domingo, 9 de dezembro de 2018

Leituras


Em tempos, creio que pouco depois da publicação do meu livro (e do Desidério) Janelas Para a Filosofia, foi-me feita uma pequena entrevista via email sobre os meus hábitos de leitura, para a Wookacontece, mais precisamente para a secção intitulada Caderneta de Leitor, que já nem sequer existe. Creio que a entrevista nunca chegou a ser publicada (pelo menos não me dei conta disso), não sei bem porquê. O mais provável é terem concluído que o seu público não teria grande interesse nas minhas opiniões sobre o assunto, o que não deixa de ser compreensível. 

Entretanto tropecei nela ao procurar outras coisas no disco externo onde repousam documentos antigos. Deixo-a aqui, aproveitando para retocar ligeiramente uma ou duas frases.


- Wook lhe liam em criança?
AIRES ALMEIDA (AA): Em criança só recordo de me lerem a Bíblia, mais precisamente os evangelhos.
  
- Wook leu pela primeira vez?
AA: O que li pela primeira vez foram os livros escolares. Fora do contexto escolar, alguns amigos mais velhos emprestavam-me os livrinhos da colecção 6 Balas, publicados pela Agência Portuguesa de Revistas e encomendados pelos Correios. O autor de boa parte deles era o misterioso Ross Pym.
  
- Wook está na sua mesa-de-cabeceira?
AA: The Most Good You Can Do, o mais recente livro de Peter Singer, acabado de publicar. 
  
- Wook leu hoje?
AA: Li ontem alguns capítulos de Mirror, Mirror: The Uses and Abuses of Self-Love, de Simon Blackburn. Hoje ainda não li nada que mereça ser referido.

- Wook mal pode esperar para ler?
AA: Art and Pornography, o conjunto de ensaios de destacados filósofos da arte, organizado por Hans Maes e Jerrold Levinson. O livro já tem cerca de um ano, mas é muito caro e estou a aguardar pela publicação em capa mole, que fica a menos de metade do preço.
  
- Wook tem vergonha de nunca ter lido?
AA: Há várias obras importantes de filosofia que estudei aos bocados mas nunca li, muito menos  de mente limpa. Mais do que vergonha, tenho pena.
  
- Wook leu e não gostou?
AA: Foram tantas as coisas que não gostei de ler que não consigo destacar uma. Mas algumas das coisas que li e de que não gostei não foram tempo perdido.  

- Wook lhe falta ler?
AA: Demasiados livros. Mas tomei a decisão de ler em breve as Metamorfoses, de Ovídio, de fio a pavio.

- Wook gostaria de ler sobre si?
AA: Ler algo sobre mim talvez seja um exagero, mas que tentei sempre pensar por mim próprio, ainda que com a ajuda de outros, que incentivei outros a pensar por si próprios e que fui honesto no que escrevi.

-Wook recomenda aos leitores?
AA: Uma Pequena História do Mundo, de Ernst Gombrich; Ética com Razões, de Pedro Galvão; O Medo do Conhecimento, de Paul Boghossian; e Lolita, de Vladimir Nabokov.


domingo, 4 de novembro de 2018

Vinte questões básicas, por Simon Blackburn

Acabou de ser publicado na colecção Filosofia Aberta (Gradiva) o livro As Grandes Questões da Filosofia do filósofo Simon Blackburn, já bem conhecido do leitor português. É um livro para o leitor comum e não apenas para filósofos encartados, no qual Blackburn apresenta as suas próprias respostas a vinte questões filosóficas centrais. Deixo abaixo um pequeno excerto sobre a questão "Será tudo relativo?"

A tradução é de Daniela Moura Soares e de Desidério Murcho.


