Há dias tive o prazer de conhecer pessoalmente o matemático português Jorge Buescu, com quem já tinha contactado antes por email e cujos livros de divulgação científica li e continuo a reler sempre com entusiasmo. Ainda me lembro da descoberta que foi o seu primeiro livro, intitulado O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias (Gradiva).
Entre várias coisas de que falámos, tenho pena por não me ter ocorrido contar-lhe uma história real passada comigo na cidade do Funchal. É uma história em que só não acabei por sair esmurrado graças ao tal mistério do bilhete de identidade.
Jorge Buescu, no seu livro, começa assim:
Com grande probabilidade, o leitor terá já assistido, no meio de um jantar com amigos, à seguinte discussão. A certa altura alguém pronuncia-se sobre o algarismo suplementar que os bilhetes de identidade passaram a ter de há uns anos para cá mais ou menos nos seguintes termos: «O algarismo suplementar que se segue ao número do BI indica o número de pessoas em Portugal que têm um nome exactamente igual ao do portador do BI.»
Ora, como disse atrás, foi graças a este algarismo que, há talvez mais de dez anos (ainda não havia o novo cartão de cidadão electrónico), me livrei de uns murros quase certos.
Estava sozinho no Funchal, tinha acabado de anoitecer e procurei, perto do Mercado dos Lavradores, um restaurante que alguém me tinha recomendado vivamente para jantar. Era o minúsculo, mas excelente, Restaurante Jaquet. Já não me lembro muito bem, mas não haveria no restaurante mais de 4 mesas, muito próximas entre si, por onde o casal de irmãos cozinheiros ia passando e deixando nos pratos umas lapas, uns caramujos e outras iguarias que, ainda há não muito tempo, deviam estar no mar. Sentei-me na única mesa disponível.
Num dos meus flancos, em duas mesas juntas, estava um grupo muito animado. Dois ou três deles estavam já bem bebidos, tal era o ar festivo. Depois de, instintivamente, eu ter virado várias vezes a cabeça em direcção ao grupo, um homem forte e alto levantou-se da mesa e, discretamente cambaleante, aproximou-se de mim com ar ameaçador. Deu-se o seguinte diálogo.
ELE — Ouça lá, por que razão está sempre a virar-se e a olhar para onde não é chamado? Meta-se na sua vida, se não se quer aleijar.
EU — Calma, não leve a mal, mas faço-o por instinto...
ELE — Pare lá com isso, senão trato de lhe meter o instinto num sítio que eu cá sei. Não o volto a avisar — acrescentou, de dedo em riste.
EU — Desculpe, mas é inevitável, pois estão sempre a chamar pelo Aires e quando se fala no Aires eu penso sempre que é para mim. Não conheço muitos, além de mim...
ELE — O quê, você chama-se Aires?
EU — Sim!
ELE — Nome próprio ou de família?
EU — Nome próprio.
ELE — Dê cá uma abraço, homem! Só somos cinco no país — diz de braços abertos — e logo venho encontrar aqui um! Mais um copo para este Aires — pede ele, virando-se para os seus amigos. — Quem tem de pedir desculpa sou, eu, caro Aires!
EU — Não há problema. Mas como sabe que só somos cinco?
ELE — Veja — foi à mesa e trouxe a carteira de onde sacou o BI —, está aqui o número 5. Sabe o que quer dizer? Que somos cinco no país inteiro! Somos como os diamantes, homem, uma verdadeira raridade.
EU — Bom, tem a certeza? Olhe que eu próprio conheço mais três. Sendo assim, só me falta conhecer um...
ELE — Nada disso! Mas... espere aí, você é Aires com "i" ou com "y"?
EU — Com "i"!
ELE — Ora, aí está. Há um ou outro mais, mas são Ayres, com "y", entende?
EU — Então e o resto do nome? Não estará a pensar em pessoas com o nome completo exactamente igual?
ELE — Pá, isso agora não interessa para nada — atalhou, com uma animação própria de quem já tinha bebido uns copos. — No nosso caso a raridade vem só do nome "Aires". Mostre-me lá o seu BI!
EU — Ok, aqui tem.
ELE — Aires... tal e tal... Rebelo Almeida... pois, cá está, os outros são nomes banais, como carradas de gente por aí. Acredite, homem, o que interessa é o "Aires".
EU — Mas olhe que o meu BI tem o algarismo 7 e não, como o seu, um 5 — insisti eu, mas já com alguma pena de o decepcionar.
ELE — O quê? Ah, pois... bom, eu devo ter renovado o BI depois de si e... entretanto devem ter morrido dois, coitados. Vamos mas é comemorar, homem! O que bebe? Escolha à vontade que eu pago.
EU — Ah, não é preciso, eu tenho aqui o meu copo cheio.
ELE — Ok, vamos brindar. Já agora, de onde vem você? Eu venho da cidade de grandes artistas, que fazem arte da boa com porcelana: venho das Caldas. — Tirou um cartão da carteira e deu-mo. — Sou médico ortopedista.
EU — Bom, temos mais uma coisa em comum! Também sou de uma terra de artistas, só que os da minha não usavam porcelana, pois ainda nem sequer tinha sido inventada: sou de Foz Côa. Mas venho do Algarve.
ELE — Aqui tem aí o meu cartão. Quando for às Caldas, já sabe onde me encontrar. Até pode ir com uma perna partida, que eu trato-lhe dela com todo o gosto — gracejou. Mas não vá a pé — riram-se todos animadamente, já levantados e com os copos nas mãos.
Passado não muito tempo parti um braço a jogar futebol. Lembrei-me dele, mas nem pensar procurá-lo. Quem sabe se entretanto não leu o livro de Jorge Buescu e não acabou decepcionado com a verdadeira resposta para o mistério do bilhete de identidade.
Luminoso este diálogo !
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