Nem sempre a qualidade musical acompanha a crítica e o sucesso comercial. Falando apenas na área da música rock e afins, há casos gritantes de discos cujo insucesso — seja entre os críticos ou os consumidores — é, em minha opinião, imerecido. Claro que também acontece o inverso: discos cujo sucesso crítico ou comercial é, quanto a mim, claramente imerecido.
Neste post indico apenas uma dúzia de discos que são geralmente subvalorizados e que, portanto, mereciam mais atenção do que aquela que têm tido. Num outro post falarei dos que considero sobrevalorizados.
1. Pink Floyd, Atom Heart Mother (1970)
Este é o mais mal amado dos discos dos Pink Foyd. Até pelos próprios, que disseram tratar-se de um erro, considerando-o algo pomposo, pedante e inconsequente. O que só prova duas coisas: uma é que há erros preciosos e a outra é que nem sempre os próprios autores são os melhores avaliadores do seu trabalho. Como dizia alguém importante, apesar de serem elas a fabricarem os ovos não são certamente as galinhas quem melhor sabe avaliar a sua qualidade. Este disco tem duas partes claramente distintas. Na primeira, com apenas um tema, consegue-se como nunca fazer jus à designação "rock sinfónico" pois a orquestra sinfónica e a estrutura de base rock fundem-se de forma quase natural. O resultado é que ambos os aspectos saem reforçados, dando ao conjunto uma pujança empolgante, sem ser à custa de mais decibéis. Em contraste, a segunda parte (exceptuando a parte final de Summer '68, em que reaparece a orquestra em toda a sua força) é de uma serenidade estranha, tão característica dos melhores temas dos Pink Floyd, entre os quais não podem deixar de estar If e Fat Old Sun. Este é um disco onde os Pink Floyd conseguem reunir de forma admirável o seu contido psicadelismo lírico com a força instrumental que, de certa forma, anuncia a obra-prima The Dark Side of The Moon, quanto a mim os dois melhores discos dos Pink Floyd.
2. The Flying Burrito Brothers, The Gilded Palace of Sin (1969)
Apesar de a música country ter um público muito vasto nos EUA, este disco dos Flying Burrito Brothers foi um assinalável insucesso musical. Não seria correcto dizer que foi mal recebido pela crítica, mas continua injustamente arrumado no passado. Pessoalmente, nem sequer me costumo entusiasmar com a previsibilidade conservadora e algo delicodoce da maior parte da música country, mas Gram Parsons e Chris Hillman conseguem fazer músicas belíssimas e tocantes. A voz lírica e dorida de Parsons parece premonitoriamente uma despedida (Parsons morreu demasiado cedo) e a acidez das guitarras de Hillman afastam-nos definitivamente do universo conformista e rural de boa parte do country. Músicas como Sin City, Do the Right Thing, Dark End of the Street, Juanita e Hot Burrito #1 são eternas e nenhum outro disco de country alguma vez conseguiu reunir tanta beleza e simplicidade. Estou longe de conhecer bem o universo da música country, mas não tenho dúvidas que este disco, que é muito mais do que apenas country, é melhor do que Sweetheart of the Rodeo, dos The Byrds, frequentemente nomeado como o melhor disco de country de sempre.
3. Electric Light Orchestra, Eldorado (1970)
Eldorado dos Electric Light Orchestra é mais um disco que não foi propriamente um insucesso de crítica, mas que nem por isso deixou de cair no quase esquecimento. E é, como Atom Heart Mother, uma das raras combinações felizes de rock e orquestra sinfónica. A diferença aqui é que toda música deste disco foi originalmente escrita a pensar na orquestra e a gravação só teve lugar depois de todos os detalhes afinados. Não é fácil catalogar este disco, o que talvez justifique o facto de quase ninguém se lembrar dele. Não é bem rock sinfónico nem rock progressivo, pois soa por vezes demasiado pop (os Beatles vêm frequentemente à cabeça: veja-se a título de exemplo Mister Kingdom, em que parece estarmos a ouvir o melhor John Lennon). Mas também não é pop, pois é demasiado conceptual e elaborado para caber nesse compartimento. Eldorado é uma obra conceptual, em que cada canção, tanto a letra como a música propriamente dita, é o desenvolvimento da mesma ideia de partida: ilustrar a teimosia aventureira dos impenitentes sonhadores. Há quem sugira que Jeff Lynne se inspirou em As Aventuras de Walter Mitty, a short story de James Thurber, mas o título não deixa dúvidas que se trata da própria lenda sobre a busca da misteriosa cidade dourada, algures perdida no deserto do farwest americano, entre o Texas, o Novo México, o Arizona e a Califórnia, e que deu a volta à cabeça de tantos sonhadores oriundos do velho mundo. O mais interessante é que a música consegue criar essa atmosfera de aventura e fuga à realidade. Para isso contribuem não só as belíssimas melodias, ora melancólicas ora esperançosas, cantadas numa voz que parece vir de longe, graças ao frequente uso do eco, mas também as guitarras teimosamente arrastadas, os belíssimos e discretos coros, e sobretudo os expressivos arranjos orquestrais. E tudo isso sem pompas nem megalomanias pseudo-operáticas, com uma fluidez e uma beleza quase visível, que começa na abertura orquestral e segue imparavelmente com Can't Get it out of my Head, Boy Blue e Laredo Tornado, todas elas grandes músicas. Os Electric Light Orchestra nunca mais voltaram a fazer algo que sequer se aproxime disto. Pudera!
