domingo, 16 de abril de 2017

Filósofos, boas pessoas e disparates


Certo dia, um conhecido filósofo americano, eu e uma amiga candidata a filósofa fomos a uma espécie de café-concerto de fim de tarde no CCB onde a cantora de jazz Maria Viana actuava com a sua banda. À saída, decidimos ir aos pastéis de Belém, ali ao pé. Estávamos prestes a aviar a primeira dose de calorias quando a candidata a filósofa se vira para o filósofo e pergunta:

— Acha que os filósofos são melhores pessoas do que a maior parte das outras pessoas?
— Por que razão haveriam de o ser? — retorquiu o filósofo.
— Precisamente por serem filósofos. Estão melhor apetrechados do que ninguém para discernir o que é bom e distinguir o certo do errado — esclareceu ela.
— Estou a ver. Ainda assim, acho que não — respondeu o filósofo, depois de parar um pouco para pensar. — Na verdade,  digo isto com base apenas nos indícios que a minha experiência pessoal me parece mostrar — acrescentou.

Claro que se a candidata a filósofa tivesse perguntado a Sócrates, este teria respondido que sim. É bem conhecida a perspectiva socrática de que a virtude é conhecimento e que, portanto, a ignorância é a fonte do erro. Ora, se a filosofia for, como pensam tantos filósofos, a procura do conhecimento, então dedicarmos-nos à filosofia equivale a tornarmo-nos pessoas virtuosas. E mesmo que os filósofos não consigam obter o conhecimento que procuram, esforçam-se por isso mais do que quaisquer outras pessoas, pelo que se esforçam mais do que as outras por ser pessoas virtuosas. E é, no mínimo, expectável que as pessoas que mais se esforçam por ser virtuosas e que mais motivadas estão para o serem, acabem também por ser mais virtuosas. Assim, infere-se socraticamente que os filósofos são, em geral, melhores pessoas do que as outras pessoas.

Para que lado penderá a verdade? Será o argumento a priori de Sócrates mais convincente do que os indícios empíricos referidos pelo filósofo americano? Sócrates poderia descartar tais indícios alegando que não são acerca de verdadeiros filósofos. Mas o filósofo americano poderia alegar, como Hume, que a razão, embora o possa mostrar, não motiva necessariamente para o bem. E poderia exemplificar com alguns dos nomes mais sonantes da história da filosofia, que foram reconhecidamente más pessoas: Jean-Jacques Rousseau (um traste ingrato, mesmo com aqueles que mais o ajudaram nas horas difíceis), Wittgenstein (para quem os outros eram sempre um incómodo), Heidegger (para quem parecia haver seres superiores e inferiores consoante a sua origem). E muitos outros exemplos poderiam ser dados, incluindo de filósofos actuais. Colin McGinn refere o caso do filósofo da mente britânico Christopher Peacocke, capaz de passar por cima dos seus colegas para atingir os seus objectivos pessoais.

Seja como for, o raciocínio subjacente à pergunta da minha amiga candidata a filósofa é amplamente partilhado. Pode ser que os filósofos sejam, em princípio, melhores pessoas do que as outras e que talvez Rousseau, Wittgenstein, Heidegger ou Peacocke tivessem sido ainda piores pessoas caso não tivessem abraçado a reflexão filosófica.

Entretanto, lembrei-me do post anterior e ocorreu-me perguntar se o tipo de raciocínio socrático aqui apresentado não poderia servir também para concluir que os filósofos — pelo menos os melhores — dificilmente poderiam defender ideias disparatadas.

Sem dúvida que há aqui uma dificuldade acrescida, pois aquele que defende uma dada ideia nunca irá concordar que se trata de um disparate, por muito disparatada que ela pareça a outros. Por exemplo, o brilhante filósofo Alvin Plantinga defende a ideia de que Deus é uma pessoa em três, isto é, que a pessoa do pai, a pessoa do seu próprio filho e a pessoa do Espírito Santo são, real e literalmente, uma só pessoa. Em suma, a ideia é que, no caso do dogma da trindade, 1=3. Dizer a Plantinga — e, já agora, a outros brilhantes filósofos antes dele — que isso não passa de um disparate seria, em sua opinião, completamente disparatado. E seria também disparatado pensar que um filósofo com os pergaminhos de Plantinga não dispõe de razões para defender tal ideia.

Assim, se uma ideia disparatada fosse uma ideia em defesa da qual não são apresentadas razões, então praticamente não haveria ideias filosóficas disparatadas e este qualificativo não faria qualquer sentido neste contexto. Contudo, julgo não ser descabido considerar disparatadas as ideias de Schopenhauer ou de Nietzsche acerca da suposta natureza das mulheres, mesmo que disponham de algum tipo de justificação nesse sentido.

Num sentido fraco, mas que também é mais do que uma mera força de expressão, parece-me razoável qualificar como disparatadas certas ideias ou teorias defendidas por filósofos. Estou a pensar em teorias com um carácter notoriamente instrumental e cuja plausibilidade é reconhecida apenas por quem as aceitaria sem precisar de razões. Por exemplo, parece-me disparatado defender que os direitos das pessoas dependem da sua origem ou etnia; que os homens são moralmente superiores às mulheres; que há anjos; que não há um mundo exterior. Em contrapartida, nem o mais inflexível defensor da ética kantiana considera o utilitarismo uma teoria disparatada — e vice-versa — apesar de estarem aqui em confronto ideias bem diferentes.   

Penso, pois, que mesmo os melhores filósofos podem defender teorias ou ideias disparatadas e que um bom exemplo disso talvez seja Alvin Plantinga. Tive em tempos a oportunidade de estudar o seu livro The Nature of Necessity (1974), e confesso que fiquei impressionado com o seu brilhantismo filosófico. E, embora o tema central do livro seja a modalidade, não deixa de incluir alguma da mais rigorosa e sofisticada filosofia da religião que já li. Mas também penso que Plantinga foi filosoficamente longe de mais em outras obras, nomeadamente no seu bem mais recente Warranted Christian Belief (2000). Longe de mim pensar que se trata de ideias disparatadas do ponto de vista da teologia dogmática. Certamente que terão a sua justificação religiosa e provavelmente uma função simbólica muito relevante. Mas a defesa filosófica de algumas das ideias que aí encontramos manifestamente persuade apenas quem de algum modo não precisa de ser persuadido.

Se o que digo for minimamente plausível, então surge uma outra questão intrigante: o que leva grandes filósofos a defender ideias ou teorias disparatadas aos olhos de muitos? Além da busca da verdade, nada impede que os filósofos tenham também outras motivações muito fortes e profundas, seja de carácter religioso, estético, social ou político. Talvez a resposta resida nesse tipo de motivações profundas, que surgem a par da motivação para a verdade.

Mas talvez o que aqui tenho estado a sugerir seja apenas mais um disparate. 


2 comentários:

  1. Aires, nesta passagem: "E, embora o tema central do livro seja a modalidade..." creio que quererás dizer "moralidade". Boa reflexão!

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  2. Olá, Fernando. O tema central é mesmo a modalidade (necessidade e possibilidade) e não a moralidade. Um abraço

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