sábado, 21 de março de 2020

O problema mente-corpo

Tudo indica que o humor filosófico de Bertrand Russell era já uma coisa de família. Consta que, ainda adolescente, Russell andou durante muito tempo obcecado com o conhecido problema mente-corpo (ou corpo-mente, se preferirem), lendo avidamente tudo o que ia encontrando sobre o assunto. 

Perante isso, a sua avó (como é sabido, Russell foi criado pelos avós), acabou por tranquilizar o jovem neto, dizendo-lhe que não havia razão para tanta preocupação, dado ser um problema bem simples de resolver.
 

Segundo ela, as respostas certas para as perguntas relevantes eram, então, as seguintes:

— What is matter?
— Never mind.
— And what is mind?
— No matter.

Tanta coisa para quê, afinal?


sexta-feira, 20 de março de 2020

As desigualdades, o socialismo e o capitalismo

Uma coisa de que o leitores de filosofia como eu sentem falta é de boas recensões do que se vai publicando; recensões críticas que sejam simultaneamente sóbrias e fundamentadas, e que nos ajudem a decidir o que ler. É um tanto triste procurar boas recensões de livros que se vão publicando — muitas vezes de livros que, noutras paragens, são fonte de interessantes debates filosóficos — e não encontrar nada ou, o que é talvez pior, depararmo-nos com pouco mais do que meia dúzia de juízos tendenciosos, injustificados, impressionistas e apressados — sejam eles favoráveis ou desfavoráveis.  

Por isso é um reconfortante ler a quádrupla recensão, publicada na Crítica por António R. Gomes, dos livros dos quatro eminentes filósofos John E. Roemer, G. A Cohen, Jason Brennan e Harry G. Frankfurt, publicados pela Gradiva em anos recentes. 


António Gomes não só nos dá uma boa perspectiva do que se encontra em cada livro como mostra, de forma esclarecedora, o elo fundamental que liga os quatro livros, sublinhando as vantagens de os ler em conjunto:   
Girando em torno de um núcleo comum, são análises de pontos de vista diferentes (seja pelas áreas disciplinares em que se inserem, seja pelas teorias que sustentam) mas que se complementam, mesmo se não coincidindo (ou ainda mais por não coincidirem) nas conclusões. Valem ainda pela honestidade intelectual, pela ausência de dogmatismo, pelo distanciamento afetivo com que investigam um assunto que muitas vezes é visto com a lupa da paixão clubística; pela consistência ou objetividade da fundamentação, baseada em dados históricos e estatísticos ou no rigor lógico; pelo jogo de contra-argumentação.

Para o leitor de língua portuguesa interessado nestas áreas de estudo, acresce outra razão a favor destas leituras: a carência de bibliografia que não seja “ortodoxa”. Não estou a sugerir a rejeição, por princípio, da ortodoxia, mas tão-só a supor a necessidade de uma releitura, crítica, do marxismo tradicional; da eventual reformulação dos seus princípios ou, no mínimo, do seu questionamento à luz da evolução e das experiências históricas; de avaliações que tenham em conta, simultaneamente, o revés do desaparecimento do “socialismo real” e a (afirmação ou negação da) crença na possibilidade de um sistema económico e político baseado numa norma de igualdade.
Vale mesmo a pena ler.

quarta-feira, 18 de março de 2020

O mais recente livro de Searle

Da Realidade Física à Realidade Humana é o título do último livro de Searle, acabado de publicar na colecção Filosofia Aberta, com tradução de Daniela Moura Soares e revisão científica de Desidério Murcho. 

Infelizmente, por razões óbvias, a apresentação do livro, a cargo de Pedro Galvão e Ricardo Santos (ambos professores da UL), programada para o fim deste mês na Fnac Chiado, em Lisboa, teve de ser cancelada. 

Trata-se de um livro original, o último escrito pelo filósofo, que ainda não foi sequer publicado em inglês. O italiano e agora o português são, por enquanto, as duas únicas línguas em que este livro pode ser lido. Trata-se, portanto, de um acontecimento editorial de registo na área da filosofia.

Esta não é certamente uma boa altura para frequentar livrarias. Mas isso não significa que deixemos de ter acesso às novidades editoriais, pois é possível encomendar o livro diretamente na página da Gradiva, que garante embalá-lo com todos os cuidados que as actuais circunstâncias exigem, entregando-o em casa do leitor, com desconto e portes gratuitos. 

Deixo abaixo o texto de apresentação da contracapa e das badanas.



Neste seu mais recente livro, John Searle oferece-nos um excelente exemplo de que os grandes sistemas filosóficos não são coisas do passado e que os filósofos contemporâneos não estão condenados a uma irremediável especialização em busca de respostas para meras questões de pormenor, mostrando-nos aqui como os seus reconhecidos contributos para diferentes disciplinas filosóficas fazem afinal parte de um sistema coerente e abrangente. Esta obra acaba também por ser a melhor introdução à filosofia de Searle, tornando transparente o cimento filosófico que liga cada uma das suas partes num todo coerente e original, que vai da sua influente teoria dos actos de fala ao problema do livre-arbítrio, passando pela noção de intencionalidade, pelo problema mente-corpo, pela discussão sobre a inteligência artificial e pela sua mais recente teoria sobre ontologia social. E tudo isso é feito com a vivacidade e a acutilância filosófica que se lhe conhecem, deixando-nos com o essencial de um legado filosófico só ao alcance de poucos.

O único ponto de partida para se compreender tudo o resto, defende Searle, é o que sabemos da física, da química e de outras ciências naturais, segundo as quais o universo é totalmente constituído por partículas físicas, sem qualquer intencionalidade ou propósito racional, organizadas em sistemas e campos de força. Esta é a realidade básica, que Searle diz não se tratar sequer de uma teoria, mas antes do pressuposto sem o qual nenhuma teoria acerca da realidade, incluindo da realidade criada pelos seres humanos, é inteligível. Assim, a questão central que se apresenta à filosofia contemporânea é: como explicar a realidade humana da mente, do significado, da consciência, da intencionalidade, da sociedade, da própria ciência, da estética, da moralidade e toda organização social, incluindo o dinheiro, a propriedade, o governo e o casamento?

Da Realidade Física à Realidade Humana explora também as noções de poder e de direitos humanos, terminando com a inevitável questão do livre arbítrio. Estamos, portanto, perante uma obra de referência para a cultura filosófica actual.

*** 

A tradição filosófica ocidental procura explicar a realidade humana postulando dois mundos distintos - o mental e o físico - e, em algumas versões, acrescenta-se um terceiro, o mundo social. Mas Searle defende que há apenas um mundo, argumentando que as características de nível superior são consequências naturais do mundo básico. Começa por se perguntar como a consciência pode ser causada e, ao mesmo tempo, realizada no cérebro como um recurso de nível superior. Da consciência passa para a intencionalidade, a propriedade pela qual a mente é direcionada a objetos e estados de coisas tipicamente separados de si mesma. A consciência e a intencionalidade, incluindo a intencionalidade coletiva, permitem explicar a linguagem. Podemos, então, ver como os humanos usam a linguagem para construir uma realidade social que inclui dinheiro, estados-nações, propriedade privada, universidades e empresas. Searle realça que a sua abordagem evita os erros tradicionais do dualismo e do idealismo, mas também do materialismo.