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segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Uma janela para o problema da demarcação

Eis um pequeno excerto do livro Novas Janelas Para a Filosofia, publicado no final do passado mês de Maio. O excerto é do início do capítulo sobre filosofia da ciência, mais precisamente sobre o problema da demarcação. 

   Distinguir a ciência do que não é ciência tem sido bastante mais difícil do que possa parecer. É um problema que muitos consideram da máxima importância. Karl Popper (1902-1994) classificou-o como o mais importante problema da filosofia da ciência, procurando apresentar uma solução para ele, como veremos. O problema tem, de resto, adquirido uma crescente importância prática, na medida em que se trata também de distinguir a ciência de um tipo particular de não-ciência: a pseudociência. A sua particularidade, como o prefixo pseudo indica, é a de reivindicar ilegitimamente para si o estatuto de ciência genuína. Claro que tal reivindicação seria inútil se não houvesse semelhança alguma entre a ciência e a pseudociência, o que é visto como uma ameaça à própria ciência, tal como a moeda falsa é uma séria ameaça à moeda verdadeira, minando a confiabilidade desta. Como se adivinha, isso acarreta vários outros perigos de cariz social e político.
   Por exemplo, há decisões políticas que precisam de ser baseadas em informação e fundamentadas em explicações científicas, em vez de meras especulações e aparências, pelo que é importante saber quem está em condições de o fazer: em que investigações se deve gastar o dinheiro de todos, o que ensinar nas escolas ou que medidas de saúde devem ser adoptadas numa pandemia? Ao distinguir as fontes de conhecimento mais fiáveis das suas imitações, a demarcação entre ciência e pseudociência permite orientar decisões, tanto na vida pública como na privada: devo consultar um médico ou é melhor ir antes ao homeopata?
   Não tem, no entanto, sido fácil encontrar um critério de demarcação satisfatório. E para isso contribui também o facto de o universo da ciência ser bastante heterogéneo, abrangendo as ciências naturais, as ciências sociais e humanas, as ciências formais, e ainda as novas ciências que vão surgindo, como as ciências computacionais, a sociobiologia, a cibernética, as ciências da Terra e do ambiente, as ciências do trabalho, da comunicação, da educação, etc. E há também quem considere a psicanálise e o marxismo científicos. Em contrapartida, há áreas que já foram amplamente consideradas científicas e que deixaram de o ser, como a astrologia (praticada por Ptolomeu e Kepler), a alquimia (praticada por Paracelso) e a frenologia (fundada pelo médico alemão Franz Joseph Gall). De resto, nenhuma lista de pseudociências é consensual. Exemplos como o criacionismo, o terraplanismo, a homeopatia ou a quirologia são relativamente pacíficos, mas há quem discuta seriamente se a parapsicologia ou a acupunctura merecem ser qualificadas de científicas.
   Se for possível apresentar um critério satisfatório de demarcação entre o que é e o que não é ciência, não só muitos dos perigos representados pelas pseudociências poderão ser mais facilmente enfrentados, como ficaremos com uma maior compreensão da natureza de uma das mais relevantes actividades humanas.
 (pp. 249-250)

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Deus existe? O essencial


Depois de estar disponível apenas no formato eBook, foi finalmente publicado em papel o livro A Existência de Deus: o essencial, de Desidério Murcho (Plátano Editora). O livro, com aproximadamente 100 páginas, foi escrito a pensar nos estudantes e professores do 11º ano, mas também no leitor comum, interessado na questão central da filosofia da religião. E, já agora, penso que é mais uma excelente capa, na linha das anteriores da mesma colecção, com a reprodução de outra obra do artista Baltazar Torres.

Um dos aspectos que torna este livro particularmente interessante para estudantes e professores é que segue a par e passo as Aprendizagens Essenciais (AE) de Filosofia, destacando as versões dos argumentos sobre a existência de Deus aí indicadas. E apresenta, como proposto nas AE, a «redução dos argumentos a formas de inferência válida estudadas e análise da sua validade e solidez», o que não é fácil encontrar noutros livros de carácter introdutório.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Definições de arte não-essencialistas

Aqui fica um pequeno excerto (incluindo a imagem abaixo) do meu livro A Definição de Arte: O essencial, recentemente publicado na Plátano Editora. Trata-se de uma passagem em que procuro apresentar os traços gerais da abordagem não-essencialista e daquilo que distingue mais claramente as definições não-essencialistas das definições tradicionais (essencialistas).


A reação [ao ceticismo acerca da possibilidade de definir arte] traduziu-se, assim, na procura de uma definição não-essencialista, capaz de identificar as condições necessárias e suficientes da arte. 

Perante isto, poder-se-á perguntar: mas se as condições necessárias e suficientes não referem características essenciais da arte, hão-de referir o quê? Para melhor se compreender as definições não-essencialistas é útil começar por responder a esta pergunta, fazendo algumas comparações.

A primeira diz respeito à questão da função da arte. As definições essencialistas tendem a identificar a essência da arte com a função que a arte é suposto desempenhar, seja ela representar algo, exprimir emoções ou proporcionar satisfação estética. Assim, de acordo com a teoria representacional, a arte tem como função principal representar a realidade, fazendo-nos ver e compreender melhor aspetos do mundo que, sem ela, nos poderiam passar despercebidos; a teoria expressivista, por sua vez, assenta na ideia de que a função da arte é exprimir sentimentos que aproximem as pessoas entre si — na perspetiva de Tolstói — ou que contribuam para nos compreendermos melhor a nós próprios — na perspetiva de Collingwood —; de acordo com a teoria formalista, a arte tem como função criar padrões interessantes capazes de nos proporcionar satisfação estética. Portanto, o mérito artístico de obras de arte particulares depende substancialmente do modo como cada obra satisfaz os critérios funcionais da teoria considerada correta, os quais decorrem, por sua vez, do que se considera ser a essência da arte. Por exemplo, de acordo com a teoria da representação, as melhores obras são as que conseguem representar melhor ou mais fielmente aquilo que está a ser representado. E o mesmo tipo de critério funcional se aplica às restantes teorias tradicionais. Os não-essencialistas admitem, ao invés, que a arte possa ter as mais variadas funções — alargar o conhecimento, exprimir e explorar emoções, proporcionar experiências compensadoras, divertir, proporcionar prazer, ajudar-nos a ser pessoas melhores, comunicar ideias, criticar a sociedade, transformar o mundo, criar coisas belas, valorizar as nossas vidas, ajudar-nos a suportar os males do mundo, etc. — o que torna inútil procurar nos objetos de arte características permanentes supostamente associadas a funções tão diferentes. Até porque uma mesma obra de arte, consideram os não-essencialistas, pode servir diferentes funções, adquirir diferentes significados, admitir diferentes interpretações ou exprimir sentimentos diferentes, consoante o contexto em que ela é produzida ou apreciada.