Suponha-se que expresso uma opinião honesta e sincera acerca de alguma coisa, da matemática à ética e à estética. O comentário paralisante «Isso é apenas a tua opinião» não dispara só para o lado: acima de tudo, é desumanizante. Sugere que as minhas palavras não devem ser levadas a sério, devendo ser encaradas apenas como sintomas, mais ou menos como sinais de uma doença. Levar as minhas palavras a sério significaria incorporá-las no nosso próprio processo de tomar decisões, seja considerando‑as úteis, seja considerando que precisavam de refutação. Tornar-se-iam um factor na construção do nosso próprio entendimento acerca da questão de saber se, digamos, a pena de morte é permissível ou não. Mas se o leitor olhar para mim e vir apenas os sintomas de uma ideologia liberal frouxa, ou uma ideologia conservadora áspera e vingativa, então estamos simplesmente a pôr as minhas palavras de lado, no que respeita à questão em causa. E isso é desrespeitoso. 
Nas últimas décadas do último século houve «guerras da ciência» virulentas entre cientistas comuns e histo­riadores e sociólogos «pós-modernistas» da ciência que alegadamente desmascararam as coisas. O cientista diz, por exemplo, que a Lua está a um quarto de um milhão de milhas da Terra. O historiador ou o sociólogo ouve, mas depois embarca numa história acerca de como essa conversa é a expressão de uma ideologia ou de uma pers­pectiva que surgiu por razões sociológicas ou históricas identificáveis: apoiar a classe mercantil, ou promover o colonialismo, ou subjugar as mulheres, ou seja o que for. Para o cientista isto é ultrajante, visto que do seu ponto de vista a questão é a distância a que está a Lua, e só depois, e lateralmente, estará interessado na questão histórica de como as pessoas ficaram convencidas disso. A sua história de como isso aconteceu começa com o facto de ser uma crença verdadeira: passou a existir porque realmente nos diz qual é a distância a que está a Lua, e algumas pessoas muito espertas foram suficientemente inteligentes para começar a entendê-lo e encontraram modos de representar a distância em termos mensuráveis. 
Suponha-se que pretendo explicar por que razão al­guém acredita que há queijo no frigorífico. Poderão ser necessários dois tipos muitos diferentes de explicação. Há uma explicação aborrecida para quem acredita que há queijo no frigorífico quando, e somente quando, há lá queijo ou algo parecido com queijo. Esta explicação segue a linha de «Eles olharam e viram». Há uma expli­cação mais oblíqua para as pessoas que acreditam que há queijo no frigorífico quando não há lá qualquer queijo, nem coisa alguma que pudesse facilmente ser confundida com queijo. Isto pode ser mais ou menos preocupante, dependendo de quão explicável for o equívoco: má ilu­minação, algo que se parecia vagamente com queijo, ou uma completa alucinação. Mas qualquer homem de bata branca que resolutamente coloca de lado a questão de saber o que há no frigorífico, e depois procura explicar por que razão acredito que há lá queijo, está a tratar-me como um possível paciente ou um lunático, desde o início. É por isso que está a desumanizar-me.
pp. 143-144

sábado, 15 de setembro de 2018

As melhores 15 sinfonias?

Ao pôr em ordem os CDs que tinha aqui desarrumados, reparei nas várias gravações das sinfonias e ocorreu-me destacar as minhas preferidas. Claro que há muitas sinfonias que não conheço ou de que não tenho qualquer gravação em disco. Penso, contudo, que tenho uma razoável colecção, incluindo diferentes gravações e intérpretes das principais obras.

A foto abaixo mostra as que, na minha atrevida opinião de leigo, são as 15 melhores sinfonias. É um gosto pessoal, claro, e como quase todos os gostos, eles dificilmente surgem do mero acaso, sendo antes cultivados e moldados pelo que se vai ouvindo, lendo e conversando sobre o assunto.

Algumas pessoas mais entendidas poderão achar estranho esta lista não incluir qualquer sinfonia de Haydn, por exemplo, que compôs mais de uma centena. Tenho de confessar que, ao contrário dos seus maravilhosos quartetos de cordas, não sou grande apreciador das sinfonias de Haydn, que me parecem quase todas iguais e algo aborrecidas. 

Em contrapartida, há sinfonias de outros compositores de que também gosto muito e que não couberam aqui. Destaco, por exemplo, a N.º 9 de Dvorak, a N.º 7 de Sibelius, a N.º 6 de Tchaikovsky ou a belíssima N.º 2 de Glazunov, para dar apenas alguns exemplos.

As quinze preferidas são, enquanto não mudar de opinião, as seguintes (por ordem aproximadamente cronológica).


