As discussões filosóficas nem sempre são tão pacíficas como se pensa, havendo mesmo algumas que chegaram a ser fisicamente ameaçadoras. A célebre história do atiçador com que Wittgenstein ameaçou o seu conterrâneo Popper no Clube de Ciência Moral, em Cambridge, não é caso único. Wittgenstein não chegou a vias de facto mas a ameaça parece ter sido séria. Curiosamente, Popper também era, por vezes, pouco meigo, como nos encontros com o positivista lógico Carnap. Diz-se que era quase sempre Popper quem se irritava e perdia a compostura, ao contrário da serenidade de Carnap. Mais radical e descontrolado se mostrou o celebrado autor de A Estrutura das Revoluções Científicas quando, no seu gabinete de Princeton, atirou um cinzeiro com beatas na direcção do seu aluno de doutoramento Errol Morris. Este só teve tempo de se desviar do cinzeiro que passou mesmo ao lado da sua cabeça. Morris acabou por abandonar os estudos de filosofia da ciência em Princeton, tornando-se mais tarde um aclamado realizador de cinema (Werner Herzog e o compositor Philip Glass foram alguns dos nomes que colaboraram em filmes seus). Entretanto, Morris decidiu escrever The Ashtray, publicado em 2018, onde nos conta o episódio do cinzeiro e a tensa, embora curta, relação com o seu orientador de doutoramento Thomas Kuhn. Felizmente, a tradução portuguesa deste notável livro parece estar para breve.
O livro não se limita a descrever o caricato episódio no gabinete de Kuhn, sendo simultaneamente uma obra de filosofia e uma obra de arte, notável a vários títulos. Seja pelo seu formato de álbum com abundantes e curiosas ilustrações, seja pelas entrevistas originais a filósofos como Putnam, Chomsky e Kripke, seja pelos oportunos comentários laterais, com referências históricas, artísticas e filosóficas, esta é uma obra verdadeiramente singular. Diria que se trata de um documentário ou reportagem filosófica em forma de livro.
Morris também discute desenvolvidamente as ideias de Kuhn, reforçando as acusações de relativismo e de idealismo, que tanto irritavam o famoso filósofo da ciência. É possível que Morris tenha sido demasiado severo e algo injusto com o pensamento de Kuhn, como sugeriu o filósofo da ciência Philip Kitcher na sua recensão do livro. Mas, ainda assim, não deixamos de estar perante uma obra singular, com muitos pontos de interesse filosófico. Além disso, proporciona uma leitura muito agradável. E, já agora, é também um regalo para os olhos.
E, pelo que sei, a tradução portuguesa procura reproduzir, página por página, a edição original. Boa!
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