Dado que os não-essencialistas não esperam que a definição sirva para determinar os méritos ou a qualidade de obras de arte particulares, o que eles procuram é uma definição que permita simplesmente classificar corretamente certos objetos como arte, sem qualquer preocupação de caráter valorativo. Buscam, portanto,  uma definição que seja compatível com a existência de boas e de más obras de arte.

Tudo isto sugere que as condições necessárias e suficientes da arte não dependem das características internas dos objetos. O não-essencialista considera, em contrapartida, que tais condições são relativas ao contexto em que eles estão inseridos e ao modo como tais objetos adquirem o estatuto de obras de arte. Uma metáfora adequada da perspetiva do não-essencialista é a afirmação atribuída ao escritor Jorge Luís Borges sobre a arte de que "nenhuma obra é uma ilha", no sentido em que é preciso procurar fora da obra — mais precisamente no contexto em que ela se encontra —, aquilo que a torna arte. Assim, a pergunta relevante para o não-essencialista não é "Quais são as características de um dado objeto que fazem esse objeto ser uma obra de arte?" mas antes "Como é que um qualquer objeto adquire o estatuto de obra de arte?" A primeira pergunta aponta para as próprias obras de arte ao passo que a segunda aponta para o seu contexto social. Por isso, os próprios defensores do não-essencialismo consideram ajustado o termo "contextualismo" para classificar o tipo de teorias da definição que eles propõem.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Definir arte

O meu pequeno livro sobre a questão filosófica da definição de arte está já à venda e pode ser encomendado aqui. Deixo também um pequeno excerto do prefácio, com a descrição sumária de cada capítulo do livro.


Dada a importância das artes para os seres humanos e dada a sua enorme relevância social, haverá muitas outras pessoas interessadas nas questões da identificação e da natureza da arte, sejam estudantes de vários níveis e áreas, como professores, agentes artísticos ou apreciadores de arte em geral. Este livro também é para essas pessoas, pelo que a linguagem adotada procurou ser acessível, mas não estritamente escolar, de modo a chegar a todos.
Ainda que os artistas não precisem de quaisquer teorias da arte para produzirem obras de arte, todos temos algum tipo de necessidade de compreender o que é isso da arte e como distinguir o que é arte do que não é. Assim, talvez o conhecido artista americano Barnett Newman tenha dito apenas uma parte da verdade quando afirmou que “a estética [ou teoria da arte] está para o artista como a ornitologia está para os pássaros”. Mesmo que os artistas dispensem as teorias, isso não significa que nós não precisemos delas para compreender o que os artistas criam, tal como estudamos ornitologia para conhecer melhor os pássaros, apesar de os próprios pássaros nada aprenderem com isso. 
Este livro está dividido em cinco partes. A primeira trata de esclarecer o problema da definição de arte: Em que consiste o problema? O que torna o problema difícil? Para quê definir arte? Que tipo de definição se pretende? Esta última secção da primeira parte visa apenas dar as ferramentas técnicas para a discussão subsequente. É talvez mais técnica, mas  é também das mais curtas. Em todo o caso, pretende-se que seja relativamente acessível.
Na segunda parte apresentam-se e discutem-se as três principais teorias essencialistas (da representação, da expressão e da forma significante), isto é, as que partem da ideia de que há uma essência da arte e, por isso, visam apresentar uma definição que descreva essa essência. 
Essas definições foram o alvo de uma forte reação cética. Os céticos não só consideram não haver uma essência da arte como afirmam tratar-se de um conceito indefinível. Pensam, contudo, que isso não é dramático, alegando que também não precisamos de uma definição de arte para nada. Este é o tema da terceira parte.
Por sua vez, os céticos foram alvo das críticas dos contextualistas, que insistem que o conceito de arte pode ser definido, embora em termos não-essencialistas. As definições não-essencialistas (institucional e histórica) são discutidas na parte quatro.
Por fim, na quinta parte, aperesentam-se brevemente algumas alternativas à definição, de modo a não se ficar com a ideia que nada mais há além das definições propostas. 

terça-feira, 10 de junho de 2014

Humano ou não?

Aqui fica, com a devida autorização da sua autora, Daniela Cabrita, um pequeno ensaio sobre o filme Blade Runner: Perigo Iminente, de Ridley Scott.