1. Mozart, Sinfonia N.º 41 (Júpiter). O disco da foto inclui as duas últimas sinfonias do génio de Salzburgo, a N.º 40 e a N.º 41, ambas dirigidas por Georg Solti (DECCA). Também gosto muito da N.º 40, mas a grandiosidade da Júpiter parece trazer algo de novo, apontando já para o romantismo.

2. Beethoven, Sinfonia N.º 3 (Heróica). Por falar em romantismo, é nesta sinfonia que o romantismo musical começa por se afirmar claramente. Nesta gravação da foto, a Cleveland Orchestra é dirigida por George Szell (Sony).

3. Beethoven, Sinfonia N.º 9 (Coral). Claro que esta obra impressionante não poderia faltar, numa gravação histórica de Karajan dirigindo a Filarmónica de Berlim (DG).

4. Berlioz, Sinfonia Fantástica. Também esta é uma obra única, aqui numa gravação de referência, com Colin Davis à frente do Concertgebouw de Amsterdão (Philips). Tive o enorme prazer de ver ao vivo Colin Davis, já na fase final da sua carreira, a interpretar esta sinfonia. Foi marcante.

5. Bruckner, Sinfonia N.º 3, na interpretação do legendário Celibidache à frente da Filarmónica de Munique (EMI). Ainda bem que, após a morte do maestro, a família não manteve a sua decisão de não publicar as interpretações que tinha gravado ao vivo. A interpretação de Celibidache destaca-se de quase todas as outras, sobretudo por optar por um tempo claramente mais lento.

6. Bruckner, Sinfonia N.º 4 (Romântica). Não gosto menos desta sinfonia de Bruckner do que da anterior. Neste caso, a gravação que mais aprecio é a de Otto Klemperer com a Orquestra Sinfónica da Rádio da Baviera (EMI).

7. Bruckner, Sinfonia N.º 8. Não podia deixar de incluir esta gigantesca sinfonia de Bruckner, numa gravação histórica (2 CD) de Karajan com a Filarmónica de Berlim (DG). É preciso ter a disposição certa para os mais de oitenta minutos que nos esperam, ainda por cima quando o característico estilo de Bruckner, que parece incluir uma espécie de colagem de mini-andamentos dentro do mesmo andamento — bem, isto é apenas um leigo a falar — exige algum fôlego auditivo. Mas, mesmo os ouvintes mais renitentes serão incapazes de resistir ao incomparável adágio do terceiro andamento. Quase nos faz levitar.

8. Brahms, Sinfonia N.º 4. Todas as quatro sinfonias de Brahms são belíssimas, mas a última consegue destacar-se. A contenção e equilíbrio das sinfonias de Brahms fazem um bom contraste com a opulência de Bruckner e outros compositores românticos. Proponho a gravação da Filarmónica de Viena, dirigida por Carlos Kleiber (DG).

9. Mahler, Sinfonia N.º 2 (Ressurreição). Eis outra sinfonia com mais de oitenta minutos, pelo menos nesta interpretação de Simon Rattle, quando ainda dirigia a Orquestra Sinfónica da Cidade de Birmingham e com o Coro da mesma cidade, contando também com o soprano Arleen Augér e o mezzo-soprano Janet Baker (EMI). Que eu conheça, poucas sinfonias começam de uma forma tão magnética. Esta é uma gravação de referência. Tive a felicidade de ver ao vivo a mesma obra dirigida por Claudio Abbado, com perto de duzentos intérpretes em palco, e também foi memorável.

10. Mahler, Sinfonia N.º 5. Não, não é apenas por causa do famosíssimo adagietto do terceiro andamento (celebrizado também pelo filme de Visconti Morte em Veneza). O meu andamento preferido é, de resto, a envolvente marcha fúnebre do primeiro andamento. A gravação que aqui proponho é a de John Barbirolli à frente da New Philharmonia Orchestra (EMI).

11. Janácek, Sinfonietta. É o caso que me deixa mais dúvidas quanto à inclusão nesta lista. Mas talvez se justifique por ser bastante diferente das sinfonias anteriores, destacando-se o seu optimismo, a começar pela fanfarra do primeiro andamento, em que as cordas não participam. A gravação cuja capa se vê na foto é dirigida Rafael Kubelik, à frente da Orquestra Sinfónica da Radio da Baviera, uma gravação aclamada pela sua qualidade (DG).

