sábado, 2 de abril de 2016

Há sentimentos não sentidos?

Ponte Fantasma (Rio Arade)

A pergunta deste post é uma reformulação algo atrevida do título da conferência Há dores não sentidas? proferida por João Branquinho no colóquio O Que é a Consciência? que decorreu na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em Novembro do ano passado e que, graças às Edições Passante de Lbtavares, tive agora a oportunidade de ver (com um agradecimento ao João Carlos Silva pela partilha no FB).

É sempre muito estimulante ouvir João Branquinho porque, entre outras coisas importantes, nos obriga a pensar e a repensar melhor sobre algumas das nossas mais estáveis intuições filosóficas. Não tenho dúvidas de que o panorama filosófico nacional tem melhorado muito nos últimos vinte anos e que isso se deve principalmente ao trabalho, deliberadamente discreto mas eficaz, de João Branquinho — seja directamente, pelos resultados da sua própria investigação, seja indirectamente, pelos reflexos disso nos que com ele aprenderam e acabaram por enveredar também pela investigação filosófica ou mesmo pelo efeito que o seu ensino tem tido no apuramento da qualidade da divulgação filosófica no nosso país.

Na sua conferência, JB responde afirmativa e, talvez, surpreendentemente à pergunta colocada: sim, há dores não sentidas. Se não me perdi na argumentação (e é bem possível que me tenha perdido em algum passo, pois podem-me ter escapado algumas das várias subtilezas argumentativas), parece-me que a estratégia de JB é essencialmente negativa e indirecta, podendo ser grosso modo resumida num Modus Tollens:  

1) Se não há dores não sentidas (como dores), então a tese da                    
    luminosidade é verdadeira.
2) Mas a tese da luminosidade é falsa.
3) Logo, não é o caso que não haja dores não sentidas (como dores).

Relativamente à premissa (1), JB explicou com suficiente detalhe que há várias interpretações para a antecedente da condicional, acrescentando que, para o que lhe interessa, ela tanto pode ser lida epistemicamente como trivialmente. Esclareceu também o significado da consequente da premissa, de modo que a tese da luminosidade (introduzida por Williamson, mas aplicada aqui ao caso da dor) pode ser genericamente descrita como a perspectiva de que o mundo da consciência fenoménica é epistemicamente transparente para o sujeito. Neste caso, trata-se da ideia de que os estados dolorosos de um dado sujeito são epistemicamente transparentes para o sujeito em causa, sem que nada permaneça na obscuridade. A tese da luminosidade subdivide-se, neste caso, em duas subteses: a) se eu tenho agora uma dor, estou em condições de saber que tenho agora uma dor, e b) se não tenho agora uma dor, estou em condições de saber que não tenho agora uma dor.

A parte principal da estratégia de JB é precisamente mostrar que ambas as teses anteriores são falsas e que, portanto a tese da luminosidade é falsa, ou seja, trata-se de justificar o que é afirmado na premissa (2), de cuja verdade o argumento depende crucialmente, pois a condicional da premissa (1) é tacitamente aceite por ambos os lados da disputa. Nessa justificação, JB serve-se não só de argumentação estritamente filosófica (por exemplo, sobre a diferença entre o que ocorre no domínio da consciência fenoménica e a categorizarão envolvida na consciência reflexiva acerca daquela), mas também se apoia em informação empírica relevante, nomeadamente da neurobiologia (por exemplo, ter uma dor no braço que é sentida não como dor mas como outra coisa, nomeadamente uma irritação cutânea).

A conclusão, apesar de se seguir das premissas e de JB nos dar boas razões para pensarmos que elas são verdadeiras, não deixa de ser surpreendente para muitos de nós. Mas algo mais me deixou a pensar: será que a mesma estratégia seguida por JB se pode aplicar também a sentimentos, como a pena, o medo, o ciúme, a alegria ou a tristeza? Claro que JB não tinha isto em mente, mas foi para mim inevitável reformular a questão inicial, de modo a avaliar melhor o alcance dos argumentos apresentados. 