Será Deckard humano ou será replicante?
Daniela Cabrita
Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes
Maio de 2014
11º ano, turma M de Filosofia

Neste ensaio discute-se se Deckard, uma personagem do filme Blade Runner – Perigo Iminente, será humano ou replicante. Defendo que Deckard é um replicante.
     No filme, distinguia-se um ser humano de um replicante recorrendo à utilização de uma máquina de teste chamada “Voight-Kampff”. De outra forma, por exemplo, recorrendo ao ADN, os replicantes seriam também considerados humanos. Deckard, que deteta a diferença entre humanos e replicantes recorrendo a esse teste, depara-se com Rachel, que pensa ser humana, quando na realidade não o é. A situação de Rachel pode muito bem assemelhar-se à de Deckard: quem é que lhe garante que ele não é também um replicante? À medida que o filme vai avançando, são vários os fatores que me levam a crer que Deckard é um replicante. Por exemplo, quando Rachel lhe pergunta se este alguma vez realizou o tal teste, este nunca lhe chega a responder. Para além disso, Deckard é quase inexpressivo, neutro, e praticamente não reage a quase tudo o que o envolve. As atitudes que ele tem não condizem com o que, aparentemente, um humano sentiria na mesma situação. Além disso, Gaff (uma espécie de vigilante dos caçadores de replicantes) disse significativamente a Deckard que este fez um “trabalho de homem”. O que quereria ele dizer com isso? Para mim, esta é uma frase bastante importante e que nos pode levar a pensar em todo o filme.
     Aliado a isto está o facto de Deckard ter encontrado o origami de um unicórnio, que já tinha aparecido nos seus sonhos, e que pode ser uma prova de que aquilo pode ser apenas uma memória implantada. Portanto, como pode o próprio Deckard confiar nas suas memórias? Para além disso, porque haveriam de pôr um humano em perigo à procura de replicantes? Tal como é dito no filme, os replicantes faziam trabalho escravo para os humanos, faziam os serviços demasiado arriscados. Algo que se repara no filme é que, num determinado ângulo de luz, os replicantes têm um certo brilho no olhar. Numa cena em que Deckard fala com Rachel ele tem exatamente o mesmo brilho nos olhos que ela. Se Deckard fosse realmente humano, tal não aconteceria.
     Concluindo, do meu ponto de vista, Deckard é um replicante devido a certas atitudes que toma, à maneira como reage e o facto de nunca ter mencionado a sua família, o que me leva a duvidar acerca da sua humanidade.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Humanidade

Deixo aqui o início do Capítulo 12 do novo manual 50 Lições de Filosofia, 11.º Ano, de que sou autor, juntamente com Desidério Murcho. É sobre um tema que iremos discutir nas aulas, baseado num filme que é suposto os alunos terem visto. O tema é: tecnologia e humanidade.

Imaginemos que estamos num futuro em que a tecnologia está desenvolvida a ponto de nos permitir colonizar outros planetas. Imaginemos que a tecnologia nos permite criar, em avançados laboratórios de engenharia genética, andróides praticamente iguais aos seres humanos. Imaginemos que esses andróides podem até ser mais fortes, mais resistentes e mais inteligentes do que muitos seres humanos. Imaginemos que criávamos esses andróides para facilitar a nossa vida, pondo-os ao nosso serviço: por exemplo, enviando-os para outros planetas para desempenharem as tarefas mais difíceis e arriscadas; aquelas tarefas mais duras que os seres humanos não estariam dispostos a realizar. Sendo especialmente inteligentes, esses andróides poderiam um dia recusar-se a desempenhar tais tarefas e decidir viver a sua própria vida sem estar ao serviço dos humanos; sendo também fortes, talvez ninguém os conseguisse deter. Imaginemos que, para evitar tais perigos, os andróides foram concebidos e fabricados de maneira a que o seu período de vida fosse limitado a quatro anos. Sendo nós seres humanos, como reagiríamos, caso algum andróide se revoltasse? E se fôssemos andróides, como reagiríamos ao saber que iríamos durar apenas quatro anos, sempre ao serviço dos humanos?
Para nos ajudar a imaginar precisamente este futuro, o melhor é ver Blade Runner: Perigo Iminente, o filme de 1982, realizado pelo inglês Ridley Scott, que se tornou um dos mais destacados filmes de culto da história do cinema.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Justificação e verdade



Quando testemunhamos um acidente, olhamos para o termóstato, misturamos azeite com água na cozinha ou observamos um eclipse raro a olho nu, adquirimos crenças sobre o comportamento das coisas e das pessoas à nossa volta. Em todos estes casos, temos a experiência directa do que acontece, do que vemos ou sentimos, e em grande medida ganhamos essa experiência por via da observação. Mais frequentemente, porém, as nossas crenças provêm de fontes indirectas, algumas mais fiáveis que outras (especialistas destacados, professores, livros, televisão, internet, boatos, tradição, por exemplo). E há, finalmente, crenças que retiramos de crenças anteriores. Se sei que o meu amigo João é alérgico aos camarões e que no banquete há um salteado que contém camarão-tigre, então formo a crença de que o João deve evitar o salteado.

As nossas crenças são justificadas se temos boas razões que sustentem o seu conteúdo. Mas há uma diferença entre verdade e justificação. A minha crença de que amanhã vai chover pode ser justificada — pode, por exemplo, provir de uma fonte fiável — e no entanto acabar por ser falsa. A justificação não garante a verdade. Por outro lado, posso ter uma crença verdadeira, como por exemplo que o meu vizinho é um espião, sem ter a mínima prova que a apoie. O que eu acho ou o que neste caso o meu instinto me disse, coincidiu  por acaso com algo que é verdade, mas a minha crença não é justificada.

Há pelo menos duas razões para nos interessarmos pelas crenças justificadas. Primeiro, por vezes a verdade não chega. Termos uma justificação para as nossas crenças torna mais fácil convencer os outros da sua verdade. No tribunal, por exemplo, o que eu acho e o meu instinto me diz não contam. É preciso provas de que o acusado é culpado ou de que não houve crime. Segundo, é mais provável que, desde que coerentemente organizadas, as nossas crenças justificadas ofereçam uma explicação satisfatória para os fenómenos por que nos interessamos. Dificilmente valorizaríamos um conjunto aleatório de crenças verdadeiras, mas se tivermos fundamentos para elas, é mais provável que vejamos as ligações entre elas e que delas retiremos outras implicações, o que potencialmente alarga o conhecimento.