12. Stravinsky, Sinfonia em Dó. Foi no período neoclássico que Stravinsky compôs três das suas quatro sinfonias. A Sinfonia em Dó tem dois andamentos compostos quando ainda vivia na Europa e outros dois compostos quando já estava nos Estados Unidos. O disco aqui proposto inclui dois CDs com as quatro sinfonias de Stravinsky, dirigidas pelo próprio compositor e também interessantes gravações de conversas e de ensaios dele com a Columbia Symponhy Orchestra. Na Sinfonia em Dó Stravinsky dirige a CBC Symphony Orchestra (Sony). Além desta sinfonia, destaco ainda, no mesmo disco, a belíssima Sinfonia de Salmos.

13. Chostakovich, Sinfonia N.º 5. Sem dúvida, uma das minhas sinfonias preferidas, a quinta de Chostakovich está aparentemente repleta de ambiguidades desconcertantes: ora parece a voz de uma certa amargura ora de um incontido entusiasmo, ora hesitante ora afirmativa, ora contemplativa e melancólica ora irrequieta, exuberante e até festiva, tudo isso urdido de forma brilhante. Consta que, nesta obra, Chostakovich tinha urgentemente de dar provas de fidelidade a um ideário estético oficial e de, assim, ser também forçado a camuflar as suas próprias convicções musicais. O resultado desta condição artística algo esquizofrénica foi uma verdadeira obra-prima. A gravação aqui proposta é dirigida por Leonard Bernstein à frente da Filarmónica de Nova Iorque (Sony).

14. Messiaen, Turangalîla-Symphonie. Entre os vários aspectos interessantes desta sinfonia em 10 andamentos destaco o uso inovador das ondas Martenot, o instrumento electrónico que mais tarde viria também a ser usado em várias canções do album Kid A, dos Radiohead, assumidamente influenciados pelo compositor francês. Destaco também o belíssimo, envolvente e amoroso sexto andamento, intitulado precisamente Jardin du sommeil d'amour. No disco aqui proposto a Royal Concertgebouw de Amsterdão é dirigida por Riccardo Chailly (DECCA).

15. Górecki, Sinfonia N.º 3. Termino com aquela que é, sem dúvida, a mais popular sinfonia composta no último meio-século, um verdadeiro best seller musical em vários países. Depois de uma fase mais vanguardista, como quase todos os compositores da sua geração, o compositor polaco envereda nesta sinfonia em três andamentos pela composição tonal. O resultado é uma obra simultaneamente intensa e apaziguadora. O segundo andamento, cantado neste disco pelo soprano Dawn Upshaw, é talvez a melhor ilustração do nome por que esta sinfonia também é conhecida: Sinfonia das Canções Tristes. Aqui David Zinman dirige a London Sinfonietta (Elektra Nonesuch).

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Agosto azul... com tons de amarelo torrado

Aproveitei este final do mês de Agosto para, em boa companhia, dar mais um volta pelo quintal aqui ao pé: a ponta de João d'Arens, que se ergue entre a Praia do Alemão e a Prainha.


Por várias vezes pensei que nem a mais completa descrição daquele lugar seria capaz de captar tão caprichosa beleza e que Oscar Wilde devia estar equivocado ao escrever que a natureza imita a literatura em vez de a literatura imitar a natureza.

Mas, pensando melhor, talvez não seja mesmo fácil distinguir exactamente o que ali era pura natureza do que seria efeito literário. Talvez o ambiente descrito em Agosto Azul estivesse discretamente a orientar o meu olhar e fixar a minha atenção.

Fiquei intrigado e, ao regressar a casa, fui reler Agosto Azul, originalmente publicado no ano de 1904, por Teixeira Gomes, que viria a ser presidente da república de Portugal. Deixo aqui um excerto do livro, cuja acção — com o inevitável picante do escritor algarvio — se passa precisamente no mesmo lugar. E junto algumas fotos tiradas durante a caminhada.

