Acerca de Deus, os filósofos costumam levantar vários problemas. Há, para começar, o mais básico e central de todos: o problema metafísico da sua existência. Outro problema metafísico — conceptualmente relacionado com este, mas apesar disso diferente — é o da natureza da divindade: quais os atributos de Deus e, portanto, o que define tal divindade? E podemos ainda ligar estes dois problemas a um terceiro, de carácter epistémico: o do nosso conhecimento de Deus.
Claro que há outros problemas de filosofia da religião, mas limito-me a referir apenas os mais básicos e filosoficamente mais urgentes. Quase todos reconhecem — incluindo filósofos teístas — que, de tão difíceis que são, qualquer destes problemas dá pano filosófico para mangas intermináveis. Só o problema da existência de Deus tem, ao longo de séculos de debate filosófico, mobilizado praticamente todos os filósofos teístas. E, embora todos estes filósofos concordem que Deus existe, frequentemente discordam sobre as razões que legitimam tal conclusão.
Mas também há quem, desassombrado diante de tais problemas, avance respostas para questões ainda mais espinhosas, na medida em que são duplamente problemáticas: são-no em si mesmas e são-no também porque a solução para elas depende da resposta que se dá aos problemas anteriores. Ainda assim, nem isso impede que alguns filósofos (como Plantinga e Swinburne, para referir apenas os mais destacados), não demasiado impressionados com a dificuldade dos problemas da existência, da natureza e do nosso conhecimento de Deus, tenham avançado com complicadas teorias filosóficas sobre a trindade de Deus, a presença de Cristo na eucaristia, a transubstanciação ou a ressurreição do corpo de Cristo, entre outras questões que não dizem respeito à religião em geral, mas apenas a certas religiões — mais particularmente à religião católica.
Sem dúvida que os problemas da existência, da natureza e do conhecimento de Deus dizem, de algum modo, respeito a todas as religiões monoteístas. E praticamente nenhuma delas pode prescindir de uma resposta para essas questões, dado que a existência da divindade, seja sob que forma for, é um elemento definidor da religião. Ainda assim, é apenas uma condição necessária, não suficiente.
Outra condição necessária é dada pelo ritual que transforma meros crentes numa comunidade religiosa. Dado que o fenómeno religioso é um fenómeno comunitário, dificilmente as religiões teriam surgido e se teriam mantido sem a sua componente ritualística. Celebrações litúrgicas ou missas, procissões e peregrinações, são práticas que ligam, por um lado, os crentes com o objecto da crença e ligam, por outro lado, os crentes entre si enquanto comunidade. É a dimensão ritualística — uma actividade estritamente simbólica — que dá vida às religiões, mantendo simultaneamente a crença acesa e a comunidade activa.
Simplificando um pouco, mas não demasiado, qualquer religião é constituída por dois ingredientes essenciais: um conjunto de crenças acerca de algum tipo de divindade e um conjunto de rituais simbólicos que visam dar vida e preservar essas crenças. Assim, o que distingue as religiões entre si é o tipo de divindade em que se acredita ou o tipo de rituais praticados — ou ambos. E aqui pode haver um mundo de diferenças.
Tudo isto parece apontar no sentido de a verdadeira tarefa do filósofo teísta ser a de proporcionar boas respostas para as questões da existência, da natureza e do nosso conhecimento de Deus, deixando o aspecto ritualístico de constituir matéria filosófica, na medida em que pode ser explicado de forma coerente em termos estritamente simbólicos. Sem dúvida que mesmo as práticas simbólicas têm um fundamento e precisam de uma justificação, mas isso cabe mais à teologia dogmática do que à filosofia.
Ora, o que tentam fazer filósofos como Plantinga e Swinburne é legitimar filosoficamente todo e qualquer aspecto particular da sua religião, nem que para isso tenham de encarar problemas filosóficos — isto é, questões abertas como a existência ou a natureza de Deus — como questões fechadas. E nem que para isso tenham também de multiplicar entidades, na tentativa de substancializar metafisicamente práticas meramente simbólicas. Ou seja, estamos perante um apoteótico festim metafísico onde, a haver lugar para qualquer coisa parecida à navalha de Ockham, ela parece estar completamente romba. Enfim, é a filosofia ao serviço da religião. E nem sequer está ao serviço da religião em geral, mas de religiões particulares.