4. Jethro Tull, Warchild (1974)
Warchild é um disco excepcional? Certamente que não. E será o melhor disco dos Jethro Tull? Longe disso. Será, então, um disco para esquecer? A avaliar pela recepção crítica e pelo escasso sucesso comercial, dir-se-ia que sim. Mas daí não se segue que não seja um bom disco. Claro que não está à altura de obras marcantes como Thick as a Brick ou Aqualung. Mesmo que musicalmente algo inconsistente, tem algumas canções memoráveis, dignas do melhor dos Jethro Tull, como Skating Away, Only Solitaire, Third Hoorah e sobretudo a beleza secreta e invulgar de Ladies. A avaliação deste disco é prejudicada pela comparação com o brilhantismo dos dois discos atrás referidos, que deixaram expectativas elevadíssimas, em combinação com a enorme e justificada decepção de A Passion Play, que parece ter provado que os Jethro Tull eram também capazes do pior. Seja como for, apesar de os Jethro Tull terem muito melhor, este disco contém músicas que compensam largamente alguns momentos menos inspirados.
5. Fairport Convention, Rising for the Moon (1975)
Sem dúvida que o melhor folk-rock inglês se deve aos Fairport Convention. E não haverá muitas dúvidas que o melhor disco dos Fairport Convention é o inesquecível Liege and Lief (1969), com a aparentemente frágil voz de Sandy Denny em primeiro plano. Os Fairport Convention tiveram inúmeras formações, por onde passaram músicos brilhantes como Richard Thompson e tantos outros. Este Rising for the Moon marca o regresso de Sandy Denny após vários anos de ausência, compondo e cantando mais de metade das canções. Trata-se de um disco mais variado, tanto em termos instrumentais como melódicos, do que a maior parte dos discos dos Fairport Convention: do folk de inspiração mais tradicional, mas sem qualquer pendor etnográfico (como Restless e Iron Lion) às baladas insinuantes, como as de Liege and Lief (por exemplo, White Dress, Stranger to Himself, What is True e a agridoce Dawn), há um pouco de tudo. O disco começa, de resto, com a belíssima canção que dá título ao álbum, numa discreta simbiose de sons acústicos e eléctricos, com a encantadora voz de Sandy Denny no meio e os envolventes solos do violino e da guitarra eléctrica pelo meio. Começa em grande, portanto, mas acaba de forma soberba com One More Chance, uma das melhores interpretações de Sandy Denny que conheço. Pena é que Sandy Denny (que muitos talvez conheçam apenas por cantar com Robert Plant em The Battle of Evermore, no clássico Led Zeppelin IV) tenha morrido tão precocemente, vítima de uma estúpida queda das escadas. Mas são discos como este que a tornam eterna, um disco que não tem senão belas canções e que é seguramente dos melhores dos Fairport Convention.
6. Joe Jackson, Look Sharp! (1979)
Quem conheça Joe Jackson apenas pelos seus mais recentes discos de originais dificilmente imagina que ele já fez música assim. Este disco de estreia de Joe Jackson surgiu ainda no primeiro rescaldo do punk. O punk não tinha musicalmente muito para dar (há sempre excepções, como The Clash) mas deu tudo intensamente, de uma vez e depressa, sendo discos como Look Sharp! a indicar uma saída promissora do marasmo, dando início à new wave britânica. Aos primeiros acordes do tema de abertura, One More Time, percebe-se imediatamente que esta música retém o melhor do punk (o puro concentrado de energia e a simplicidade de recursos instrumentais), mas que tem também tudo o que faltava ao punk da altura: imaginação, criatividade, capacidade de surpreender, sentido melódico e... uma pontinha de ironia. Ao contrário de boa parte do punk, é um disco bem disposto que transpira saúde musical, mostrando que uma bateria, um baixo e uma guitarra eléctrica despojados de quaisquer efeitos — e um piano que aparece oportuna e ocasionalmente — podem gerar muita energia sem precisarem de se atrapalhar mutuamente e de fazer muito barulho (veja-se Baby Stick Around, Fools in Love e o tema que dá nome ao álbum, por exemplo). Não passa de rock básico, cru e directo — com letras a condizer —, mas o básico também pode ser bem feito e inventivo. A par dos primeiros discos de Elvis Costello & The Attractions e de Ian Dury & The Blockheads, este disco de Joe Jackson está entre o melhor que a new wave britânica ofereceu. Não é bem a opinião do próprio Joe Jackson que considera o seu desinteressante segundo álbum I'm the Man melhor do que este. Mais uma galinha a avaliar (mal) a qualidade dos seus ovos.