Por vezes, os sistemas de crenças coerentemente organizados formam teorias. Formamos teorias em contexto muito diferentes, não apenas no contexto das disciplinas científicas formais. Temos teorias sobre toda uma variedade de coisas: por exemplo, sobre como ser bem-sucedido nas entrevistas de emprego, sobre o que originou a tensão no Médio Oriente, sobre o motivo por que John Grisham vende tantos livros.

Lisa Bortolotti, Introdução à Filosofia da Ciência (2008).  Trad. port. Jorge  Beleza. Lisboa: Gradiva, 2013, p. 67-8.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

A teoria do conhecimento

A propósito da V Conferência de Filosofia da Teixeira Gomes realizada em Março de 2004, fiz, por iniciativa do grupo de Filosofia da escola, uma curta entrevista à conferencista desse ano, a professora Adriana Silva Graça (Universidade de Lisboa).


Na conferência que proferiu disse que o problema do conhecimento é um problema epistemológico. Qual é, então, a diferença entre epistemologia, gnosiologia e teoria do conhecimento?
As três designações são usadas com significados ligeiramente diferentes em tradições filosóficas distintas. Na tradição filosófica à qual eu pertenço, o primeiro e o terceiro desses termos são basicamente sinónimos; o segundo, não é praticamente usado.

Qual é a importância que o estudo da epistemologia tem numa boa formação filosófica?
Os temas filosóficos pertencentes à Epistemologia ou Teoria da Conhecimento sempre foram fulcrais ao longo da História da Filosofia, ao lado dos temas pertencentes à Metafísica. É crucial que tenhamos uma ideia o mais precisa possível de como e se é possível conhecer a realidade.

Quais são os principais problemas da epistemologia que merecem mais atenção por parte dos filósofos actuais, além do problema da definição de conhecimento? E quais são as teorias mais destacadas?
Por exemplo, i) se, de todo em todo, o conhecimento é possível; ii) como o conhecimento se deixa analisar; iii) se existe conhecimento a priori, ou se todo o conhecimento começa com a experiência; iii) como se deixa organizar um certo conjunto de crenças, do ponto de vista da sua justificação; iv) quais são as fontes de conhecimento; v) aquilo a que se tem acesso cognitivo no acto perceptivo.
Para a primeira questão, é necessário desenvolver boas maneira de refutar o argumento céptico; Descartes e Putnam têm boas formas, muito diferentes entre si, de o fazer. Relativamente ao terceiro tema destacam-se as respostas racionalista e empirista (na sua forma moderada ou radical). Quanto ao quarto problema, temos as teorias fundacionalistas e coerentistas em debate. Finalmente, quanto ao quinto, temos as teorias directas e indirectas da percepção, bem como o idealismo e o fenomenalismo.

Como é que encara a actividade filosófica na actualidade? Vê o filósofo como uma pessoa que opina sobre quase todos os assuntos para as pessoas em geral ou, pelo contrário, vê-o antes como um especialista que fala de coisas para a compreensão das quais se exige o domínio de técnicas próprias?
Vejo o filósofo mais como um especialista, cuja especialidade é o lado mais abstracto das diferentes questões. Vejo a filosofia como estando em continuidade com as diferentes ciências e diferentes conjuntos organizados de crenças, mas preocupando-se em fundamentar (e discutir) o que todos os outros tomam por óbvio. É claro que a análise filosófica exige o domínio de técnicas próprias.

Tem uma disciplina filosófica pela qual se interesse mais? Qual é e porquê?
Sim. É a Filosofia da Linguagem. Porque é uma disciplina filosófica que faz fronteira com a Epistemologia, a Metafísica e a Filosofia da Mente, fazendo girar em torno dela uma diversidade grande de problemas filosóficos muito interessantes. Interessam-me particularmente os problemas do sentido e da referência de expressões linguísticas (frases ou certos tipos de termos como termos gerais, termos singulares, termos indexicais, termos descritivos etc.), bem como os problemas relacionados com a relevância do contexto para a determinação daquilo que é dito por meio de certas elocuções de frases. A Filosofia da Linguagem é em grande parte responsável pelo desenvolvimento de boa parte dos conceitos que hoje são usados na prática filosófica corrente (como os conceitos de a priori, de necessário e de analítico). É efectivamente a minha área preferida de estudo.

Tem algum ou alguns filósofos preferidos? Porquê?
Tenho alguns: Aristóteles, Leibniz e Russell. Os três inteiramente originais, com grande poder argumentativo, criadores de sistemas filosóficos geniais para a sua época. Preocuparam-se - os três - em construir um edifício cujos alicerces tornaram explícitos.

O que é fazer investigação em filosofia?
É ter muito trabalho pela frente! Ler muito, tentar descobrir uma nova ideia, ou porque é que uma certa teoria não serve, ou porque é que teorias tidas por inconsistentes afinal não o são. Mas é muito difícil fazê-lo, pois, por um lado, não temos dados empíricos (temos unicamente algumas intuições, que podem sempre ser disputadas), e por outro, há muita gente a trabalhar na comunidade internacional e é difícil, com as condições que temos, competir com eles.

O que a levou à filosofia?
O gosto pelos problemas na sua formulação mais abstracta e uma professora do ensino secundário, por quem tenho ainda hoje grande estima: Adelaide Galvão Teles.

Gosta de ensinar filosofia? Porquê?
Muito. Gosto de sentir que os alunos se interessam por questões importantes, gosto de observar o seu desenvolvimento e há sempre aqueles alunos que compensam o trabalho de preparar uma aula. Sempre que é possível, confronto as minhas próprias ideias com os alunos na aula (nas últimas aulas da disciplina, após eles já terem algum controle dos problemas em discussão).

