sexta-feira, 26 de junho de 2020

Deus existe? O essencial


Depois de estar disponível apenas no formato eBook, foi finalmente publicado em papel o livro A Existência de Deus: o essencial, de Desidério Murcho (Plátano Editora). O livro, com aproximadamente 100 páginas, foi escrito a pensar nos estudantes e professores do 11º ano, mas também no leitor comum, interessado na questão central da filosofia da religião. E, já agora, penso que é mais uma excelente capa, na linha das anteriores da mesma colecção, com a reprodução de outra obra do artista Baltazar Torres.

Um dos aspectos que torna este livro particularmente interessante para estudantes e professores é que segue a par e passo as Aprendizagens Essenciais (AE) de Filosofia, destacando as versões dos argumentos sobre a existência de Deus aí indicadas. E apresenta, como proposto nas AE, a «redução dos argumentos a formas de inferência válida estudadas e análise da sua validade e solidez», o que não é fácil encontrar noutros livros de carácter introdutório.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Diferentes tipos de objectividade e a objectividade dos juízos morais


Se não houver factos morais, também não poderá haver juízos morais objectivos? Eis o que diz John Rawls sobre isso (com algumas adaptações à tradução portuguesa, que deixa algo a desejar).

Estou a pensar naqueles que sustentam que a objectividade dos juízos e das crenças depende de disporem de uma explicação adequada que se inscreva numa perspectiva causal do conhecimento. Esses entendem que um juízo (ou uma crença) só é objectivo(a) quando o conteúdo do nosso juízo é (em parte) função de um tipo apropriado de processo causal que afecta a nossa experiência perceptiva, por hipótese, aquela em que se baseia o nosso juízo. […]

Por exemplo, o nosso juízo perceptivo de que o gato está no tapete é o resultado (em parte) de um adequado processo causal que afecta a nossa experiência perceptiva de o gato estar no tapete. […] Na mesma linha, até as próprias crenças dos físicos teóricos serão explicadas desta forma. O predicado da objectividade só se associa a estas crenças se dispõe de uma explicação que mostra que a sua afirmação por parte dos físicos é (em parte) o resultado de processo causal adequado, relacionado com o facto de o mundo ser aquilo que os físicos imaginam que é. 

[…] Admitimos que o requisito causal faz parte de uma concepção da objectividade apropriada para os juízos da razão teórica, ou, pelo menos, para grande parte da ciência natural, e também para os juízos perceptivos.

No entanto, esse requisito não é essencial para todas as concepções da objectividade, e seguramente não o é para uma concepção adequada para o raciocínio moral e político. Isso é posto em evidência pelo facto de não exigirmos de um juízo moral ou político que as razões que o sustentam mostrem que ele se encontra ligado a um processo causal adequado, nem exigimos uma explicação dele no âmbito da psicologia cognitiva. Pelo contrário, basta que as razões apresentadas sejam suficientemente fortes. Nós explicamos o nosso juízo, na medida em que o fazemos, simplesmente através da sondagem dos seus fundamentos: a explicação assenta nas razões que sinceramente afirmamos. Que há mais a dizer, excepto questionar a nossa sinceridade e a nossa razoabilidade?

É evidente que, dados os muitos obstáculos que se colocam ao acordo sobre o juízo político, mesmo entre pessoas razoáveis, não chegaremos sempre, ou até na maior parte das ocasiões, a acordo. Mas devemos, pelo menos, ser capazes de reduzir as nossas diferenças e chegar, assim, próximo de um acordo, e isso à luz do que consideramos serem os princípios e critérios partilhados de raciocínio prático.

J. Rawls, O Liberalismo Político. Lisboa: Editorial Presença, 1996, pp. 128-129. 

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Filosofia da morte

Três Diálogos Sobre a Morte, de Pedro Galvão, é o mais recente livro da colecção Filosofia Aberta (Gradiva), publicado esta semana. Outros autores portugueses, como José Cardoso Pires ou Maria Filomena Mónica, escreveram sobre a morte. Mas, diferentemente dos anteriores, este é o primeiro livro de filosofia da morte escrito por um filósofo português. E é, provavelmente, o único livro no mundo de filosofia da morte escrito em forma de diálogo. A forma do diálogo, quando é bem utilizada — como é aqui o caso —, permite apresentar e discutir as ideias de uma maneira mais natural, mais envolvente e menos académica.
 

