modo, lhe é exigido.

A segunda é que raramente (ou mesmo nunca) precisamos de recorrer à maior parte do que aprendemos na escola, seja em Filosofia, Matemática, História, Biologia ou outra disciplina qualquer. Eu, por exemplo, não me recordo da última vez que precisei de recorrer ao teorema de Pitágoras, de invocar as causas da batalha de Alcácer Quibir ou de referir o processo da fotossíntese. E estou só a falar de aspectos centrais do estudo daquelas disciplinas. Mas daí não se segue que não devíamos ter perdido tempo a aprender essas coisas, pois nunca podemos prever se iremos ou não precisar delas em momentos cruciais da nossa vida pessoal e profissional. É por isso que não achamos inútil o dinheiro que gastamos a comprar enciclopédias e dicionários que só parcial e esporadicamente consultamos. Há circunstâncias em que só eles conseguem esclarecer as nossas dúvidas e ajudar a ultrapassar dificuldades. Por isso é bom tê-los na estante, mesmo que passemos meses sem os consultar. O mesmo se passa com muito do que aprendemos na escola, incluindo na disciplina de Filosofia.

A terceira é que estamos frequentemente enganados quando dizemos que não precisamos de certos conhecimentos afastados da nossa área principal de interesses pessoais ou profissionais. Os modos como as coisas se podem ligar e influenciar umas às outras são muitos e surpreendentes. Muitas vezes nem sequer nos damos conta dos conhecimentos de que, na prática, precisamos e estamos a aplicar. 

Mas há ainda uma quarta resposta, que eu não lhe cheguei a referir: que, independentemente da sua aplicação prática profissional, o conhecimento é, em si mesmo, algo valioso; é algo que nos enriquece e nos torna pessoas mais interessantes. 

Como se vê, as questões práticas têm, na prática, muito que se lhes diga.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Mais lugares da filosofia: a cabana de Heidegger

Desta vez deixo aqui o texto sobre os lugares da filosofia que, respondendo ao nosso convite, o colega Alexandre Guerra (professor da Escola Secundária António Aleixo) escreveu a propósito do Dia Mundial da Filosofia.