Será que é possível haver uma colaboração mais estreita, no que diz respeito ao ensino da filosofia, entre os professores do ensino superior e do ensino secundário?
Julgo que sim. Ela ocorrerá sempre que houver vontade para isso. Julgo que todos temos a ganhar.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Teoria do conhecimento (ou epistemologia)


Uma das disciplinas centrais da filosofia é a epistemologia, que é também um dos temas principais do 11º ano, juntamente com a lógica e a filosofia da ciência. A pensar nisso, deixo a sugestão de um livro recentemente publicado, de Dan O'Brien, e que é precisamente uma introdução à epistemologia (ou teoria do conhecimento). Muitas secções do livro são perfeitamente adequadas para alunos do 11º ano, embora haja outras que levam a um maior aprofundamento dos problemas apresentados. 


Eis como começa o livro:

A Teoria do Conhecimento levanta certas questões muito amplas e profundas acerca dos sujeitos de conhecimento e do conhecimento em si. O que é conhecer? Como distinguir o conhecimento da mera crença? E será o conhecimento possível? A Teoria do Conhecimento é também designada epistemologia, a partir da palavra grega para conhecimento, «episteme». [...] A epistemologia continua a ser uma área de investigação vibrante, e muitas das posições e teorias que iremos examinar surgiram nas últimas décadas. Este interesse persistente na epistemologia é um reflexo da enorme importância que o conhecimento tem nas nossas vidas. Em primeiro lugar, é instrumentalmente útil: recorrendo ao conhecimento científico, por exemplo, procuramos explicar, controlar e prever o comportamento do mundo natural. Segundo, mesmo quando não tem utilidade prática, o conhecimento continua a ser encarado como algo que vale a pena obter. É bom em si mesmo. Quando, no filme A Fúria da Razão (1971), um criminoso é obrigado a entregar a sua arma ao Inspector Harry Callahan, procura depois saber se Harry ainda tinha alguma bala na pistola ou se estivera apenas a fazer bluff — «Tenho de saber». Esta informação não terá qualquer utilidade prática para o bandido — visto encontrar-se já detido, em qualquer dos casos — mas é uma forma de conhecimento que ele persegue, ainda assim.             

A Epistemologia e a Metafísica são os dois tópicos centrais da Filosofia. A primeira prende-se com a natureza e a possibilidade do conhecimento; a segunda diz respeito à natureza daquilo que existe. Alguns exemplos de questões metafísicas são: existirão coisas não-físicas? Poderão existir outras mentes além da nossa? E será que Deus existe? Veremos como todas estas questões se entrecruzam com as nossas investigações epistemológicas.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Saber discordar


Qual é a negação de «O João e a Joana amam-se»?

Parece fácil? Pois, mas não é. Que o digam os alunos do 10º N, que levaram algum tempo perdidos com tentativas falhadas, até chegarem à resposta certa. O que, de resto, mostra que gostam de pensar e de aprender.

Antes de dar a resposta, vale a pena dizer algo mais.

Como seria de esperar, os filósofos passam o tempo a discutir. Discutem porque discordam: aquilo que uns pensam ser verdadeiro outros acreditam ser falso. Isso é o que leva uns a negar o que outros afirmam. Por exemplo, se um filósofo A defender a tese de que temos livre-arbítrio e outro filósofo B negar tal tese, este filósofo B estará, por sua vez, a defender outra tese: a tese de que não temos livre-arbítrio. Neste caso é fácil ver que a negação da afirmação «Temos livre-arbítrio» é «Não temos livre-arbítrio». 

Mas era bom que todas as negações fossem assim tão fáceis de compreender. Algumas teses filosóficas (e não só, claro) são mais complexas, pelo que temos de ter cuidado para não nos enganarmos a negá-las, caso nos pareça que não concordamos com elas.

As teses são aquilo a que se costuma chamar «proposições», as quais são expressas por meio de frases declarativas. A primera coisa que precisamos de compreender para negar correctamente uma dada tese ou proposição é a própria noção de negação. Ora, a negação é uma relação entre proposições, sendo que duas proposições são a negação uma da outra quando não podem ser ambas verdadeiras nem podem ser ambas falsas: a verdade de uma delas implica a falsidade da outra e vice-versa. 

Por exemplo, a negação de «Alguns algarvios são inteligentes» não é, como precipitadamente certos alunos dizem, «Alguns algarvios não são inteligentes», até porque as proposições expressas por estas frases são ambas verdadeiras. Do mesmo modo, a negação da tese de que todo o conhecimento tem origem na experiência não é, como por vezes se lê até em manuais de filosofia, que nenhum conhecimento tem origem na experiência. Isto porque se, por hipótese, for verdade que algum tem origem na experiência e outro não, então ambas as proposições anteriores serão falsas. Ora isso nunca pode ocorrer entre duas proposições que se negam mutuamente.

Mas podemos dar outros exemplos complexos. Há filósofos que defendem, por exemplo, que se o determinismo é verdadeiro, então não temos livre-arbítrio (já agora, esta é conhecida como «a tese incompatibilista»). E, claro, há filósofos que discordam (os compatibilistas). O que defendem então os compatibilistas? Bom, estes defendem a negação da tese incompatibilista: que o determinismo é verdadeiro e que temos livre-arbítrio.

Regressemos agora à pergunta inicial. Parece que a negação de «O João e a Joana amam-se» é «O João e a Joana não se amam». Pois parece, mas não é!

E não é, porque ambas as proposições expressas pelas frases anteriores podem ser falsas, apesar de não poderem ser ambas verdadeiras. Para compreender melhor isto, imagine-se que o João ama, de facto, a Joana, mas que a Joana se está nas tintas para o João. Neste caso, a proposição de que o João e a Joana se amam seria falsa. Mas assim também a proposição de que o João e a Joana não se amam seria falsa, dado ser falso que o João não ama a Joana. 

Concluindo, só há uma maneira de negar a proposição de que o João e a Joana se amam, que é a seguinte: o João não ama a Joana ou a Joana não ama o João.

