sábado, 29 de abril de 2017
Deus, o Universo e tudo o que existe
PEDRO: Parou de chover, graças a Deus.
HELOÍSA: Qual deus?
PEDRO: O único, o Deus criador.
HELOÍSA: Criador de quê?
PEDRO: Ora, criador de tudo!
HELOÍSA: Mas tudo é muita coisa.
PEDRO: Pois é. Por isso é que Deus é único, em muitos aspectos, incluindo quanto ao seu ilimitado poder. Foi com esse poder que criou tudo quanto existe. Assim, ele é o criador tanto do que se vê como do que existe mesmo sem se poder ver.
HELOÍSA: Vejo os sapatos que tenho calçados. Foi Deus que os criou? Consigo ver a Torre Eiffel. Foi Deus que a criou? E não consigo ver, mas sou capaz de ouvir, a Quinta Sinfonia de Beethoven. Afinal o seu criador foi Deus e não Beethoven?
PEDRO: Estou a ver que estás a interpretar "tudo quanto existe" de uma forma algo diferente do que se pretende. Não devemos fazer caricaturas.
HELOÍSA: Como devo interpretar, então, essa expressão?
PEDRO: Ok, talvez seja mais adequado dizer antes que Deus é o criador do Universo. Compreendes agora o que queria dizer?
HELOÍSA: Mas consultei um vulgar dicionário de português e lá diz que o Universo é tudo o que existe. Ora isso inclui na mesma os meus sapatos, a Torre Eiffel e a Quinta Sinfonia de Beethoven, pelo que não encontro diferença.
PEDRO: Estou a ver a tua dificuldade. Mas, em certo sentido, é correcto dizer que Deus criou os teus sapatos, a Torre Eiffel e a Quinta Sinfonia de Beethoven.
HELOÍSA: Em certo sentido? Que sentido é esse?
PEDRO: No sentido em que ele é a causa primeira do Universo e que, portanto, é indirectamente a causa de tudo o resto. Sem ele, os teus sapatos, a Torre Eiffel e a Quinta Sinfonia de Beethoven não poderiam sequer existir.
HELOÍSA: Estou a ver. Nesse mesmo sentido, é também correcto dizer que a minha bisavó materna, que nem a própria filha chegou a conhecer, criou o desenho que acabei mesmo agora de fazer. E os antepassados dos trabalhadores da fábrica de calçado onde estes sapatos foram criados também foram, indirectamente, criadores dos sapatos. E, quem sabe, talvez mesmo D. Afonso Henriques tenha sido também um dos criadores indirectos destes sapatos. E, já agora, não seria totalmente disparatado dizer que, a terem existido realmente, talvez Adão e Eva sejam criadores indirectos da Torre Eiffel e da Quinta Sinfonia de Beethoven.
PEDRO: Por favor, nada de caricaturas!
HELOÍSA: Limito-me a seguir o teu raciocínio. Aliás, de acordo com ele, quanto mais antiga for uma pessoa e quanto mais descendência tiver deixado, mais coisas essa pessoa criou, ainda que indirectamente. E daí chegamos a Deus, o primeiro de todos, que desencadeou todas as criações que conhecemos.
PEDRO: Calma aí! Não estás certamente a levar em conta um poder que apenas Deus tem.
HELOÍSA: Que poder é esse?
PEDRO: É o poder de, a todo o momento saber tudo o que se passa no mundo e de, a todo o momento, intervir para que umas coisas aconteçam e outras não cheguem a acontecer.
HELOÍSA: Estou a ver, os meus sapatos existem porque, de alguma maneira misteriosa para nós, foi Deus que quis que eles existissem.
PEDRO: Mais ou menos isso. E também que foi Deus que inspirou Eiffel a projectar a torre que se encontra em Paris e inspirou Beethoven a descobrir aquela estrutura sonora que constitui a Quinta Sinfonia. E dizemos que a sinfonia é de Beethoven apenas porque Beethoven nos parece a causa mais próxima. Também dizemos que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil, quando havia pessoas que já lá estavam antes disso. Não nos devemos deixar levar pela maneira como frequentemente falamos, que nem sempre tem de ser precisa.
HELOÍSA: Percebo. Estás no fundo a referir aquilo a que outros chamam simplesmente inspiração, sem precisar de meter Deus na conversa. Só que, além de isto me parecer muito pouco, deixa-me algo intrigada.
PEDRO: Com o quê?
HELOÍSA: Imagina a quantidade de disparates produzidos por seres humanos, do lixo às armas nucleares, de obras que agridem outros seres humanos e a Natureza a obras que supostamente insultam o próprio Deus. Será também Deus o inspirador e criador indirecto dessas coisas?
PEDRO: Nunca ouviste dizer que essas coisas manifestamente más, feitas exclusivamente por seres humanos, resultam de uma coisa em si mesma boa, que nos foi concedida por Deus?
HELOÍSA: Estás a falar de quê?
PEDRO: Estou a falar do livre-arbítrio, claro. Se Deus interviesse em rigorosamente tudo o que fazemos, não deixaria lugar para o nosso livre-arbítrio, que é uma coisa boa, embora muitas vezes a apliquemos mal.
HELOÍSA: Nesse caso o que defendeste atrás de nada serve, pois Deus não é, afinal o criador de tudo quanto existe — ou, se preferires, do Universo, que vai dar ao mesmo.
PEDRO: Bom, talvez não vá dar ao mesmo. Reconheço que tenho de precisar melhor o que se entende por "Universo".
HELOÍSA: Mas não tínhamos dito que o Universo é tudo quanto existe?
PEDRO: Sim, mas não fomos suficientemente precisos.
HELOÍSA: Então?
PEDRO: O Universo não é tudo o que existe mas antes o lugar onde tudo existe.
HELOÍSA: Ah, mas isso já é outra coisa. Confirmas, então, que de nada serviu grande parte da nossa conversa anterior.
PEDRO: Bem, às vezes temos de começar por ideias imprecisas para chegar a bom porto. Aprende-se sempre algo pelo caminho, mesmo que este dê voltas estranhas.
HELOÍSA: Podemos, então resumir o que tens estado a dizer em duas frases: 1) Deus é criador do Universo e 2) O Universo é o lugar onde tudo existe.
PEDRO: Certíssimo.
HELOÍSA: Logo, Deus não é criador de tudo quanto existe.
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