Num primeiro momento, pensei que a mesma estratégia não permitia concluir que há sentimentos não sentidos. Note-se que não está em causa que tenhamos certos sentimentos dos quais não nos damos conta quando os estamos a ter. Penso que isso não é sequer problemático, pois facilmente reconhecemos que podemos estar a sentir ciúme sem nos darmos conta disso. O que está em causa é se há sentimentos que nem sequer são sentidos: podemos estar tristes sem sentirmos a tristeza? Podemos estar com medo sem sentirmos o medo? Se há quem pense que é uma verdade necessária que não há dores não sentidas (a tese que, de resto, JB procura refutar), parece ainda mais plausível afirmar que é uma verdade necessária que não há sentimentos não sentidos. Facilmente somos tentados a pensar que é contraditório afirmar que há sentimentos não sentidos. 

Mas, pensando melhor, talvez a resposta de JB funcione igualmente (tenho de rever a conferência com mais atenção e de pensar melhor nisto tudo) se falarmos de sentimentos em vez de dores. Até porque se as sensações, como a sensação de dor, envolvem algo mais do que uma dada fenomenologia (envolvem elementos cognitivos ou algo próximo disso como, por exemplo, um foco de atenção), isso é ainda mais claro no caso dos sentimentos, cuja componente cognitiva plausivelmente chega a incluir atitudes proposicionais como crenças e desejos: é improvável que alguém sinta medo sem acreditar que corre perigo ou que está sob ameaça de alguém. Assim, se a tese da luminosidade é descartada com base na ideia de que saber que tenho agora uma dor envolve mais do que a mera consciência fenoménica da dor, o mesmo se aplica, por maioria de razão, ao caso dos sentimentos. Neste caso, posso até conceder que haja uma total transparência fenoménica sem que tal implique que, se estou agora a sentir medo, então estou em condições de saber agora isso. No caso dos sentimentos, a componente fenoménica é mais claramente apenas uma condição necessária mas não suficiente, sendo mesmo provável que diferentes sentimentos partilhem o mesmo tipo de fenomenologia: por exemplo, os sentimentos de euforia e de exultação talvez se distingam mais pela componente cognitiva envolvida do que pela sua fenomenologia. 

Já o poeta, esse grande fingidor, tinha dito que podemos sentir as dores que não temos. JB acrescenta que também podemos não sentir as dores que temos. E agora parece que até podemos não sentir os sentimentos que temos.

Estranho, agora que cheguei ao fim do post, fico com a sensação de que algo correu mal no meu raciocínio. Será?

6 comentários:

  1. Assim de repente ocorre-me dizer o seguinte: se o sentimento tem uma componente fenomenológica (f) e uma componente cognitiva (c), então para que ele não seja transparente para nós, significa que uma de três coisas aconteceram: ou f não é transparente (não sinto a "sensação" de medo) ou c não é transparente (não me apercebo que tenho a crença de que algo é perigoso) ou f e c não são transparentes. Ora, não parece possível que f não seja transparente (tenho medo sem sentir a sensação de medo?). Resta a hipótese de c não ser transparente. É razoável a hipótese de algo tão complexo como uma crença tão elaborada como "isso é perigoso" ocorra no sujeito sem que isso lhe seja transparente? Se calhar, é...

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    1. Caro Tiago, há muita discussão filosófica sobre a natureza do sentimento e que relação há entre sentimento e emoção, caso se considere haver distinção entre uma coisa e outra. Mesmo alguns dos que defendem uma concepção da emoção essencialmente baseada no sentimento (por oposição aos defensores da perspectiva cognitivista) admitem que os sentimentos tem uma componente intencional e até que podem envolver uma espécie de juízos avaliativos que não assumem uma forma proposicional (algo quase instintivo, digamos). O que quero sublinhar com isto é que a componente não fenomenológica do sentimento pode ser algo verdadeiramente complexo e dificilmente categorizável. Por outro lado, quando no texto dei o exemplo de que sentir medo envolve a crença de que se corre perigo, isto é só mesmo um exemplo. Na verdade podem estar, e frequentemente estão, envolvidas várias crenças, desejos, receios, etc. Portanto, as coisas podem ser mesmo muito mais complexas do que caricatura que o Tiago retoricamente sugere. Por fim, sublinho também que toda a conferência do professor João Branquinho se destinou precisamente a mostrar que f não é transparente, como pensava ter deixado claro (pelos vistos, sem sucesso) no meu post. Obrigado pelo seu comentário.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. Ok, agora a sua dúvida fica bastante mais clara para mim, Tiago, e é uma dúvida bastante interessante.