Heideggers Hütte

Por Alexandre Guerra

Todos os jovens têm os seus heróis e eu, porque também fui jovem, tive os meus. Heidegger foi, sem dúvida, o meu pensador herói. Porque a juventude é uma idade propícia aos excessos, bebi-o com o mesmo excesso de quem descobre a embriaguez. 
Visitei sempre o pensamento de Heidegger como quem visita o oráculo de Delfos, que não mostra, não esconde, apenas indica. Partilhava intuitivamente a mesma crença na decadência mecanicista do ocidente e desprezava o temor da filosofia em perder a sua importância, caso não apanhasse o comboio da ciência. Era-me insuportável a ética e toda a dimensão técnica e prática do pensar. Também eu partilhava a crença de que com o surgimento de nomes como «Lógica», «Ética» e «Física», o pensamento original tinha chegado ao fim. 
Dizia Heidegger que na interpretação técnica do pensar, e a «Lógica» seria a confirmação desta interpretação, o ser é abandonado como elemento do pensar. Heidegger, de espírito fino, usou esta imagem na sua Carta Sobre o Humanismo: «Julga-se o pensar de acordo com uma medida que lhe é inadequada. Um tal julgamento assemelha-se a um procedimento que procura avaliar a natureza e as faculdades do peixe, sobre a sua capacidade de viver em terra seca.» 
Lembro uma história citada por Heidegger, invocando um relato de Aristóteles. Narra-se que Heraclito foi visitado por forasteiros. Quando chegaram ao local onde habitava o sábio pensador, cedo a ansiedade se transformou em frustração e desconcerto ao verem um lugar rude e despojado onde um homem de aparência humilde se aquecia junto ao fogo. Ao ver o desconcerto dos curiosos, Heraclito exclamou: - «Também aqui habitam os deuses.» O paralelismo entre estes pensadores sempre me pareceu evidente. A minha imaginação explodia ao visualizar o pensador Heidegger na sua cabana na Floresta Negra na tarefa do pensar e do poetizar. O elitismo de Heidegger era irresistível: perante o pensar, a multidão, tal como os recém-chegados, na falta da sensação esperada, volta para trás. Eu jamais vacilaria, estava preparado para pensar com o mestre junto ao fogo na sua cabana. Imaginava-a embrenhada na floresta densa, tal como o seu pensamento. Imaginava-a fundada nas raízes da floresta sombria e na terra de homens robustos, sólidos no querer. 
Há coisa de um ano, visitei a célebre cabana onde Heidegger escreveu muitas da suas obras e se entregou à tarefa do pensar. Fica numa aldeia chamada Todtnauberg no município de Todtnau, na região de Baden-Württemberg. A poucos quilómetros, fica a cidade de Freiburg, onde Heidegger lecionou. 
Quando se chega à aldeia, vemos ostentado o respetivo brasão e cedo compreendemos que chegámos a uma terra de lenhadores. Esta aldeia fica num vale que constitui uma das muitas clareiras da Floresta Negra. Ao contrário do que sempre imaginei para a minha primeira visita, o dia estava apolíneo, seco e morno – a experiência do frio e da humidade teutónicos teria de esperar. Chegado a Todtnauberg, cedo procurei algum sinal que me levasse à cabana onde o pensador teria «trazido à linguagem, pelo pensar, apenas a palavra impronunciada do ser.» Não suportei a espera da procura e, de imediato, perguntei a um caminhante, que por ali passava, se me poderia indicar onde ficava a cabana de Heidegger. Sereno e complacente com a minha ansiedade, disse-me que seguisse as tabuletas de madeira que estavam mesmo à minha frente, no início de um trilho que subia um dos montes que nos rodeavam. Bastava ter lido: «Heidegger-Rundweg». 
Após uma longa e íngreme subida, cheguei ao tão desejado destino. A cabana de Heidegger, agora da família, ali estava, não na densa e escura floresta, mas na orla do bosque, numa saliência de um dos lados do monte, com vista para o vale de Todtnaubeg, para a clareira da floresta. À medida que fui percorrendo os caminhos da floresta até à vista para a clareira, revisitei as minhas leituras de jovem e confirmei que o pensamento de Heidegger estava sustentado naquela terra, tal como as botas do lenhador no seu passo robusto e firme. Embora seca, assim me pareceu, ainda lá está a célebre bica de madeira. 
Porque já perdi os dotes sibilinos do passado, afirmo com clareza que Heidegger tentou traduzir na linguagem a experiência de um pensamento que está para além da racionalidade e que não é, necessariamente, irracional. A verdade é que continuo a visitar uma dimensão semelhante do pensar, quando os tempos modernos o permitem, ou, pelo menos, continuo convencido de que a visito. No entanto, hoje considero perigoso pensar o «ser»; o «autêntico» e o «originário» sem gente dentro ou sem considerar algumas regras de racionalidade básicas. Por mais sedutora e originalmente profunda que seja esta experiência do pensar, nomes como «Lógica», «Ética» e «Física», permitem-nos pôr à prova as nossas crenças, confrontando-as e partilhando-as efetivamente com outros, diminuindo, assim, a possibilidade dos grandes erros.
Fotos de Alexandre Guerra

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Viena: viveiro do pensamento contemporâneo