   
    — Se houvesse aqui perto alguma praia com sombra, íamos para lá esperar o pôr do Sol... — digo eu já insofrido.
    — Passados Os Três Irmãos de Alvor — são três leixões agudos que avistamos cerce — na Ponta de João de Ourém há umas praiazinhas, mas não valem nada...; só na baixa-mar é que ficam a descoberto...
     — Vamos lá já...
    — A Ponta de João de Ourém é um montão de rochas a crescer pelo mar dentro e visível em toda a linha da costa desde a ponta do Altar até à ponta da Piedade.
   Rochedos amontoados brutamente dando um perfil tumultuoso e áspero, com luzernas de céu e mar a resplandecer pelos vãos dos penedos sobrepostos.
    Ao pé, esses penedos separam-se em labirinto de leixões semeados no mar, a esmo, levando por sinuosos canais sombreados aos pequenos refúgios da costa. As rochas levantam-se desigualmente: algumas afloram ou assomam os tenebrosos cabeços vincados por paralelas de gumes, à mais leve ondulação do mar; outros abrem-se em arcos franjados de algas verdes ou aguçam-se em pontas carcomidas; finalmente, dois ou três muito altos e cilíndricos erguem-se da água transparente com a solidez e o arrojo de torres fortificadas, enegrecidas e húmidas até onde lhes bate a água, mas os remates, brunidos pelo vento e amarelecidos ao sol, tão secos e lisos como se fosse marfim.
   O bote acolhe-se ao umbroso remanso de uma gruta baixa, donde nós alcançamos terra saltando, descalços, ao lume de água sobre cachopos escorregadios.
   Achamos praia de areia seca mas quase toda no perímetro dum fojo imenso cujo incessante esboroamento tornaria a nossa demora, ali, arriscada.
    Resolvemos passar o resto da tarde dentro de água. [...]
    Ando nisto duas horas ou mais quando enxergo, em cima de uma larga pedra rasa e rente com o mar, um pescador de cana que se esforça inutilmente por tirar a linha da água. O corpo dobra-se-lhe em arco perfeito, tal é a violência com que forceja por soltar a linha, e cai, assim dobrado, de costas, quando subitamente o peixe que a prendia salta da água e lhe vem bater no peito. É um grandíssimo congro a descrever arabescos prateados por entre os membros do pescador que o tenta sujeitar com o peso do corpo. Mas o peixe viscoso coleia, enfurecido, resvalando pela carne nua e ambos ficam a escabujar sobre a rocha limosa.
    Com o meu auxílio doma-se o mostro e é então que eu reconheço a custo. na elegância da sua nudez de adolescente, o pescador, um garoto, grande traquinas, a quem por pedido dos pais eu diligenciaria debalde meter na escola de marinheiros. 
    Ia-me ele contando as peripécias da sua pesca, mas de repente pára e aponta para uma furna distante, visível pelas frinchas que a perspectiva das rochas abre ao acaso: dentro estão duas mulheres sentadas, dobrando os xales com jeito de quem se vai despir.
    O rapaz não as conhece e observa:
    — Devem ser do campo e pensam que ninguém as vê...; a apostar que se vão despir e que a gente as vê nuzinhas...
    — Deixa-as lá...
   Despem-se com efeito, entre risos que mal ouvimos. Ambas são trigueiras, conquanto mostrem nos braços uma alvura que os rostos não faziam suspeitar. Diferem consideravelmente na idade. A uma delas alteia-se a camisa no peito com exuberâncias de amojo e na outra cai em pregas pelo grácil corpinho abaixo. Riem; riem muito, a porfiar qual delas há-de primeiro despir a camisa. É a mais nova que se decide: mostra no torneado tronco dois meios limões agudos onde a outra põe logo os lábios; depois esta abre também a camisa, soltando os túmidos seios maduros que a outra apalpa. Recrudescem os risos...
   Mas esta cena dura apenas momentos porque elas logo enfiam as saias brancas pela cabeça, perscrutando medrosas com a vista, em redor, e, erguendo-se, desaparecem por detrás das rochas.
    Reparo no pescador; vejo-o de braços estendidos e as mãos abertas na atitude de quem pede silêncio, os olhos chamejantes e o sexo arrebitado: é o fauno púbere prestes a atirar-se à ninfa incauta que ele espreitou e quer violar...
  Volto adonde está o meu companheiro, a quem encontro ainda na mesma postura, chapinhando o tronco já desafogado e branco de cré.
     Embarcamos.
   O calor abateu com o reclinar do Sol que desaparece precisamente quando aproamos à barra.
    Como se extingue o braseiro no vasto disco de bronze amarelo assim se afogou o Sol em cinzas ao resvalar no polido oiro pálido do céu.
    
