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terça-feira, 17 de novembro de 2015

Destruir obras de arte em nome da arte



Muitas pessoas consideram criminoso destruir, danificar ou simplesmente alterar obras de arte, argumentando que a arte é algo sagrado e que cada obra de arte, sendo fruto de um acto criador irrepetível, é única e insubstituível. Esta ideia baseia-se também na convicção de que a arte nos oferece algo que de nenhum outro modo pode ser obtido, nisso consistindo o seu incomparável valor. Assim, ao destruir ou adulterar uma obra de arte original, estar-se-ia a privar toda a humanidade — e não apenas o proprietário dessa obra — de algo insubstituível que só nela se poderia encontrar.

Mas terão essas pessoas razão? Uma das coisas que a história da arte dos últimos cem anos parece mostrar é que os artistas modernos estão apostados em tirar a razão a todos os que pensam ter algo importante a dizer sobre arte. Dá a ideia que qualquer teoria acerca da arte e do seu valor acaba, mais cedo ou mais tarde, por ser refutada pela própria arte.

Um bom exemplo disso é o provocador quadro Erased de Kooning Drawing (Desenho de de Kooning Apagado), do célebre artista americano Robert Rauschenberg. Esta obra de 1953, adquirida pelo Museu de Arte Moderna de São Francisco, parece refutar de forma desarmante a ideia de que é errado destruir, desfazer ou alterar intencionalmente obras de arte, ainda que as obras em causa tenham sido criadas pelos mais destacados e reconhecidos artistas mundiais.

Não basta olhar atentamente para o quadro de Rauschenberg para descobrirmos isso, pelo que também não estamos perante um quadro que — ao contrário do que muitos pensam acerca das artes plásticas — se destina à mera contemplação estética. O essencial está, pois, no que não se vê quando se olha para ele. Precisamos mesmo de conhecer a história da origem deste quadro.

Rauschenberg, que já nos anos 50 do século XX se tinha afirmado como um dos mais destacados artistas americanos de vanguarda, começou por essa altura a fazer algumas experiências em que a borracha — em vez dos habituais pincéis, lápis, paus de carvão, barras de pastel, etc. — se tornava o principal utensílio de criação artística. Em vez de pintar ou desenhar, o objectivo artístico de Rauschenberg era apagar desenhos já feitos. Mas Rauschenberg queria, além disso, que os desenhos apagados fossem eles próprios obras de arte. Assim, não bastava apagar os seus próprios desenhos ou pinturas, caso em que só passariam a ser arte depois do processo terminado, ou seja, depois de os ter apagado. O objetivo de Rauschenberg era, pois, apagar verdadeiras obras de arte; obras de arte pré-existentes e cujo estatuto artístico fosse indisputável. Foi assim que Rauschenberg procurou o mais sonante e respeitado artista americano do seu tempo, o expressionista abstrato Willem de Kooning, a quem explicou a ideia, pedindo-lhe uma obra para esse fim.

De Kooning compreendeu a ideia de Rauschenberg e, após alguma hesitação, decidiu ceder-lhe um desenho para este apagar e, desse modo, criar uma obra de arte diferente. De Kooning escolheu propositadamente uma obra muito difícil de apagar; um desenho feito com carvão, óleo, pastel e outros materiais bastante resistentes. Rauschenberg diz ter levado mais de um mês de trabalho intenso para fazer desaparecer totalmente a obra de de Kooning. Tratando-se agora de uma obra totalmente nova, Rauschenberg deu-lhe um novo título, Desenho de de Kooning Apagado, e pediu a outro prestigiado artista americano, Jasper Johns, para escrever o título no próprio quadro.

Alguns críticos de arte da altura interpretaram Erased de Kooning Drawing como um gesto de protesto contra o expressionismo abstrato, de que de Kooning era um dos maiores representantes. Outros interpretaram-no simplesmente como um acto destrutivo de puro vandalismo. Mas quando perguntaram a Rauschenberg como interpretava o que ele próprio fez, a sua resposta foi: «é poesia». 

Estamos, portanto, perante uma obra de arte que resulta da destruição definitiva de outra obra de arte — e até parece ter havido o cuidado de nem sequer se preservarem imagens da obra de arte apagada.
Quem disse, pois, que é inaceitável destruir obras de arte? Como se vê, a própria história da arte nos mostra de forma contundente que destruir obras de arte pode até ser um acto artístico. Afinal, a arte será mesmo sagrada? Ou será que só não é sagrada para os artistas?

Nota: Este texto foi escrito para a comemoração do Dia Mundial de Filosofia de 2015 na Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, de acordo com o tema proposto: uma pequena reflexão filosófica sobre um quadro ou escultura.  

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