Foto de Aires Ameida
Numa das últimas aulas do 11º ano estávamos a tentar resolver um exercício de lógica quando um aluno me interpelou da seguinte maneira:
- Ó professor, não estou a perceber isto. Eu cá sou uma pessoa prática e não vejo porque hei-de estar a esforçar-me para aprender algo de que não irei precisar no futuro. Para quê, afinal?
A pergunta é natural e até compreensível, além de ter sido feita de boa fé. E até nem sequer é uma pergunta inabitual. Tinha, pois, o dever de lhe responder. E disse-lhe que havia, não uma, mas três maneiras diferentes de lhe responder.
A primeira é que a pergunta dele revela, afinal, pouco sentido prático. Uma pessoa prática pensaria assim: dado que esta disciplina faz parte do meu currículo escolar e que essas matérias fazem parte do programa, então é inútil perguntar para que serve. Perder tempo com isso é apenas uma maneira de fugir ao assunto em vez de simplesmente aprender o que, de qualquer modo, lhe é exigido.
A segunda é que raramente (ou mesmo nunca) precisamos de recorrer à maior parte do que aprendemos na escola, seja em Filosofia, Matemática, História, Biologia ou outra disciplina qualquer. Eu, por exemplo, não me recordo da última vez que precisei de recorrer ao teorema de Pitágoras, de invocar as causas da batalha de Alcácer Quibir ou de referir o processo da fotossíntese. E estou só a falar de aspectos centrais do estudo daquelas disciplinas. Mas daí não se segue que não devíamos ter perdido tempo a aprender essas coisas, pois nunca podemos prever se iremos ou não precisar delas em momentos cruciais da nossa vida pessoal e profissional. É por isso que não achamos inútil o dinheiro que gastamos a comprar enciclopédias e dicionários que só parcial e esporadicamente consultamos. Há circunstâncias em que só eles conseguem esclarecer as nossas dúvidas e ajudar a ultrapassar dificuldades. Por isso é bom tê-los na estante, mesmo que passemos meses sem os consultar. O mesmo se passa com muito do que aprendemos na escola, incluindo na disciplina de Filosofia.
A terceira é que estamos frequentemente enganados quando dizemos que não precisamos de certos conhecimentos afastados da nossa área principal de interesses pessoais ou profissionais. Os modos como as coisas se podem ligar e influenciar umas às outras são muitos e surpreendentes. Muitas vezes nem sequer nos damos conta dos conhecimentos de que, na prática, precisamos e estamos a aplicar.
Mas há ainda uma quarta resposta, que eu não lhe cheguei a referir: que, independentemente da sua aplicação prática profissional, o conhecimento é, em si mesmo, algo valioso; é algo que nos enriquece e nos torna pessoas mais interessantes.
Como se vê, as questões práticas têm, na prática, muito que se lhes diga.
Eu também sou professor e, quando referem esse tipo de questões, uso por vezes uma analogia do futebol dizendo que os jogadores poder-se-iam queixar ao treinador que as flexões, exercícios de ginásio, etc. também não servem para nada, porque no jogo nada disso é utilizado. Por alguma razão, esta analogia física é-lhes mais perceptível.
ResponderEliminarCaro sLx,
ResponderEliminarAchei interessante o comentário no blogue porque lembrou-me a questão da disciplina ou educação formal, muito debatida entre os finais do séc. XIX e o início do séc. XX, e hoje um pouco esquecida, porém camuflada ou dissimulada noutras discussões, e a meu ver sempre actual. A questão da disciplina formal, posta em termos psicológicos actuais, é a questão do transfer: o estudo de um determinado conteúdo e/ou a prática de determinada destreza utilizados em outros contextos e no âmbito de outros temas e conteúdos ou skills. Em termos muito banais e próximo a conversas do dia a dia, a doutrina da disciplina formal está presente naquelas ideias e discussões sobre o valor, por exemplo, do estudo do latim ou da matemática como ginástica mental (sináptica?, da alma? cognitiva?...) que pode servir outros fins: o exercitar "das faculdades" (?) nestas e noutras matérias possibilita destrezas noutras áreas. Não importa que o estudo de uma língua viva não tenha nenhuma aplicabilidade prática (serve ao menos para algum conhecimento de algumas línguas vivas), importa que o treino desta destreza pode ser aplicado algures. Acho o assunto muito interessante, ainda ando a estudá-lo (andamos sempre a estudar tudo...). Deixo duas referências: um artigo do início do séc. XX que equaciona a discussão no âmbito da emergente psicologia experimental (http://www.jstor.org/stable/10.2307/1075699) e o capítulo 6 de A Formação Social da Mente, de Vygotsky. Abraços. Luís
A questão do treino mental nota-se sobretudo na área que ensino, a informática, onde a explosão constante de novas tecnologias deixa-nos com poucas alternativas. Se um aluno sair com bases sólidas e uma boa prática de estudo e trabalho, leva já algumas das principais ferramentas para a sua carreira profissional (curiosamente para eles, o português é outra, mas não conseguimos ter aí, nós docentes de informática, um grande impacto).