Os diálogos têm lugar em Londres, no final do século XVIII, mas estão também em jogo ideias que fazem parte da discussão recente na filosofia da morte. Assim, podemos ver discutidas não só as ideias de Epicuro, Lucrécio, Descartes, Leibniz, Locke e Hume sobre a natureza da morte, mas também as de filósofos mais recentes como Derek Parfit, Jeff McMahan, David Wiggins, Bernard Williams, Eric Olson, Thomas Nagel e Richard Swinburne, entre outros. 

Os intervenientes no diálogo são quatro. Ou antes, são cinco, como se pode ver no preâmbulo e confirmar nos retratos então realizados.  

Já não era novo, mas estava ainda longe da velhice, embora a sua posição na hierarquia militar pudesse fazer supor o contrário. O General Grant morreu há pouco mais de quinze dias. A sua morte, não sendo repentina, apanhou‑o bastante de surpresa, visto que há menos de um mês parecia gozar de plena saúde. Excepto no último dia, a doença não o fez sofrer muito. Manteve‑se lúcido até ao fim, pelo que dispôs de tempo suficiente para se despedir dos amigos, revisitar alguns livros, planear o seu próprio funeral e escolher a sua sepultura, que sobretudo havia de ser modesta. 

O interesse pelas indagações filosóficas levou o General Grant a frequentar o salão de Lady Lucy, em Londres, onde se reuniam alguns dos espíritos mais sagazes da cidade — e também um segmento apreciável de pedantes e bajuladores, na sua opinião. Quando Lady Lucy o visitou pela última vez, o general, ciente da iminência do seu fim, fez‑lhe um único pedido. Gostaria de uma espécie de homenagem póstuma, que seria esta: para celebrar o seu gosto pela filosofia, ser‑lhe‑iam dedicadas várias sessões de discussão filosófica. Três, mais precisamente, uma por semana e todas sobre o mesmo tema: a morte. Deixaria escritas três perguntas muito sucintas, selando cada uma delas num envelope numerado, que só deveria ser aberto à hora prevista para o começo do debate. Assim fez. A Lady Lucy, como de costume, caberia moderar as discussões, sem se inibir de ter voz activa nas mesmas. Estas, no entanto, deveriam ficar confinadas a um círculo muito estrito do seu salão, constituído por apenas quatro pessoas, e isto a contar com ela própria. Vejamos então, por idade decrescente, a quem o General Grant confiou a realização do seu desejo final. 

O mais velho é o Prof. Pohl, um médico alemão, agora distinto professor de filosofia natural e experimental. Descendo à meia‑idade, encontramos o Rev. Royce, escocês, arguto defensor da ortodoxia contra as opiniões dos livres‑pensadores, porém bastante desprovido de animosidade e sempre disponível para uma troca franca de ideias. Lady Lucy estranhou a última escolha: Pierre Perrier, um jovem literato francês muito dado à boémia e autor de um par de peças teatrais, ainda por representar, bem como de alguns panfletos anónimos que indispuseram meia cidade. 

De pessoas tão singulares e diversas, alguma vez poderia resultar uma série de conversas aborrecidas?

sábado, 4 de abril de 2020

O mais importante defensor da teoria institucional da arte

Acabei de confirmar aqui que faleceu George Dickie, um dos mais destacados filósofos da arte das últimas décadas, conhecido sobretudo pela sua defesa da natureza institucional da arte, uma das teorias acerca da definição da arte mais discutidas dos últimos tempos.

Estava tentado a sublinhar a coincidência de, nestes últimos dias, ter em cima da secretária os seus livros The Art Circle: A Theory of Art (1997) e  Art and Value (1998). Mas, dada a frequência com que os tenho à mão, não se trata definitivamente de uma coincidência. No primeiro desses livros, Dickie defende uma versão refinada da sua anterior definição institucional da arte; no segundo encontramos outro dos seus importantes contributos para a filosofia da arte, desta vez acerca do valor e da avaliação da arte.