O passeio começa, ainda bem perto da Praia do Alemão

A ponta do Altar lá ao fundo, a nascente, depois da foz do Arade

Uma das várias furnas

Praia do Alemão e Praia do Vau à vista

Frota de pedra estacionada




Amarelo torrado


A caminho da Prainha

Fim 

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Os 100 melhores de sempre?

Um amigo que se considera melómano dizia-me há tempos não ter paciência para a chamada música rock e seus derivados. Parecia-lhe quase toda igual e quase toda primária. Reconheceu haver algumas excepções, como sempre existem, mas que quase tudo o resto que ouvia por aí acidentalmente era pouco mais do que ruído desinteressante.

Para começar, concordei que a maior parte da música que se ouve por aí é desinteressante. Mas também acrescentei que isso não é uma especialidade da música rock. Provavelmente, a maior parte de tudo o que se cria, seja em que área e de que género for, é pouco estimulante: a maior parte dos filmes, das peças de teatro, das esculturas, das pinturas, dos livros, dos concertos são para esquecer. E isso não me parece trágico, por duas razões principais: a primeira é que decorre da própria natureza da criação produzirem-se muitas obras falhadas e sofríveis antes de se conseguir algo notável e duradouro; a segunda é que a quantidade de obras criadas é tanta, que mesmo uma pequena percentagem de casos bem-sucedidos é mais do que suficiente para não termos razões de queixa.  

Também concordo que a maior parte da música rock (mas não só a música rock) se imita a si mesma. Mas já não concordo que não haja diversidade em quantidade suficiente. E também não concordo que ser primária, seja lá isso o que for, tenha de ser um defeito. Não vejo por que razão não poderá haver boa música primária, secundária ou terciária. Há boa música e má música de todas as maneiras e feitios, seja ela simples ou complexa, enérgica ou contemplativa, exigente ou acessível. Por isso, também não consigo descortinar uma boa justificação para a ideia de que apenas certos géneros musicais são dignos de atenção, embora admita que certos géneros musicais mais facilmente esgotam os seus recursos criativos. Seja como for, o que torna a música boa ou má não é certamente o seu género musical.

O meu amigo acabou por me dar o benefício da dúvida e pediu-me para lhe indicar uma boa variedade de discos que o pudessem convencer a ouvir música rock, sem ter de apanhar com todo o entulho musical que por aí circula. Para satisfazer o seu pedido, decidi ir fazendo aos poucos uma lista dos que penso serem os 100 melhores discos da história do rock (nalguns casos são simplesmente os mais representativos de um dado sub-género), procurando dar uma ideia de toda a diversidade de estilos, tendências e influências que se pode encontrar (folk, country, blues, jazz, soul, pop, electrónico, progressivo, alternativo, punk, hard, kraut, etc.). Claro que se voltasse a fazer a lista daqui a uns dias (acabei de fazer agora mais duas alterações), ela já seria diferente, até porque há muitos outros discos excelentes que não couberam nesta. Mas diria que em 90% dos casos não haveria alteração. 

Uma curiosidade: de acordo com esta lista, que exprime a minha avaliação pessoal, os três melhores anos foram os de 1967, 1977 e 1980. Admitem-se, e até se incentivam, discordâncias.

1965
            1.    Bob Dylan, Highway 61 Revisited
            2.    The Beatles, Rubber Soul
            3.    Otis Redding, Otis Blue

1966

            4.    The Beatles, Revolver
        5.    The Beach Boys, Pet Sounds

1967

            6.    The Beatles, Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band
            7.    The Velvet Underground and Nico
            8.    The Doors, The Doors
            9.    Leonard Cohen, Songs of Leonard Cohen
           10.  Jimi Hendrix Experience, Are You Experienced?
           11.  The Kinks, Something Else by the Kinks

