Será que velha e persistente distinção aristotélica entre as diferentes categorias do ser, mais precisamente entre substância e qualidade, passou definitivamente à história? A avaliar pelo que se ouve e se lê nos órgãos de comunicação social portugueses, parece que sim. De acordo com uma longa tradição iniciada por Aristóteles, as qualidades podem ser predicadas das substâncias ao passo que as substâncias não podem ser predicadas de seja o que for. É nessa distinção metafísica que assenta a distinção linguística entre substantivos (para as substâncias) e adjectivos (para as qualidades). Mas quem ainda não ouviu ou leu frases como as seguintes?
1. Os populares sairam à rua em protesto contra o encerramento do centro de saúde.
2. Os alunos precisam de adquirir os instrumentos para uma correcta interpretação do real.
3. Há pessoas que dedicam toda a sua vida à descoberta do belo.
4. O que a testemunha afirmou é verdade.
Será descabido ficar incomodado com tão desleixado uso da língua portuguesa? O que os exemplos anteriores mostram é uma confusão básica entre substantivos e adjectivos. Os termos "popular", "real", "belo", que são adjectivos (qualidades que as substâncias podem ter), funcionam aqui como substantivos, ao passo que "verdade" é um substantivo, mas usado na frase (4) como adjectivo. Quer dizer, substantivam-se os adjectivos e transformam-se substantivos em adjectivos, o que é uma boa maneira de lançar a confusão.
Claro que uma certa maleabilidade da língua é algo desejável e, nestes casos, poderia haver até boas razões para isso. Só que não se vê quais são, a não ser o desejo dos respectivos falantes mostrarem que são criativos, dando assim ares de sofisticação intelectual (pena é ser-se tão previsivelmente criativo). Imagine-se alguém que diga simplesmente:
1'. As pessoas sairam (a população saiu) à rua em protesto contra o encerramento do centro de saúde.
2. Os alunos precisam de adquirir os instrumentos para uma correcta interpretação da realidade.
3. Há pessoas que dedicam toda a sua vida à descoberta da beleza.
4. O que a testemunha afirmou é verdadeiro.
Qual a desvantagem de falar assim? As vantagens são óbvias.
Há quem diga que a língua portuguesa não é suficientemente refinada para as subtilezas do discurso filosófico. Mas os exemplos anteriores não são culpa da língua portuguesa, pois esta permite, como se viu, exprimir as ideias pretendidas de forma simples e rigorosa.
Há quem diga que a língua portuguesa não é suficientemente refinada para as subtilezas do discurso filosófico. Mas os exemplos anteriores não são culpa da língua portuguesa, pois esta permite, como se viu, exprimir as ideias pretendidas de forma simples e rigorosa.
Se uma língua serve para descrever com o maior rigor possível o que há e como é isso, então é no mínimo desejável que ela não seja metafisicamente confusa. Só que, a avaliar pelos exemplos anteriores, os falantes da língua portuguesa parecem estar-se nas tintas para a metafísica (e nem vale a pena falar da substituição do substantivo feminino "beleza" pelo pomposo e machista "belo").