Hilary Putnam em Lisboa, com a sua mulher Ruth Anna e os filósofos Charles Travis e João Branquinho
Morreu há dois dias (13 de Março de 2016) Hilary Putnam, um dos mais importantes filósofos dos últimos 50 anos. Putnam, nascido em Chicago em 1926, foi também um eminente matemático, disciplina que ensinou na Universidade de Princeton, e deu ainda importantes contributos para a teoria da computabilidade. As suas principais influências filosóficas encontram-se, segundo ele próprio (veja-se o seu autorretrato filosófico na entrada "Putnam" do excelente Dicionário de Filosofia, dirigido por Thomas Mautner, com tradução portuguesa nas Edições 70), em Quine, Reichenbach, Wittgenstein e Dewey, mas a quantidade de filósofos que continuam a ser influenciados por ele é extensa. Era também conhecido pelo seu activismo político e pelas suas ideias progressistas de esquerda, sobretudo quando ensinou na Universidade de Harvard, nos anos 60 e 70 do século passado, tendo-se manifestado contra a guerra do Vietname e a favor dos direitos cívicos nos EUA.
Como filósofo, além de se tornar famoso por mudar frequentemente de opinião, deixou um enorme legado que vai da filosofia da linguagem à filosofia da matemática, passando pela filosofia da mente, pela epistemologia, pela filosofia da ciência, pela metafísica e, mais recentemente, pela metafilosofia, tendo sido galardoado em 2011 com o Prémio Schock (uma espécie de primo Nobel da filosofia, atribuído de dois em dois anos).
Em filosofia da mente, foi dos primeiros a defender o funcionalismo. Teoria a que mais tarde se veio a opor por, como ele próprio escreveu, «conter demasiada ficção científica». Em filosofia da matemática defendeu, juntamente com Quine, e com base em pressupostos naturalistas, uma forma de realismo matemático. Defendeu ainda que os métodos matemáticos não consistem exclusivamente em demonstrações lógicas, havendo lugar para metodologias quase-empíricas. Em metafísica foi um defensor do realismo metafísico, que veio a abandonar em favor do «realismo interno», que também veio a abandonar. Contudo, sempre advogou uma espécie de realismo científico. Foi também um crítico da distinção facto-valor e em Razão, Verdade e História (1981) apresentou o célebre argumento do cérebro numa cuba, que muitos têm interpretado como uma refutação de argumentos cépticos inspirados na célebre hipótese cartesiana do génio maligno, mas que Putnam usa com um alcance diferente, mais precisamente para mostrar que o realismo metafísico é improcedente. Todavia, e mais uma vez, Putnam acabou mais tarde por abandonar esta ideia. Mais recentemente, Putnam começou a aproximar-se do pragmatismo de Dewey e interessou-se sobretudo por questões éticas e sociais, insistindo na «crítica do efeito nocivo das ideias positivistas sobre a ciência da economia».
Uma das áreas para que provavelmente Putnam mais contribuiu de forma duradoura foi a filosofia da linguagem, ao propor, juntamente com Kripke, a chamada teoria causal da referência, em oposição às tradicionais teorias descritivistas. Kripke começou por desenvolver esta teoria a propósito dos nomes próprios, mas Putnam alargou-a aos nomes comuns (ou termos para espécies naturais), defendendo o externismo (ou externalismo) semântico, de acordo com o qual os significados de termos para espécies naturais não estão no cérebro, antes dependem crucialmente das nossas interacções com o mundo exterior. Foi no âmbito dessa defesa que inventou a célebre experiência da Terra Gémea, que consiste resumidamente no seguinte:
Imagine-se um planeta distante,
espantosamente semelhante à Terra. Esse planeta é igual ao nosso mesmo nos mais
pequenos detalhes. De tal modo que lá, como cá, há pessoas que falam uma língua
chamada português e vivem num país chamado Portugal. Chamemos Terra
Gémea a esse planeta. A Terra Gémea é também constituída na sua maior parte
por uma substância incolor e inodora a que eles chamam «água» e que existe nos
seus oceanos, lagos e rios. É também aquilo que cai das nuvens quando chove e
que serve para as pessoas se lavarem, para cozinharem os alimentos e para
beberem quando têm sede. Há, porém, uma diferença (a única que existe entre os
dois planetas): aquilo a que eles chamam «água» tem uma estrutura química
complexa, mas que podemos abreviar com a fórmula XYZ, ao passo que a estrutura
química daquilo a que chamamos «água» na Terra é, como se sabe, H2O.
A pergunta que Putnam nos convida a fazer é a
seguinte: será que o termo «água» quando usado pelos falantes de português da
Terra Gémea tem o mesmo significado que a palavra «água» quando usada pelos
falantes de português na Terra? A resposta é negativa.
É certo que a intensão de «água» na Terra Gémea e a
intensão de «água» na Terra são as mesmas, pois os falantes associam ao termo
exactamente as mesmas descrições («o líquido incolor, inodoro, que existe nos
rios, que serve para beber, etc.»). E visto que as propriedades fenomenológicas
da água na Terra e da água na Terra Gémea são idênticas, também os habitantes
de ambos os planetas possuem os mesmos estados mentais acerca desse termo. Mas
«água» na Terra refere H2O, ao passo que na Terra Gémea refere XYZ.
Isto quer dizer que a tese de que às mesmas intensões correspondem as mesmas
extensões é falsa e que os estados psicológicos não são suficientes para fixar
a referência. Logo, os significados não estão na cabeça.
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