Às vezes as pessoas pensam que estão a negar o que outros dizem e não estão a negar coisa alguma. É por isso que precisamos de aprender a discordar.


domingo, 25 de novembro de 2012

Argumentos válidos

Foto: Aires Almeida
- Todos os argumentos bons são válidos?
- Sim, a validade é uma condição necessária para um  argumento ser bom.
- E todos os argumentos válidos são bons?
- Não, a validade não é uma condição suficiente para um argumento ser bom.

Provavelmente a maior parte dos argumentos válidos não são bons, pois parece mais fácil dar exemplos de argumentos válidos que não são bons do que de argumentos válidos que sejam bons. Eis alguns exemplos de argumentos válidos que não prestam:

Exemplo 1

Deus existe.
Logo, Deus existe.

Exemplo 2

Deus existe e não existe.
Logo, Portugal fica em África.

Exemplo 3

Portugal fica em África.
Logo, Deus existe ou não existe.

Exemplo 4

Portugal fica em África.
Portugal não fica em África.
Logo, Deus existe.

Mas que são válidos, lá isso são.


quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Cepticismo radical: o solipsismo.


Uma forma radical de cepticismo é o solipsismo. Mas há outras formas radicais de cepticismo. Talvez volte a esta ideia mais tarde. Por agora, deixo um texto sobre o cepticismo acerca do mundo exterior defendido pelos solipsistas, retirado do excelente livro Que Quer Dizer Tudo Isto? (Gradiva), do filósofo Thomas Nagel. A passagem encontra-se no capítulo 2, intitulado: Como sabemos seja o que for? (páginas 12-15)

Seja o que for em que acredites -- quer seja sobre o Sol, a Lua e as estrelas, a casa e o bairro em que vives, a história, a ciência, as outras pessoas, até mesmo a existência do teu próprio corpo --, é baseado nas tuas experiências e pensamentos, sentimentos e impressões dos sentidos. É só a isso que tens acesso directo, quer vejas o livro nas tuas mãos, sintas o chão debaixo dos teus pés, ou te lembres que D. Afonso Henriques foi o primeiro rei de Portugal, ou que a água é H20. Tudo o resto está mais afastado de ti do que as tuas experiências e pensamentos internos e é só através destes que te alcança.
Normalmente não tens dúvidas sobre a existência do chão debaixo dos teus pés, ou da árvore que está lá fora, ou dos teus próprios dentes. De facto, a maior parte do tempo nem sequer pensas nos estados mentais que te tornam consciente dessas coisas: parece que tens consciência directa delas. Mas como sabes que elas existem realmente?
Se tentares argumentar que tem de existir um mundo físico exterior porque não verias prédios, pessoas ou estrelas, a menos que existissem coisas lá fora que reflectissem ou lançassem luz para os teus olhos, causando assim as tuas experiências visuais, a resposta é óbvia: como sabes isso? Trata-se apenas de outra afirmação acerca do mundo exterior e da tua relação com ele, que tem de ser baseada nos dados dos teus sentidos. Mas só podes confiar nesses dados específicos acerca de como as experiências visuais são causadas se já puderes confiar em geral nos conteúdos da tua mente como fonte de informação acerca do mundo exterior. E isso é exactamente o que está a ser questionado. Se tentas provar a credibilidade das tuas impressões apelando para as tuas impressões, estás a argumentar de forma circular e não chegas a lado algum. 
Será que as coisas te pareceriam diferentes se de facto tudo existisse apenas na tua mente -- se tudo o que tomas como o mundo real exterior fosse apenas um sonho gigante, ou uma alucinação, de que nunca vais acordar? Se assim fosse, então é claro que não poderias acordar, tal como acontece quando sonhas porque não haveria qualquer mundo «real» no qual pudesses acordar. Portanto, não seria exactamente como num sonho normal ou numa alucinação. Usualmente, pensamos que os sonhos têm lugar em mentes de pessoas que estão de facto deitadas numa cama real numa casa real, mesmo que no sonho estejam a fugir de uma máquina de aparar relva homicida pelas ruas de Sobral de Montagraço. Admitimos igualmente que os sonhos normais dependem do que está a acontecer no cérebro do sonhador enquanto dorme.
Mas não poderiam todas as tuas experiências ser como um sonho gigante, sem nenhum mundo exterior fora dele? Como podes saber que não é o que se passa? Se toda a tua experiência fosse um sonho sem nada lá fora, então todos os dados que tentasses usar para provar a ti próprio que existe um mundo exterior seriam apenas parte do sonho. Se batesses na mesa ou se te beliscasses, ouvirias o som e sentirias o beliscão, mas isso seria apenas mais uma ocorrência no interior da tua mente, tal como tudo o resto. Não vale a pena: quando queres saber se o que está dentro da tua mente pode ser um guia para o que está fora dela, não podes apoiar-te na maneira como as coisas parecem -- a partir do interior da tua mente -- para te darem a resposta.
Mas em que mais podes apoiar-te? Todos os teus dados acerca do que quer que seja têm de vir através da tua mente -- quer na forma de percepção, de testemunhos de livros e de outras pessoas, ou da memória -- e tudo aquilo de que tens consciência é inteiramente consistente com a hipótese de que não existe absolutamente nada além do interior da tua mente.
É mesmo possível que não tenhas um corpo nem um cérebro -- uma vez que as tuas crenças acerca disso vêm unicamente dos dados dos teus sentidos. Nuca viste o teu cérebro -- admites apenas que toda a gente tem um --, mas, mesmo que o tivesses visto, ou pensado que o tinhas visto, isso teria sido apenas mais uma experiência visual. Talvez tu, o sujeito dessa experiência, sejas a única coisa que existe, e, de qualquer modo, talvez não exista mundo físico -- nenhumas estrelas, nenhuma terra, nenhuns corpos humanos. Talvez nem sequer exista qualquer espaço.
A conclusão mais radical a tirar daqui seria a de que a tua mente é a única coisa que existe. Esta posição chama-se solipsismo. É uma posição muito solitária, e não houve muitas pessoas que a sustentassem. Como podes aperceber-te por este comentário, eu próprio não a sustento. Se fosse solipsista, provavelmente não estaria a escrever este livro, uma vez que não acreditaria que existem pessoas para o lerem. Por outro lado, talvez o escrevesse para tornar a minha vida interior mais interessante, incluindo, assim, a impressão da aparência do livro publicado, de outras pessoas a lê-lo e a comunicarem-me as suas reacções, e assim sucessivamente. Poderia até ter a impressão de receber direitos de autor, se tivesse sorte.
Talvez tu sejas um solipsista: nesse caso, considerarás este livro como um produto da tua própria mente, começando a existir na tua experiência à medida que o fores lendo. Obviamente, nada do que eu possa dizer poderá provar-te que existo realmente, ou que o livro existe enquanto objecto físico.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Cientificidade

