terça-feira, 30 de julho de 2024

Searle sobre o livre-arbítrio e o funcionamento do cérebro

Há uns anos enviei algumas perguntas a Searle a propósito do seu último livro Da Realidade Física à Realidade Humana. As perguntas que lhe fiz e as suas respostas foram publicadas num folheto de divulgação da editora Gradiva, que publicou também o livro na colecção Filosofia Aberta, então dirigida por mim. 

Acabei de me cruzar com as respostas enviadas por Searle: uma sobre o tema do livre-arbítrio, outra sobre a ideia de natureza humana e outra sobre o modelo computacional da mente, o qual ele rejeita. Ao ler a resposta do filósofo à minha última pergunta pensei no que há dias postei sobre inteligência artificial e as tribos da aprendizagem automática. 

No seu livro Da Realidade Física à Realida­de Humana sugere que precisamos de alcançar um conhecimento acerca do funcionamento do cérebro para com­preendermos melhor a resposta correc­ta para o problema do livre‑arbítrio. Quer dizer que o problema do livre‑arbítrio é fundamentalmente um pro­blema empírico (ou científico) e não tanto filosófico? 

Se tivéssemos um conhecimento científi­co completo do funcionamento do cérebro no âmbito da tomada de decisões pelos se­res humanos e no comportamento, isso resol­veria em boa parte, ainda que não totalmente, o problema do livre‑arbítrio. Ainda permane­ceriam alguns problemas puramente filosófi­cos, mesmo que compreendêssemos perfeitamen­te o funcionamento do cérebro. Um aspecto importante da questão do livre‑arbítrio é a relação do funcionamento do cérebro com a to­mada de decisão consciente. A questão da responsabilidade moral é um problema que permanece mesmo depois de termos resolvi­do os problemas neurobiológicos. 

Em resposta a uma pergun­ta que lhe foi feita, diz que se tornou an­tiquado falar de uma natureza humana em filosofia, mas que algumas mudanças em curso no mundo o levam, no entanto, a pensar que preci­samos de uma concepção mais rica de direitos humanos, ligada à noção de humanidade. Pode dar um ou dois exemplos das mudanças aludidas? E em que sentido a concepção de natureza humana poderia ser mais rica? 

Tornou‑se antiquado falar sobre «natureza humana», mas há várias questões filosófi­cas importantes que não podem ser respondi­das independentemente da questão da nature­za humana. Para dar um exemplo relevante, penso que não se pode explicar a importân­cia dos direitos humanos sem uma concepção acerca de que tipo de seres somos. O nosso direito à liberdade de expressão, por exem­plo, depende crucialmente do facto de ser­mos animais que praticam actos de fala e o poder da fala e do pensamento é essencial para o nosso florescimento como seres hu­manos. Tais direitos humanos devem derivar da natureza humana. 

Temos agora o poder de nos movermos pelo mundo de uma maneira que não existia há 2000 anos. Penso que podemos pensar de maneira significativa sobre o direito de nos movermos pela Terra como um direi­to humano, e isso ocorre porque temos uma concepção mais rica da natureza humana, não somos apenas animais que realizam ac­tos de fala, somos animais móveis.

O que explica que uma ideia, em seu entender completamente errada, como a de que a mente é uma espécie de super­computador (o modelo computacional da mente), tenha parecido tão atraente a muitas mentes ilustres? 

As pessoas tentaram sempre entender o funcionamento do cérebro em termos da mais recente tecnologia científica. No século XIX, o cérebro era considerado um sistema de telégrafo. Na minha infância, era um telefone com sistema de barras cruzadas. Actualmente, a mais recente tecnologia é o computador, e a tentação de pensar que o cé­rebro deve ser um tipo de computador digital é irresistível. É uma visão obviamente falsa e facilmente refutada. A computação é definida formal ou sintacticamente como a manipulação de símbolos. Por outro lado, as mentes humanas têm mais do que uma sintaxe, possuem uma semântica, ou conteúdo mental. A refutação da teoria da computação da mente ocorre em 3 etapas: 1) A computação é sintáctica. 2) As mentes têm semântica. 3) A sintaxe por si só é insuficiente para a semântica. (Mostrei isso com o chamado «argumento da sala chinesa».) Conclusão: os programas de computador não são suficientes para as mentes.


Nota: depois de publicar aqui as repostas verifiquei que a tradução poderia ser melhorada, o que acabei por fazer entretanto.

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Entrar sorrateiramente na filosofia pelas portas traseiras

Foi assim que recomendei o livro A Bebedeira de Kant, do David Erlich, que parece estar a ser bem acolhido pelo público.

Neste interessante livro, Erlich convida o leitor a entrar sorrateiramente nas muitas moradas da filosofia pelas suas portas traseiras. Isso não é um defeito, mas antes um mérito bastante raro, na medida em que até o leitor mais tímido e reverente conseguirá entrar sem temor, dando-lhe a oportunidade de avançar sem receios e de, quase sem se dar conta, espreitar para os salões mais luminosos do Olimpo filosófico. Trata-se de um livro que, apesar de acenar ao leitor comum, consegue a proeza de evitar a vulgaridade filosófica. Escrever de forma clara e convidativa sobre ideias complexas não é para todos. Erlich consegue fazê-lo pondo o sorriso matreiro no lugar da gravitas académica.