ResponderEliminarObrigado pelas referências,
João Neto
ps: esqueci-me de me identificar no 1º comentário, fica aqui a correcção :-)
Caros João e Luís, obrigado pelo vosso contributo. Penso que o comentário do Luís desenvolve a terceira razão que apresentei ao aluno e da qual o João dá um bom exemplo.
ResponderEliminarObrigado professor por colocar a minha questão aqui:). É deveras interessante? Eu continuo a manter a minha intervenção. Penso que a filosofia de futuro não me irá fornecer qualquer uso a nível profissional (neste caso na área que pretendo seguir). Mas não quer dizer que tal não me sirva para a vida, para o meu crescimento intelectual e social.
ResponderEliminarEu vejo a filosofia, devido ás suas aulas, como uma sala, onde um determinado grupo se reúne com a finalidade de discutir assuntos, talvez presentes, mas por vezes desses discursos sai com cada "livro" de fantasia que deixa uma pessoa um tanto confusa. É que por vezes a que incutir a filosofia nos alunos de maneira a que haja o próprio respeito que a filosofia tenta mostrar. Nestas grandes salas com os grupos(ex: turma) é difícil ter uma noção de que me vale isto da filosofia. Entendo o conceito, o porque de se aplicar filosofia, o que deixa confuso é o facto de haver tanta sobreposição de ideais nas aulas. Como consegue alguém preparar se para tudo, se tudo, por vezes lhe é retirado? Como o direito à palavra, que avaliando bem a situação a que me refiro, não há! Como posso saber o que é a filosofia se eu próprio não consigo critica la? Como posso perceber o que é a filosofia se ideias são muitas mas muitas sem nexo? Já me disserem que seria estúpido ao ponte de dizer coisas assim. Já me disserem que seria parvo da minha parte colocar me sobre essas questões. Mas é isso em parte que a filosofia trata não é? Espírito Crítico? Pois bem, aqui questionei e aqui critiquei. Sem plateia e outras ideias sobrepondo-se as minhas maneiras.
Tenha uma boa noite professor ;)
Rodrigo, o que eu classifico como deveras interessante é a questão levantada na aula. Não estou a falar da filosofia.
ResponderEliminarOutra coisa, o futuro profissional não algo que ocorra separadamente do resto da vida e do crescimento intelectual e social de cada um.
A filosofia não um conjunto de receitas com que toda a gente concorda, por isso é que há ideias diferentes em confronto. É mesmo assim, não por causa dos filósofos, mas por causa dos próprios problemas filosóficos. E esses problemas são reais, não são invenções nossas.
Quando não vemos nexo entre certas ideias, uma de duas coisas se podem estar a passar: ou 1. elas não têm mesmo nexo ou 2. elas têm nexo e nós não estamos a ver qual é. Às vezes não é fácil ver o nexo de certas ideias, pois isso exige muitas vezes atenção aos pormenores e reflexão cuidadosa.
Se um aluno não puder apresentar as suas críticas nas aulas de filosofia, incluindo críticas à própria filosofia, então é porque não se trata de facto de aulas de filosofia. Mas isso não significa que as críticas tenham de ficar sem resposta.
Obrigado pelo contributo, Rodrigo.