Foto de Aires Almeida

A propósito da solução de Karl Popper  para o chamado "problema da demarcação" um aluno mostrou-me um apontamento colhido não sei bem onde, no qual se dizia o seguinte:

Popper defende que uma teoria é científica se, e só se, for empiricamente falsificável.

A minha pergunta é: acham isto correcto? Será mesmo isso que Popper defende? Eu acho que isto está errado. E o leitor concorda comigo? Porquê?

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Filósofos e banalidades

Foto de Aires Almeida

Eis duas afirmações que encontrei em respostas de alunos a perguntas dos testes (uma delas num teste do 10º ano e outra num teste do 11º ano):

1. A teoria filosófica do subjectivismo moral caracteriza-se por defender que há diferentes opiniões sobre o que é moralmente correcto e o que é moralmente errado. 
2. Uma das coisas que Descartes quer mostrar com o cogito é que para pensar é preciso existir.

É fácil imaginar a que perguntas se está a responder, mas não é isso que interessa agora. Prestemos antes atenção ao que se diz e pensemos se as afirmações anteriores são filosoficamente interessantes, ou sequer informativas.

Em 1 diz-se que há diferentes opiniões sobre questões morais. Mas haverá alguém que discorde disso? Qualquer pessoa sabe isso. Não precisamos de filósofos para descobrirmos tal coisa. Que há pessoas com opiniões diferentes sobre este e outros assuntos parece óbvio. Basta ouvir o que elas dizem e observar como discordam umas das outras. Assim, defender que há opiniões diferentes sobre o mesmo assunto é afirmar uma banalidade que dispensa qualquer justificação, uma vez que se trata de algo que qualquer pessoa pode observar directamente.

Em 2 diz-se que para pensar é preciso existir, e que é disso que o filósofo em causa nos quer convencer. Mas, mais uma vez, será preciso um filósofo reflectir tanto e gastar tantas das suas energias para mostrar o que, afinal, já toda a gente sabe? Claro que para pensar é preciso existir, tal como para tossir ou espirrar é preciso existir. Um filósofo que se dedique a convencer-nos de tal coisa não passaria certamente de um tolo.

Mas os filósofos não costumam ser tolos, pois não é suposto existirem para afirmar banalidades.

Se os filósofos e as teorias filosóficas servissem para nos mostrar o que já sabemos sem precisarmos sequer de filosofar, então os filósofos e as teorias filosóficas não serviriam de nada. Nesse caso, sim, aqueles que acusam os filósofos de defenderem tolices, apelidando-os de lunáticos, teriam alguma razão. Mas muitas pessoas chamam tolos e lunáticos aos filósofos precisamente porque pensam, erradamente, que eles se dedicam a dizer coisas como essas. É o que acontece quando interpretam apressadamente algumas das suas afirmações mais famosas, como «Penso, logo existo», «Só sei que nada sei» ou «O homem é a medida de todas as coisas».

Parece, então, claro que os subjectivistas morais não se caracterizam por defenderem que há diferentes opiniões sobre o que é moralmente correcto ou incorrecto. Isso é algo que tanto o subjectivista como o objectivista dão como certo. E também não é verdade que o objectivo do cogito cartesiano seja o de mostrar que para pensar é preciso existir.

Assim, o que recomendo aos alunos de filosofia quando lêem ou escrevem algo que lhes pareça uma banalidade, é que voltem atrás e pensem melhor nisso: talvez estejam a compreender mal as coisas e a tirar conclusões precipitadas. Não porque os filósofos estejam livres de dizer banalidades (por vezes, acontece encontrarmos filósofos que, por detrás de um palavreado complicado, acabam por dizer coisas que verificamos serem, afinal, banais), mas porque não é suposto os filósofos fazerem tal coisa. Aliás, se descobrirmos que um filósofo está, afinal, a dizer banalidades, esse filósofo deixa de ter interesse filosófico. Ora, é pouco provável que a maioria dos filósofos, sobretudo os que têm sido minuciosamente estudados e aqueles cujas teorias têm sido amplamente escrutinadas, como é o caso de Descartes, digam banalidades tão desinteressantes. 

Mas só verificamos que estamos perante banalidades filosoficamente desinteressantes quando estamos a pensar mesmo no que lemos, dizemos ou escrevemos. É por isso que o mais importante para um estudante de filosofia não é tanto estudar (também é, sim, também é!), mas pensar cuidadosamente nas coisas. Dá trabalho, mas correm-se menos riscos de dizer disparates. 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Três perguntas

Foto de Aires Almeida

1. Será que podemos saber que algo é verdade e não acreditar nisso (por exemplo, saber que Neil Armstrong foi o primeiro ser humano a pisar a Lua, mas não acreditar que Neil Armstrong foi o primeiro ser humano a pisar a Lua)?

2. Será que se algo é verdade, alguém tem de saber isso (por exemplo, se for verdade que há extraterrestres inteligentes, então alguém tem de saber que há extraterrestres inteligentes)?