1968
           12. Van Morrison, Astral Weeks

1969

            13. Fairport Convention, Liege and Lief
            14. The Beatles, Abbey Road
            15. King Crimson, In The Court of the Crimson King
            16. Led Zeppelin, II 
            17. The Flying Burrito Brothers, The Gilded Palace of Sin

1970

            18. Simon and Garfunkel, Bridge Over Troubled Water
            19. Pink Floyd, Atom Heart Mother
            20. Van Der Graaf Generator, H To He Who Am The Only One
            21. Derek & the Dominos, Layla and Other Assorted Love Songs

1971

               22. Joni Mitchell, Blue 
            23. The Rolling Stones, Sticky Fingers
            24. The Who, Who’s Next
            25. David Bowie, Hunky Dory

1972

              26. Can, Ege Bamyasi
           27. David Bowie, The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The    
                 Spiders from Mars
           28. Deep Purple, Machine Head
           29. Yes, Fragile
           30. Genesis, Foxtrot
           31. Jethro Tull, Thick as a Brick
           32Nick Drake, Pink Moon
           33. Lou Reed, Transformer

1973

              34. Frank Zappa, Over-Nite Sensation
           35. Stevie Wonder, Innervisions
           36. Gentle Giant, In a Glass House
           37. Genesis, Selling England by the Pound
           38. Pink Floyd, The Dark Side of the Moon

1974 
           39. Kraftwerk, Autobahn
           40. Tangerine Dream, Phaedra
           41. Electric Light Orchestra, Eldorado

1975

              42. Roxy Music, Siren
           43. Brian Eno, Another Green World
           44. Bruce Springsteen, Born To Run
           45. Patti Smith, Horses

1976
           46. Tom Waits, Small Change

1977

              47. Television, Marquee Moon
           48. Talking Heads, 77
           49. Brian Eno, Before and After Science
           50. Kraftwerk, Trans Europe Express
           51. Sex Pistols, Never Mind the Bollocks
           52. The Clash, The Clash
           53. Ian Dury and The Blockheads, New Boots and Painties

1978
           54. Talking Heads, More Songs About Buildings and Food
           55. Television, Adventure
           56. Patti Smith, Easter
       57. Annette Peacock, X-Dreams
           58.  Blondie, Paralel Lines
           59. The Police, Outlandos D’Amour

1979

                60. The Clash, London Calling
           61. Elvis Costello, Armed Forces
           62. Joe Jackson, Look Sharp!
           63. Nina Hagen Band, Nina Hagen Band
           64. The Durutti Column, The Return of the Durutti Column

1980

                65. The Feelies, Crazy Rythms
           66. Joy Division, Closer
           67. Young Marble Giants, Colossal Youth
           68. Talking Heads, Remain in Light

1981
           69. Romeo Void, It´s a Condition

1982

              70. John Cale, Music For a New Society
           71. Laurie Anderson, Big Science

1984 
72. Echo and The Bunnymen, Ocean Rain
73. Cocteau Twins, Treasure
74. Lloyd Cole and The Commotions, Rattlesnakes

1985

75. Tom Waits, Rain Dogs
76. Prefab Sprout, Steve McQueen
77. The Style Council, Our Favourite Shop
78. The Jesus and Mary Chain, Psychocandy
79. Einsturzende Neubauten, ½ Mensch
80. The Cure, The Head on the Door

1986

              81. David Sylvian, Gone to Earth
           82. The Smiths, The Queen is Dead
   
1987
           83. The Smiths, Strangeways Here We Come

1988
           84. Sonic Youth, Daydream Nation

1989

            85. The Blue Nile, Hats
            86. The Stone Roses, The Stone Roses
            87.  The Young Gods, L’Eau Rouge
            88. Pixies, Doolittle

1992
            89. Rage Against The Machine, Rage Against The Machine


1993
     90. Bjork, Debut

1994
            91. Jeff Buckley, Grace

1995
            92. Blur, The Great Escape

1996
      93. The Divine ComedyCasanova

1997 
            94. Radiohead, OK Computer
            95. Nick Cave and The Bad Seeds, The Boatman's Call

2001 
      96. The Strokes, Is This It

2003
97. Opeth, Damnation

2010
98. Field Music, Measure

2011 
99. PJ Harvey, Let England Shake


2023 
100. Daft Punk, Random Access Memories (10th Anniversary Edition)