A que temperatura queima o papel? A resposta é: a 451
graus na escala de Fahrenheit. E essa é também a temperatura a que queimam os
livros, que são feitos de papel. Ora, Fahrenheit
451 é precisamente o título original do filme britânico, realizado em 1966
pelo francês François Truffaut, com base no livro do célebre escritor americano
Ray Bradbury (falecido no passado mês de Junho). Grau de Destruição é o (infeliz) título do filme em Portugal.
A história desenrola-se numa sociedade futura de grande
conforto material, a qual é zelosamente protegida por um governo (referido como
a família)
cujo único objectivo é manter as pessoas felizes. Está bom de ver que a família
(o governo) deve saber o que é a felicidade. Na verdade, a família sabe melhor
do que ninguém o que faz os seus membros (os governados) felizes. E sabe também
o que perturba a paz social e os torna infelizes. Assim, a família sabe melhor
do que ninguém o que, para o bem de todos, tem de ser evitado.
Mas o que poderá perturbar a paz social e a felicidade das
pessoas? A família tem a resposta: a paz e a felicidade são perturbados pelo
desconforto material, mas também pelo desconforto espiritual. O problema
material parece ter sido resolvido, pois as pessoas têm emprego, não passam
fome, vivem em boas casas e fazem muitas compras. Mas evitar o desconforto
espiritual é bem mais difícil, pois este tem origem não só no desejo
insatisfeito como na incerteza da dúvida. Nada pior do que pensar em perguntas
difíceis, confrontar-se com ideias divergentes e alternativas ou dar asas a uma
imaginação à solta. Quer dizer, a infelicidade encontra-se no pensamento
crítico, na filosofia, na literatura, na poesia, na história. Só que é isto que
abunda nos livros. Daí que os livros sejam verdadeiramente perigosos,
incendiando as ideias e abrindo caminho à infelicidade. Por isso têm de ser
banidos. O que as pessoas realmente precisam para entreter as suas mentes é
programas de televisão (vistos em enormes e elegantes aparelhos de TV) que não
as intranquilizem nem as façam pensar em coisas estranhas e complicadas: por
exemplo, devem entreter-se com concursos interactivos em que se tenta acertar nos títulos de canções
conhecidas, e coisas do género.
Mas há um problema: não basta proibir os livros, pois
podem ser lidos às escondidas. É preciso destruí-los. E essa é a tarefa dos
bombeiros, que vão às casas das pessoas suspeitas, procurando-os e queimando-os
com jactos de fogo à temperatura de... 451 graus Fahrenheit. É o que faz, com
grande dedicação, o bombeiro Guy Montag (Oskar Werner). Até ao dia em que fica
incomodado com uma leitora que prefere deixar-se queimar juntamente com os
livros do que perdê-los. Intrigado, Montag decide guardar sorrateiramente um
dos livros para ver o que leva algumas pessoas a correr o risco de vida por
eles. A partir daí, instala-se a dúvida no espírito de Montag. Incentivado pela
sua atraente e perigosa amiga Clarisse (Julie Christie), começa a pôr em causa
a sua profissão e acaba ele próprio por se tornar um ávido leitor. Só que, não
podendo correr o risco de guardar os livros, junta-se a um grupo secreto de
resistentes homens-livro, cada um dos
quais decorou um livro inteiro. Assim, cada pessoa é um livro e os resistentes
são uma biblioteca. «Que livro és?», pergunta-se a um deles. «Sou A República, de Platão, querem ouvir?».
Juntam-se à volta de A República e
ouvem. O conhecimento e a memória da humanidade são assim preservados
secretamente na intimidade dos resistentes.
Mas serão mesmo as ideias contidas nos livros fonte de infelicidade?
Seremos mais felizes se nos mantivermos ignorantes e não formos questionadores?
Quem sabe, afinal, o que nos faz felizes? Este é um filme que ilustra bem a
tese de que, em nome da felicidade geral e de uma concepção oficial do que é o bem, se podem urdir muitos totalitarismos
bem intencionados. Como se antevê também em Mil
Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell e em Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.