3. Será que alguém sabe mesmo que há (ou que não há) extraterrestres inteligentes?

domingo, 30 de outubro de 2011

Filosofia para toda a gente


São dez e não sete as razões que Desidério Murcho nos oferece para ler este seu último livro, acabadinho de publicar pela editora Bizâncio. Além das sete razões que constituem as 7 Ideias Filosóficas Que Toda a Gente Deveria Conhecer, juntam-se outras três boas razões: a informação que introduz e contextualiza de forma interessante essas ideias; a clareza da exposição; e, não menos importante, o constante estímulo a que os leitores pensem por si sobre o que lêem. 

Mas, de que ideias fala o livro? Na verdade, são ideias que quase todas as pessoas que se dizem cultas e informadas parecem conhecer, mas cujo sentido frequentemente lhes escapa. De facto, muitas pessoas dizem, como Aristóteles, que no meio é que está a virtude. Mas compreenderão mesmo as razões que sustentam tal afirmação? E o mesmo se pode perguntar sobre afirmações tão célebres como "Penso, logo existo" ou "Eu só sei que nada sei", entre outras. São ideias filosóficas como estas que Desidério Murcho procura esclarecer, evitando cair nos lugares comuns mil vezes repetidos e mil vezes vazios.  

As sete ideias referidas no título são ideias centrais acerca do nosso conhecimento do mundo ("Penso, logo existo", Eu só sei que nada sei" e "Despertar do sono dogmático"), sobre ética ("No meio é que está a virtude"), sobre filosofia política (A guerra de todos contra todos"), sobre filosofia da religião ("Maior do que o qual nada pode ser pensado") e sobre filosofia da linguagem (Uma rosa com outro nome). 

Quase todas estas ideias são tratadas nas aulas de filosofia do 10º e do 11º anos de Filosofia e dizem respeito a filósofos como Sócrates, Aristóteles, Anselmo, Descartes, Hobbes, Hume, Kant, Frege e Rawls, entre outros. Uma das vantagens deste livro é que nele tais ideias não são tratadas de forma escolar.

O livro lê-se quase de um só fôlego e, quando chegamos ao fim, ficamos a compreender melhor por que razão essas ideias filosóficas são, afinal, grandes ideias. Por isso, este é um livro que toda a gente devia ler.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

A coisa mais perigosa que há

Numa das aulas do 11º ano estava eu a tentar explicar que o conhecimento e a mera crença são coisas muito diferentes, quando uma aluna me perguntou mais ou menos o seguinte:

- Ok, as crenças podem ser falsas e crenças falsas não são conhecimento, mas qual é, afinal, o problema em termos crenças falsas? Por que razão os filósofos se afligem tanto com isso? É certo que podemos estar enganados, mas que mal há em estarmos enganados?

Achei a pergunta bastante oportuna e interessante. Oportuna porque permitiu esclarecer algo que muitas vezes nós, professores, damos inadvertidamente como adquirido. Interessante porque é o género de pergunta tipicamente filosófica: um desafio para discutir questões básicas.

Disse à aluna que havia duas maneiras de lhe responder.

Em primeiro lugar, é importante para os filósofos distinguir o conhecimento da mera crença porque a filosofia consiste, afinal, na procura da verdade. Um filósofo que não se importa com o conhecimento é alguém que provavelmente também não se importa com a verdade, uma vez que a verdade é condição necessária para o conhecimento. Assim, um filósofo que se desinteressa pela verdade acaba por ser um filósofo que não se interessa pela filosofia (por estranho que pareça, há filósofos assim). Claro que esta resposta começa por ser insatisfatória, pois o que a aluna está precisamente a fazer é a pôr em causa (legitimamente, diga-se) o interesse da própria investigação filosófica. Uma resposta mais razoável, sem ter de invocar o valor intrínseco do conhecimento, é sublinhar que este torna a nossa vida mais rica, porque mais autêntica. Viver uma vida baseada em falsidades e enganos é viver uma vida diferente da que pensamos estar a viver; uma vida, de certo modo, fictícia.

Em segundo lugar, é importante evitar ter crenças falsas porque as crenças falsas são a coisa mais perigosa do mundo. Ao contrário do que muitas vezes se diz, a principal causa de morte do mundo não são as guerras nem a pobreza nem a fome nem os acidentes cardiovasculares nem os acidentes de viação. A principal causa de morte no mundo são precisamente as crenças falsas. Morrem a todo o momento pessoas porque têm a crença falsa de que estão de saúde, dispensando-se, por isso, de ir ao médico; porque têm a crença falsa de que determinados alimentos são saudáveis quando são, afinal, venenosos; porque acreditam que conduzir a alta velocidade os faz chegar mais cedo ao destino quando os impede, afinal, de lá chegar; porque crêem firme, mas erradamente, que a sua ideologia política, o seu país ou o seu credo religioso legitimam a eliminação dos seus inimigos. São tantas vezes crenças falsas que levam inocentes ao castigo, e até à pena de morte, deixando tantas vezes criminosos sem castigo. São sempre crenças falsas que estão na origem de tantas injustiças. Foram crenças falsas acerca da natureza supostamente inferior da mulher que causaram a sua submissão aos homens no passado (acreditava-se, por exemplo, que as mulheres, ao contrário dos homens, não tinham alma). Foi a crença falsa de que os negros não passavam de meros animais que justificou durante séculos a sua escravidão. Foi a conjugação de duas crenças falsas, nomeadamente a de que há raças superiores e a de que as pessoas das raças supostamente inferiores não têm os mesmo direitos que as pessoas de raças superiores, que levou os nazis a exterminar milhões de inocentes. Bem vistas as coisas, a maior parte dos males cometidos pelos seres humanos têm origem em crenças falsas. E muitos dos males do passado deixaram de se cometer porque fomos capazes de rever essas crenças. Não tivesse Édipo (lembram-se da tragédia de Sófocles?) crenças falsas acerca de Jocasta, sua mãe, e não teria certamente acabado por furar os seus próprios olhos.

Em suma, evitar ter crenças falsas torna-nos melhores e, portanto, torna também o mundo bastante melhor.