7. Romeo Void, It's a Condition (1981)
Da new wave inglesa de Joe Jackson passamos directamente para a new wave americana dos quase ignorados Romeo Void. Os Romeo Void, formados por estudantes do San Francisco Art Institute e liderados pela cantora de origem índia Debora Iyall, são a prova de que a new wave americana não é uma coisa exclusiva do CBGB nova-iorquino. It's a Condition é o seu disco de estreia e, sendo muito diferente de Closer dos Joy Division, gravado um ano antes, as afinidades entre ambos não deixam de ser audíveis. As semelhanças mais óbvias ouvem-se na algo ansiosa secção rítmica, com uma bateria e um baixo secos, funcionando como um bloco maciço, a que se acrescenta uma guitarra contida e simultaneamente omnipresente. Mas as diferenças sobrepõem-se, felizmente, a qualquer semelhança. Ao contrário de Closer, este não é um disco sombrio e introspectivo, pois as letras de Iyall têm um carácter abertamente desafiador e combativo. E a música segue a mesma linha: o som da guitarra é invariavelmente limpo, preciso e assertivo; as palavras cantadas surgem sempre em lugar de destaque, de modo completamente inteligível e transparente; o saxofone parece muitas vezes uma espécie de comentário musical que ora sublinha certas linhas melódicas ora as interpela, conferindo um som invulgar ao conjunto. O resultado é uma entusiasmante mistura de soul, de funk, de free jazz e de rock de garagem. Não é daqueles discos que impressionam à primeira, mas vai melhorando a cada audição, sobretudo em audições atentas. Todas as músicas do disco são excelentes e algumas tornam-se quase hipnóticas (ouça-se Nothing For Me, em que o sax e a bateria são os grandes protagonistas, ou a secura desarmante de Love is an Illness, ou a concisão instrumental de Confrontation, ou ainda a vivacidade de Fear to Fear).
8. The Style Council, Our Favourite Shop (1985)
Uma mão cheia de boas canções (ok, uma ou outra dispensáveis) é o que encontramos neste disco pop a piscar o olho ao funk e ao jazz. Poucos discos de música assumidamente pop conseguem reunir um lote de tão boas canções, sem cair na banalidade de oferecer pouco mais do que um refrão de efeito garantido. Não, em Our Favourite Shop, de The Style Council (do ex-Jam Paul Weller e do ex-Dexys Midnight Runners Mike Talbot), há canções pop que não se destinam apenas a mastigar e deitar fora; há boas canções do princípio ao fim. Mesmo as letras, que frequentemente dão expressão a uma certa consciência social e política, estão muito longe do universo do 'I love you baby' habitual. Canções como All Gone Away, Come to Milton Keynes, A Man of Great Promise ou Everything to Lose são muito mais do que cançonetas engraçaditas, sem comparação com as dos seus contemporâneos Pet Shop Boys e outros do género.
9. Del Amitri, Del Amitri (1985)
Os anos 80 do século passado não foram apenas os tempos dos góticos e depressivos nem da pop electrónica. Foi também o tempo das canções suportadas por bordados de guitarras, cujos pioneiros e principal inspiração foram The Smiths. Este disco de estreia dos escoceses Del Amitri é um dos melhores exemplos desse tipo de música, tendo surgido um ano após o aclamado álbum de estreia de The Smiths. Claro que os Del Amitri não têm um Johnny Marr na guitarra nem sobretudo uma voz como a de Morrissey, mas têm dois excelentes guitarristas que mais parecem um só, mas com quatro mãos. Arrisco-me a dizer que os Smiths, com tantas canções marcantes, não têm um disco de originais tão bom como este Del Amitri. Dá a ideia que os Del Amitri — ao contrário dos Smiths, que foram espalhando pérolas pelos seus vários álbuns — concentraram aqui toda a sua inspiração musical. Tanto mais que nenhum dos muitos discos posteriores dos Del Amitri tem grande interesse. Canções como Hammering Heart, Former Owner, Ceasefire e principalmente Deceive Yourself estão ao nível de algumas das melhores canções dos Smiths.