Filosofia da religião à la carte?
Amigo Aires, discordo de várias coisas que procuras defender neste teu post. Explico porquê:
ResponderEliminarComeças por dizer que "há quem (...) avance respostas para questões ainda mais espinhosas, na medida em que são duplamente problemáticas: são-no em si mesmas e são-no também porque a solução para elas depende da resposta que se dá aos problemas anteriores."
Mas isso não é inteiramente correto, pois de forma geral e típica pode-se responder filosoficamente a esses problemas “espinhosos” de forma *condicional*. Por exemplo, se Deus existe, será que a incarnação é provável? Se Deus existe, será plausível que seja trinitário? Se Deus existe e incarnou, será que pode morrer e ressuscitar? Se Deus existe, incarnou em Cristo e morreu na cruz, então será que isso contribui para a expiação ou redenção dos nossos pecados? Não é preciso acreditar em Deus para se pensar sobre condicionais e fazer boa filosofia. Portanto, podemos trabalhar esses problemas sem estarmos comprometidos com uma resposta positiva para a antecedente da condicional ou para o problema da existência de Deus. Um caso paradigmático disso é o exemplo do insuspeito filósofo David Lewis. Ele escreveu um artigo fantástico, e agora é considerado um clássico, sobre uma das teorias para a doutrina cristã da expiação ou redenção, conhecida como "teoria da substituição penal", e apesar disso ele é ateu. Ou seja, tens aqui um elegante contraexemplo para a tua suposta alegação de que temos de dar primeiro uma resposta positiva ao problema da existência de Deus para se trabalhar de forma filosoficamente adequada e rigorosa os tais problemas "mais espinhosos". Será que o David Lewis faz filosofia da religião "à la carte"?! Bah!
Dizes também que "ainda assim, nem isso impede que alguns filósofos (como Plantinga e Swinburne, para referir apenas os mais destacados) [...] tenham avançado com complicadas teorias filosóficas sobre a trindade de Deus, a presença de Cristo na eucaristia, a transubstanciação ou a ressurreição do corpo de Cristo, entre outras questões que não dizem respeito à religião em geral, mas apenas a certas religiões — mais particularmente à religião católica."
ResponderEliminarContudo isso não parece inteiramente correto, dado que nem o Plantinga nem o Swinburne são católicos - o primeiro é calvinista e o segundo é agora ortodoxo (mas já fora anglicano). Além disso, como escrevi acima, não é preciso ser-se religioso para tratar desses problemas. Basta para isso ver o caso paradigmático do David Lewis. Não é por acaso que ele é um dos melhores filósofos do século XX. Mas mesmo sendo ateu, não teve qualquer “tabu” para discutir de forma filosoficamente rigorosa uma das doutrinas centrais do cristianismo. Estás a sugerir que ele fez um mau trabalho? Não compreendo minimamente esse tabu que estás a manifestar no teu texto para discutir de forma genuína e filosoficamente rigorosa algumas doutrinas do cristianismo. Se o David Lewis que é ateu e bom filósofo fez isso, por que razão não podemos nós fazer algo parecido?
Mais abaixo afirmas que a verdadeira tarefa do filósofo teísta passa por desconsiderar "o aspecto ritualístico", o qual deve deixar "de constituir matéria filosófica, na medida em que pode ser explicado de forma coerente em termos estritamente simbólicos. Sem dúvida que mesmo as práticas simbólicas têm um fundamento e precisam de uma justificação, mas isso cabe mais à teologia dogmática do que à filosofia."
Porém isso não parece correto, uma vez que há bons filósofos a trabalhar de forma genuinamente filosófica esses aspectos do ritual religioso. Por exemplo, o filósofo Nicholas Wolterstorff tem um excelente livro de filosofia sobre a liturgia, não inserido numa filosofia da arte, mas sim no âmbito de uma epistemologia da crença religiosa. O livro é "The God We Worship" de 2015. Relacionado com isso ele também escreveu o artigo "Knowing God Liturgically". Um outro livro interessante e filosoficamente provocador é o "Ritualized Faith: Essays on the Philosophy of Liturgy" de Terence Cuneo que foi publicado no ano passado pela Oxford University Press. E existem muitos outros livros e artigos publicados nas melhores revistas internacionais de filosofia sobre os aspectos filosóficos da liturgia ou dos rituais religiosos. Basta estar um pouco atento ao que se passa lá fora. Essa tua argumentação parece-me bastante frágil e está aparentemente alheia ao que se passa lá fora, pelo menos ao que se trabalha em filosofia analítica da religião nos dias de hoje.