      Devo, contudo, dizer que o professor João Branquinho não referiu haver qualquer componente cognitiva a propósito da dor; eu é que o referi a propósito dos sentimentos, caso em que isso é reconhecidamente bastante mais plausível. Claro que JB refere também aspectos como o foco de atenção a propósito das dores, mas não sei se isso será suficiente para falarmos de uma componente cognitiva. Seja como for, mesmo estando a falar apenas da consciência fenoménica, é importante ter em conta que JB está a avaliar a verdade da proposição de que não pode haver dores não sentidas em sentido epistémico. Lida em sentido epidémico, a afirmação de que não há dores não sentidas significa que, necessariamente, a pessoa que sente dores categoriza esse estado interno fenoménico como dor. E é precisamente isto que JB acha problemático e que põe em causa a tese da transparência, não esquecendo que se trata de transparência epistémica.

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  3. Caro Aires, obrigado pela resposta.

    Quando diz:

    “Por fim, sublinho também que toda a conferência do professor João Branquinho se destinou precisamente a mostrar que f não é transparente, como pensava ter deixado claro (pelos vistos, sem sucesso) no meu post. “

    A minha leitura desta frase é que é a falha em relação a f (e não a c) a responsável pela não transparência da dor.

    No entanto, destaco esta parte:

    “Assim, se a tese da luminosidade é descartada com base na ideia de que saber que tenho agora uma dor envolve mais do que a mera consciência fenoménica da dor, o mesmo se aplica, por maioria de razão, ao caso dos sentimentos.”

    Por esta frase, pensei que a justificação para a possível não transparência da dor fosse a possível não transparência da sua parte cognitiva ou intencional (o tal "mais que a mera consciência fenoménica"). Isto é, a dor não seria transparente não pela ausência ou equívoco em relação à sua parte fenoménica, mas pela ausência ou equívoco em relação à sua parte intencional ou cognitiva. Por isso, pensei que o argumento funcionaria “por maioria de razão, ao caso dos sentimentos” se ocorresse um equivoco ou ausência da sua parte cognitiva….

    Nesta parte também:

    “Nessa justificação, JB serve-se não só de argumentação estritamente filosófica (por exemplo, sobre a diferença entre o que ocorre no domínio da consciência fenoménica e a categorizarão envolvida na consciência reflexiva acerca daquela), mas também se apoia em informação empírica relevante, nomeadamente da neurobiologia (por exemplo, ter uma dor no braço que é sentida não como dor mas como outra coisa, nomeadamente uma irritação cutânea).”

    Pareceu-me, mais uma vez, que a justificação para a refutação da luminosidade seria um falha na parte cognitiva ou intencional (“categorização" pela "consciência reflexiva”, “como outra coisa”), e não na parte fenoménica.

    Estou a ver mal a coisa?

    Se bem que de repente me parece a irritação cutânea é em tudo diferente de uma dor no braço… Tanto a nível fenoménico como cognitivo – a ainda assim se diz que se trata de uma dor no braço e não de uma irritação cutânea… Em relação a este ponto, sinceramente, não fiquei esclarecido sobre o modo como JB argumenta a favor da não luminosidade. O que define, afinal, uma dor no braço para que se possa dizer que a sensação de irritação cutânea não seja de facto uma irritação cutânea mas uma dor no braço?

    Obrigado
    Tiago

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  4. Não sei se entendi direito. A dor mais comum, em fisiologia, seria estímulos de nervos específicos (tem dois tipos, um para dor cronica e outro para dor aguda), interpretados pelo cérebro como "dor"... Se não há interpretação do cérebro como "dor", não seria dor mesmo que haja uma lesão, neste caso tempos lesão sem a dor... Agora se por outros estímulos o cérebro interpreta como dor (dor fantasma: dor de membro ausente), é considerado como dor também. Ou seja, acho que dor, como entendemos, é uma interpretação do cérebro diante de estímulos. Sem esta avaliação do cérebro, não haveria dor...

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