É bom ver surgir novos (e jovens) autores de filosofia no panorama editorial português. E não, não estava a exagerar no elogio.


terça-feira, 23 de julho de 2024

Inteligência artificial: aprender sem pensar

O investigador português Pedro Domingos, professor da Universidade de Washington (Seattle), é um dos líderes mundiais em aprendizagem automática (machine learning), uma das áreas de investigação mais importantes da Inteligência Artificial. A sua classificação dos principais modelos de aprendizagem automática tornou-se uma referência para quem precisa de um bom mapa na diversidade de algoritmos-mestres que têm vindo a ser propostos. Eis uma compilação feita por mim, com base no seu interessante, e muito informativo, livro A Revolução do Algoritmo Mestre (Manuscrito Editora).


Vale também muito a pena ouvir a estimulante conversa com o José Maria Pimentel. Trata-se do episódio 149 do seu podcast 45 Graus.



sábado, 20 de julho de 2024

Os valores são arbitrários?

Quando os meus alunos me dizem que qualquer lista de virtudes é arbitrária, peço-lhes para se imaginarem como pais dotados da capacidade singular que lhes permite investir magicamente os seus filhos com o conjunto de traços de personalidade que quiserem. Quando eles se entregam a este exercício empenhados no objectivo de que os seus filhos venham a ser bem-sucedidos e que façam bem as coisas em circunstâncias imprevisíveis, invariavelmente chegam a uma lista de traços de personalidade a maioria dos quais Aristóteles certamente reconheceria. E estes resultados levam-nos, então, a reconsiderar criticamente a noção de que qualquer lista de virtudes é puramente arbitrária ou subjectiva. A experiência mental ficcional funciona argumentativamente, ‘entimemeticamente’, para abanar o seu cepticismo ao mobilizar e reorganizar o conhecimento que já possuem.

                                                                                                                                   Noëll Carroll

quinta-feira, 18 de julho de 2024

A confiança da incompetência

Numa passagem do seu ensaio «O triunfo da estupidez», de 1933, Russell afirmou algo que tem sido bastante citado: 

A causa principal da dificuldade que enfrentamos é que, no mundo moderno, os estúpidos estão cheios de certezas, ao passo que os inteligentes estão cheios de dúvidas.

Esta é uma afirmação de carácter empírico, certamente baseada no que o filósofo vinha observando à sua volta. Poderia, no entanto, não passar de uma impressão enganadora. Mas, graças às experiências entretanto levadas a cabo pelos psicólogos sociais americanos David Dunning e Justin Kruger, sabemos agora que Russell não estava errado. Além de um filósofo de primeira linha, parece que Russell foi também um observador perspicaz. 

A intuição de Russell é a de que aqueles que se mostram mais convictos na defesa de certas ideias (ou seja, os que gritam mais alto e de forma mais convicta) tendem a sobrevalorizar a sua competência na matéria em causa. É precisamente o facto de ignorarem os limites da sua ignorância que os leva a sobrevalorizar o pouco que sabem, julgando ser muito. Ou seja, precisariam de ser suficientemente competentes para reconhecerem a sua incompetência. Pelo contrário, aqueles que conhecem muito bem um dado assunto já são suficientemente competentes para admitirem os seus limites, o que os leva a ser mais cautelosos nas suas afirmações.  

Isso é precisamente o que mostra o chamado efeito Dunning-Kruger, um viés cognitivo que leva as pessoas com competências medianas a confiar demasiado no seu desempenho, autoavaliando-o de modo favorável, ao passo que as pessoas com competências acima da média tendem a avaliar mais severamente o seu desempenho, como se pode ver no gráfico elaborado a partir das experiências realizadas por aqueles dois psicólogos (gráfico adaptado da Wikipédia).  


Isto permite explicar a confiança de algumas pessoas ao insistirem convictamente em meia-dúzia de ideias, acreditando que isso basta para vencerem qualquer debate. E explica, por outro lado, o facto de muitas pessoas que conhecem com profundidade um dado assunto se sentirem frequentemente frustradas — ou mesmo derrotadas — ao debater com quem tem um conhecimento mediano do mesmo. 

    

quarta-feira, 17 de julho de 2024

A desarmante beleza da música de Silvestrov

Talvez nenhum outro compositor contemporâneo tenha conseguido criar peças musicais tão incontestavelmente belas como o ucraniano Valentin Silvestrov. Um bom exemplo disso é a frágil e tocante beleza de Prece Pela Ucrânia, escrita em 2014, uma peça coral aqui adaptada para orquestra — com interpretação da Bamberg Symphony e os arranjos orquestrais de Eduard Resatsch. 

Tanto o coral original como esta adaptação orquestral são de uma beleza delicada e despojada, que nos resgata de um mundo demasiado ruidoso, como quer o compositor. Uma diferença interessante entre a versão coral original e esta versão orquestral é o uso do vento suave das flautas, soando agora como um suspiro apaziguador que acentua a etérea espacialidade desta prece musical. 

A obra de Silvestrov não receia a beleza da música tonal tradicional. Mas, em vez de se fixar no passado, renova a beleza essencial aí anunciada, como uma essência que, numa espécie de «eco do que já existe», desponta entre o que surge e se desvanece. O próprio compositor descreve a sua obra como «silêncio posto em música».

Silvestrov, nascido em 1937, em Kiev, vive agora em Berlim, refugiado da guerra no seu país. Ainda no tempo da União Soviética, a sua música chegou a ser proibida não só por razões políticas (pronunciou-se contra a invasão da Checoslováquia, em 1968) mas também porque não se conformou à estética oficial soviética do realismo socialista nem à sua alternativa modernista, optando antes por uma via pessoal de pendor neoclássico. Daí que a música de Silvestrov represente também um alívio da exaustão vanguardista para a qual ele próprio chegara a contribuir. A beleza do seu Requiem para Larissa, das suas Canções Silenciosas e, em especial, da sua música coral dificilmente nos deixa indiferentes. 

Bamberg Symphony — Prayer for Ukraine (Valentin Silvestrov)