10. David Sylvian, Gone to Earth (1986)
Gone to Earth é um álbum duplo, com uma primeira parte constituída por sete canções e uma segunda parte totalmente instrumental, composta por dez músicas. Ao ouvir as canções da primeira parte quase se fica com a impressão de que David Sylvian está a cantar apenas para si próprio, de forma algo preguiçosa, sem qualquer esforço e como que envolvido por uma suave nuvem instrumental de ecos de sintetizadores. À sensação de espacialidade acrescenta-se, em primeiro plano, a voz tranquila de Sylvian, por vezes dobrada por si próprio. Mas um dos aspectos que torna a sonoridade deste disco única são as recorrentes intrusões das guitarras de sabor jazzístico de Robert Fripp, Bill Nelson e do próprio David Sylvian, além dos envolventes solos de fliscórnio (um instrumento muito semelhante ao trompete). A primeira parte termina com uma das minhas canções preferidas de sempre, uma jóia discreta chamada Silver Moon (com guitarras de Bill Nelson e do próprio Sylvian, que também se divide pelo piano). A segunda parte é o que se costuma chamar de ambient music. Mas, diferentemente de muita da chamada música ambiental, cada tema tem uma identidade melódica bem vincada, quase sempre dada pelas guitarras. Como curiosidade, a voz que se ouve (a falar) na primeira faixa instrumental, The Healing Place, é do famoso artista conceptual alemão Joseph Beuys, que viria a falecer nesse mesmo ano.
11. Brian Eno & John Cale, Wrong Way Up (1990)
Há quem pense que é na fronteira do rock experimental, com o minimalismo e a música ambiental electrónica que se encontra o que de mais interessante Brian Eno gravou em seu nome. E há quem pense em John Cale como tudo menos um compositor de música pop. Nada mais errado. Creio ser na pop que Brian Eno, em especial, consegue mostrar o melhor da sua criatividade musical. A prová-lo está este disco de ambos, que é, em minha opinião, um dos melhores discos pop de sempre. Como em nenhum outro disco, Eno usa de forma inteligente todas as suas capacidades na manipulação dos recursos electrónicos ao serviço de ideias melódicas muito simples e eficazes, mostrando que a pop também sabe transformar pouca coisa em algo capaz de resistir com elegância ao teste do tempo. A voz de Cale surge macia e envolvente como nunca (ver, por exemplo, In the Backroom, Cordoba, The River). E canções como One World e Spinning Away (principalmente esta) proporcionam momentos de inocente e gratuita felicidade auditiva. Pena é a capa da autoria de Eno, que dificilmente se imagina pior. Nem tudo é perfeito, afinal.
12. Opeth, Damnation (2013)
Damnation é mais um disco aclamado pela crítica mas que nem por isso tem tido a atenção que merece. Talvez isso se deva ao facto de ser um disco atípico na discografia dos suecos Opeth, geralmente associados ao death metal. Por outro lado, aqueles que não apreciam particularmente este género musical não prestam a devida atenção aos discos dos Opeth. É pena. Eu próprio precisei de ajuda amiga para lá chegar (obrigado, Pedro) e posso dizer que fiquei agradavelmente surpreendido. Imagine-se o que é ouvir um som que, sem deixar de ser actual, nos transporta para o melhor do rock progressivo dos King Crimson, mais precisamente das faixas mais contemplativas de In The Court of Crimson King (a voz e a forma de cantar de Mikael Åkerfeldt faz por vezes lembrar a de Carl Palmer), com uma pontinha de Camel: as texturas leves e envolventes, com predomínio do som orquestral dos teclados (veja-se To Rid the Disease), a combinação entre a guitarra acústica e a malhas melancólicas da guitarra eléctrica (veja-se o início de In My Time of Need ou também Hope Leaves), assim como as melodias sempre cuidadosamente trabalhadas e imprevisíveis, são de uma beleza inesperada. Tudo surge com uma precisão e uma naturalidade notáveis, parecendo não haver ali uma única nota dispensável nem uma única nota a menos. Até agora, está sem dúvida entre os melhores discos deste século, mostrando que o rock progressivo ainda tinha afinal muito para dar. Uma curiosidade: Mikael Åkerfeldt dedicou este disco à sua avó, falecida no ano em que foi gravado.
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