Dizes igualmente que "o que tentam fazer filósofos como Plantinga e Swinburne é legitimar filosoficamente todo e qualquer aspecto particular da sua religião".
ResponderEliminarAcho que o Plantinga soltaria uma enorme gargalhada com essa tua afirmação. Ele próprio reconhece e escreve explicitamente que não consegue mostrar pela filosofia a existência de Deus e que o máximo que consegue filosoficamente é argumentar para condicionais, tais como: se Deus existe, então é provável que a crença em Deus possa ser conhecimento não-inferencial para os teístas. Se o cristianismo é verdadeiro, então as crenças na trindade, incarnação, ressurreição, etc, podem constituir provavelmente conhecimento não-inferencial para os cristãos. Também defende que é lógica e epistemicamente possível que a crença em Deus e Cristã seja apropriadamente básica. Ora, dizer que Plantinga legitima "filosoficamente todo e qualquer aspecto particular da sua religião" parece completamente absurdo. O Plantinga é um filósofo extremamente cauteloso e rigoroso naquilo que defende, estando mesmo muito longe de legitimar filosoficamente todo e qualquer aspecto da sua religião calvinista. Mesmo o Swinburne, que é mais audaz ao encarar com optimismo a força dos argumentos teístas, defende apenas *probabilidades*. Por exemplo: se Deus existe, há alguma probabilidade que seja trinitário, etc. Mas está muito longe de “fechar” todas essas questões.
No final afirmas que "nem que para isso tenham de encarar problemas filosóficos — isto é, questões abertas como a existência ou a natureza de Deus — como questões fechadas".
Isso é falso. Tanto Plantinga como Swinburne não "fecham" o problema da existência de Deus. O Plantinga admite e está quase sempre a repetir que não há qualquer argumento cogente a favor da existência de Deus. Um exemplo ilustrativo: ele construiu um poderoso argumento modal a favor da existência de Deus. Mas depois admitiu que o seu argumento comete petição de princípio e não consegue convencer quem está já convencido da existência de Deus. Além disso, o Plantinga é muito céptico em relação à teologia natural, ao trabalho de se apresentar e formular argumentos cogentes a favor da existência de Deus. E mesmo o Swinburne, que encara com muito mais optimismo a teologia natural, defende que a existência de Deus tem uma probabilidade de mais ou menos 50%. Onde é que isso é "fechar" o problema da existência de Deus?! Além disso, ele argumenta de forma condicional para a ressurreição, incarnação, trindade, etc. Por isso, não é preciso estar-se filosoficamente comprometido com a existência de Deus para fazer um bom trabalho nesses problemas. Fico com a impressão de que estás a tecer comentários sobre os trabalhos de Plantinga e Swinburne de forma muito leviana e imprecisa. Mas, mais uma vez, nem sequer é preciso ser-se teísta para trabalhar nos problemas "mais espinhosos": Olha o exemplo do David Lewis.
Em suma, afirmar implicitamente que há uma filosofia da religião "genuína" e uma outra "à la carte", como pareces sugerir de alguma forma nesse teu post, é uma crítica muito injusta e nada plausível. A este propósito discordo totalmente de ti - parece que montas um mero espantalho daquilo que realmente se faz em filosófica da religião com esses problemas mais “espinhosos”.
Só mais uma nota, Domingos. Não precisas de insistir que há filósofos que tratam desses assuntos, pois foi precisamente o eu comecei por dizer. Acontece que eu tenho a mania de ter opiniões sobre os filósofos, mesmo que aches as minhas opiniões injustas. E também dei uma gargalhada com a gargalhada do Plantinga. Por simpatia, claro :-) Um abraço
EliminarComo apresentação ao teu post no facebook, fazes uma questão (talvez retórica?!): “Alguém sabe de algum filósofo que tenha escrito sobre filosofia do jejum ou da confissão?”
