Muitas
pessoas consideram criminoso destruir, danificar ou simplesmente alterar obras
de arte, argumentando que a arte é algo sagrado e que cada obra de arte, sendo
fruto de um acto criador irrepetível, é única e insubstituível. Esta ideia
baseia-se também na convicção de que a arte nos oferece algo que de nenhum outro
modo pode ser obtido, nisso consistindo o seu incomparável valor. Assim, ao
destruir ou adulterar uma obra de arte original, estar-se-ia a privar toda a
humanidade — e não apenas o proprietário dessa obra — de algo insubstituível
que só nela se poderia encontrar.
Mas
terão essas pessoas razão? Uma das coisas que a história da arte dos últimos
cem anos parece mostrar é que os artistas modernos estão apostados em tirar a
razão a todos os que pensam ter algo importante a dizer sobre arte. Dá a ideia
que qualquer teoria acerca da arte e do seu valor acaba, mais cedo ou mais
tarde, por ser refutada pela própria arte.
Um bom
exemplo disso é o provocador quadro Erased
de Kooning Drawing (Desenho de de
Kooning Apagado), do célebre artista americano Robert Rauschenberg. Esta
obra de 1953, adquirida pelo Museu de Arte Moderna de São Francisco, parece
refutar de forma desarmante a ideia de que é errado destruir, desfazer ou
alterar intencionalmente obras de arte, ainda que as obras em causa tenham sido
criadas pelos mais destacados e reconhecidos artistas mundiais.
Não
basta olhar atentamente para o quadro de Rauschenberg para descobrirmos isso,
pelo que também não estamos perante um quadro que — ao contrário do que muitos
pensam acerca das artes plásticas — se destina à mera contemplação estética. O
essencial está, pois, no que não se vê quando se olha para ele. Precisamos
mesmo de conhecer a história da origem deste quadro.
Rauschenberg,
que já nos anos 50 do século XX se tinha afirmado como um dos mais destacados
artistas americanos de vanguarda, começou por essa altura a fazer algumas
experiências em que a borracha — em vez dos habituais pincéis, lápis, paus de
carvão, barras de pastel, etc. — se tornava o principal utensílio de criação
artística. Em vez de pintar ou desenhar, o objectivo artístico de Rauschenberg
era apagar desenhos já feitos. Mas Rauschenberg queria, além disso, que os
desenhos apagados fossem eles próprios obras de arte. Assim, não bastava apagar
os seus próprios desenhos ou pinturas, caso em que só passariam a ser arte
depois do processo terminado, ou seja, depois de os ter apagado. O objetivo de
Rauschenberg era, pois, apagar verdadeiras obras de arte; obras de arte pré-existentes
e cujo estatuto artístico fosse indisputável. Foi assim que Rauschenberg
procurou o mais sonante e respeitado artista americano do seu tempo, o
expressionista abstrato Willem de Kooning, a quem explicou a ideia, pedindo-lhe
uma obra para esse fim.
De
Kooning compreendeu a ideia de Rauschenberg e, após alguma hesitação, decidiu
ceder-lhe um desenho para este apagar e, desse modo, criar uma obra de arte
diferente. De Kooning escolheu propositadamente uma obra muito difícil de
apagar; um desenho feito com carvão, óleo, pastel e outros materiais bastante
resistentes. Rauschenberg diz ter levado mais de um mês de trabalho intenso
para fazer desaparecer totalmente a obra de de Kooning. Tratando-se agora de uma
obra totalmente nova, Rauschenberg deu-lhe um novo título, Desenho de de Kooning Apagado,
e pediu a outro prestigiado artista americano, Jasper Johns, para escrever
o título no próprio quadro.
Alguns críticos de arte da altura interpretaram Erased de Kooning Drawing como um gesto de protesto contra o expressionismo abstrato, de que de Kooning era um dos maiores representantes. Outros interpretaram-no simplesmente como um acto destrutivo de puro vandalismo. Mas quando perguntaram a Rauschenberg como interpretava o que ele próprio fez, a sua resposta foi: «é poesia».
Estamos,
portanto, perante uma obra de arte que resulta da destruição definitiva de
outra obra de arte — e até parece ter havido o cuidado de nem sequer se preservarem imagens
da obra de arte apagada.
Quem
disse, pois, que é inaceitável destruir obras de arte? Como se vê, a própria
história da arte nos mostra de forma contundente que destruir obras de arte
pode até ser um acto artístico. Afinal, a arte será mesmo sagrada? Ou será que só
não é sagrada para os artistas?
Nota: Este texto foi escrito para a comemoração do Dia Mundial de Filosofia de 2015 na Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, de acordo com o tema proposto: uma pequena reflexão filosófica sobre um quadro ou escultura.
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