Foto de Aires Almeida
Talvez nenhum outro lugar no mundo moderno tenha conseguido ser tão intelectual e culturalmente excitante como a cidade de Viena entre o início dos anos 10 e meados dos 30 do século passado. Da pintura e da arquitectura à matemática e à ciência, passado pela literatura e pela música, o fulgor de Viena não teve rival no mundo ocidental dessa época.
Durante esse período Viena não era só a capital de movimentos artísticos, como o Jugendstill – a Arte Nova austríaca – em que já se tinham destacado pintores como Gustav Klimt e Egon Schiele ou arquitetos como Otto Wagner. Era também o umbigo do modernismo em arquitetura, que se opunha radicalmente ao Jugendstill e que tinha como figura de proa Adolf Loos, um dos mais controversos arquitectos do século XX. 
Era ainda palco de dramaturgos, escritores e ensaístas como o elegante Hugo Von Hofmannsthal, o singular Robert Musil, o provocatório Arthur Schnitzler, além do temido – e sempre actual – Karl Kraus. Essa mesma Viena assistiu à maior revolução musical do século, a chamada Segunda Escola de Viena (a primeira tinha surgido no séc. XVIII, com Mozart, Haydn e Beethoven), encabeçada pelo visionário compositor Arnold Schoenberg, e desenvolvida por Alban Berg e Anton Webern, todos eles influenciados por Gustav Mahler, outro vulto maior da Viena do início do século XX.
Tudo isto enquanto Sigmund Freud fazia nascer a psicanálise e escandalizava o mundo com os seus livros sobre a estreita relação entre o comportamento humano, o inconsciente e a sexualidade, ao mesmo tempo que recebia e analisava a alta sociedade vienense no seu consultório, no nº 13 de Berggasse.
Nessa mesma altura, o físico vienense Erwin Schrödinger começava a dar as suas primeiras contribuições para a física quântica e Kurt Gödel marcava definitivamente, a partir de Viena, a lógica matemática, tornando-se seguramente um dos maiores lógicos de sempre. Isto sem esquecer figuras como o ilustre etologista Konrad Lorenz e aquele que ainda é talvez o mais influente historiador da arte do último século, Ernst Gombrich.
Foi ainda por essa altura que a teoria económica e a economia política viram nascer, com Friedrich Hayek e Ludwig von Mises, as primeiras ideias liberais que estiveram na base da conhecida e influente Escola Austríaca. 
Tudo isto é impressionante, mas ainda nem sequer se falou do panorama filosófico. Ora, não será exagero afirmar que essa Viena foi precisamente um dos mais importantes viveiros da filosofia contemporânea. Não só porque foi a cidade onde nasceu um dos movimentos filosóficos mais abrangentes e influentes do último século, o célebre Círculo de Viena, a que estiveram ligados alguns dos vultos anteriores (Gödel, por exemplo), mas também a cidade natal de gigantes da história da filosofia contemporânea como Ludwig Wittgenstein e  Karl Popper.
Não é errado dizer, por um lado, que uma boa parte da filosofia contemporânea visa uma de duas coisas: desenvolver as ideias centrais do Círculo de Viena ou, pelo contrário, desembaraçar-se delas. Seja como for, o Círculo de Viena, onde se destacou acima de todos Rudolf Carnap, contribuiu para libertar a filosofia do pântano místico e idealista em que se estava a atolar, dando-lhe rigor, precisão e algum tino. Por outro lado, há quem considere, talvez com algum exagero, que há uma filosofia anterior a Wittgenstein e outra que tem em conta Wittgenstein, por muitos encarado como o maior filósofo do último século. Quanto a Popper, arriscaria dizer que a sua filosofia política e a sua filosofia da ciência se tornaram hoje uma espécie de senso comum académico. Popper, que tanto se opôs ao Círculo de Viena como ao seu conterrâneo Wittgenstein, a ponto de este, no meio de uma animada discussão filosófica entre ambos, o ter ameaçado com o atiçador de uma certa lareira em Cambridge.
Viena não é, pois, apenas a cidade das valsas, da ópera, da psicanálise e dos requintados cafés. É também uma das capitais mundiais da filosofia, o que não é, afinal, de espantar, pois a filosofia não nasce da reflexão solitária, mas do confronto aberto de todo o tipo de ideias. Pena é que o ódio nazi à pluralidade de ideias tenha posto fim ao esplendor intelectual de Viena, levando a que quase todas essas figuras se vissem forçadas a fugir da barbárie, procurando abrigo noutras paragens.


Wittgenstein, filho de um dos maiores milionários da Europa, era também um arquitecto amador. Esta é a casa que o filósofo desenhou para a sua irmã Margaret, em Kundmanngasse, Viena. Trata-se de uma obra assumidamente influenciada pelas recentes ideias modernistas de Adolf Loos.