ResponderEliminarMas se incluirmos as teorias da expiação ou da redenção nessa categoria (e quando os cristãos falam de "expiação" tipicamente têm em mente o trabalho particular que Jesus Cristo fez para tornar possível que os seres humanos se reconciliassem com Deus e obtivessem o perdão de Deus pelos seus pecados), então a resposta é claramente positiva. Até tens um ateu, o David Lewis (quem diria?!), a trabalhar sobre isso. Deixo aqui algumas referências sobre esse tema para filosofarmos nesta última semana da quaresma:
* David Lewis (1997) Do We Believe in Penal Substitution?
* Eleonore Stump (1988) Atonement According to Aquinas.
* Richard Swinburne (1988) The Christian Scheme of Salvation.
* Steven Porter (2004) Swinburnian Atonement and the Doctrine of Penal Substitution.
* Richard Cross (2001) Atonement Without Satisfaction.
* Philip L. Quinn (1993) Abelard on Atonement: "Nothing Unintelligible, Arbitrary, Illogical, or Immoral about It".
Tens aí meia dúzia de filósofos que escreverem textos com boa filosofia da confissão, expiação, redenção. Boas leituras e uma boa Semana Santa :)
Pois, são alguns dos tais filósofos a que me referia. Já agora, o texto do Lewis não é, em bom rigor, sobre a expiação. Obrigado pelas indicações, que não tenho dúvidas serem bem melhores do que rezar umas quantas Avé-Marias.
EliminarObrigado pelos comentários; Domingos. Tinha respondido no mural do FB e só agora reparei reproduziste aqui também. Nesse caso, deixo aqui também as minhas respostas do FB.
ResponderEliminarBom, Domingos, é tanta coisa que nem sei bem por onde começar. Mas posso começar pelo fim: o "bah" é um argumento? Se for, adianto já que não tenho resposta :-)
De forma alguma ignoro que a discussão filosófica é marcadamente condicional, coisa já o tenho escrito tantas vezes. Mas daí não se segue que todas as condicionais sejam filosoficamente interessantes. Sobretudo quando a condicional inclui cadeias de "ses", como são os casos que refiro. Nem sequer vale a pena comparar a condicional "Se Deus existir e se for o criador de tudo e se for omnipotente e se for bondoso, então o mal no mundo só pode ser fruto do livre-arbítrio humano" com a condicional "Se Deus existir e se for tal e tal, e se tal e tal e mais se tal e tal...., então Deus é três pessoas em uma". Diga-se que aquelas reticências têm ainda muitos ses lá dentro. A ideia que sobra é que se podem meter lá os ses que forem precisos até se obter a formulação desejada. Ora, isto é filosoficamente tão interessante, em minha opinião, como perguntar condicionalmente: Se Deus existir, deverei ter relações sexuais antes do casamento?
O que defendo é que fica a ideia de que não ali um problema filosófico realmente interessante, mas antes um interesse doutrinário religioso que precisa de ser acautelado. Não me parece, portanto, um genuíno problema filosófico, mas antes uma espécie de pedido de socorro de certas doutrinas religiosas à filosofia. Basta ver que, diferentemente dos problemas da existência de Deus ou da sua natureza, esses problemas colocam-se apenas no âmbito doutrinário restrito de religiões particulares. Para a maioria das religiões o assunto nem sequer se coloca. E, já agora, não estou bem a ver qual a relevância do exemplo do Lewis para o assunto. Lewis coloca um problema que diz respeito às nossas intuições jurídicas sobre a legitimidade da substituição penal e vê na paixão de Cristo uma ilustração radical da questão em causa. Por sinal, parece servir como objecção a esse aspecto do cristianismo, mas não tenho a certeza porque nunca estudei esse texto. Seja como for, isso nada mostra.
Não vejo qual seja exactamente o espantalho que faço. O mais curioso disto tudo é que, em minha opinião, há maneiras bem mais plausíveis e elegantes de justificar alguns desses aspectos doutrinários religiosos do que mobilizar toda essa parafernália filosófica.
Só mais uma nota: eu sei que Plantinga não é católico, Domingos. Por isso tive o cuidado de referir religiões, no plural, embora destacasse a religião católica por ser a que nos é mais familiar. E, já agora, não sabia que Swinburne se tinha convertido a outra religião.