Há ainda um outro tema da estética em que Dickie se notabilizou e que foi a sua crítica incisiva ao que ele mesmo designou como o mito da atitude estética. No capítulo sobre estética e filosofia da arte que escrevi para o livro organizado por Pedro Galvão, Filosofia: Uma Introdução por Disciplinas (Ed. 70, 2012), apresento de forma muito abreviada o essencial dessa crítica.

Em homenagem a George Dickie, reproduzo abaixo uma passagem do que aí escrevi (pp. 391-393).
De acordo com as teorias da atitude estética temos experiências estéticas porque, diante de muitos artefactos e objectos naturais, adoptamos um modo especial de percepção diferente do normal. Perguntar por que razão temos experiências estéticas em relação a um dado objecto não é uma questão de identificar as propriedades desse objecto que provocam em nós tais experiências, mas antes de tomar em relação a ele uma atitude diferente da atitude prática. Isto explica por que razão, diante do mesmo artefacto ou objecto natural, tanto podemos ter como não ter experiências estéticas: tanto podemos adoptar uma atitude estética como uma atitude normal em relação a eles. A experiência estética é, assim, uma questão de atitude, restando apenas esclarecer em que consiste tal atitude. Isso faz-se, segundo alguns proponentes desta abordagem, identificando os factores psicológicos que nos levam a percepcionar os objectos de modo diferente do habitual. […]

Uma atitude, explica Stolnitz, «é uma maneira de dirigir e controlar a nossa percepção», centrando a nossa atenção de forma selectiva numas coisas em vez de outras. A atitude que adoptamos determina, assim, a forma como percepcionamos o mundo. Mas a atitude mais habitual não é estética; á a atitude prática, que nos leva a encarar as coisas como meios para outros «fins que estão para lá da experiência de as percepcionar». Ao passo que a atitude prática é utilitária, a atitude estética leva-nos a concentrar a nossa atenção exclusivamente no próprio objecto, excluindo qualquer tipo de interesse pessoal ou outro. É neste sentido que Stolnitz fala de atenção desinteressada, procurando também mostrar que a experiência estética deixa de estar associada à beleza, pois é possível descrever como estéticas experiências acerca de coisas que não só não são arte como nem sequer são belas: qualquer coisa se pode tornar um objecto estético e proporcionar experiências estéticas, desde que tenhamos uma atitude estética em relação a ela.

As críticas mais contundentes à teoria da atitude estética foram apresentadas por George Dickie num famoso artigo de 1964 sugestivamente intitulado «Todas as Teorias da Atitude Estética Falham: O Mito da Atitude Estética». A estratégia de Dickie consiste basicamente em pegar em exemplos que alegadamente ilustram a distinção entre atenção interessada e atenção desinteressada para mostrar que eles não mostram o que era suposto mostrarem, concluindo que tal distinção não se justifica. E assim deixa também de haver justificação para falar de atitude estética.

Dickie dá o exemplo de uma estudante do conservatório que ouve atentamente uma dada peça musical com o propósito de se preparar para um exame. Dir-se-ia que, dado haver um propósito ulterior, a sua atenção não é desinteressada, ao contrário daquela pessoa que ouve a mesma peça sem qualquer outro propósito. Mas será que encontramos aqui dois tipos diferentes de atenção? Dickie diz não haver qualquer razão para pensar tal coisa, pois ambos podem prestar atenção aos mesmos aspectos e ambos podem reagir da mesma maneira, gostando do que ouvem ou aborrecendo-se com isso, independentemente dos motivos que os levaram a ouvir essa música. É certo que um pode estar mais atento a certos aspectos do que outro, mas estar mais ou menos atento não é o mesmo que haver diferentes espécies de atenção, pois a natureza da atenção não se altera por isso, do mesmo modo que não estamos perante diferentes espécies de febre quando uma pessoa tem 38º e quando tem 39º de temperatura. Mesmo que o primeiro ouvinte preste atenção a certos pormenores e o segundo não, isso não mostra que eles têm um tipo diferente de atenção, pois não prestar atenção a algo é estar desatento, não é ter um tipo diferente de atenção. Prestar atenção a umas coisas em detrimento de outras apenas mostra que há diferentes motivações e não diferentes tipos de atenção. Assim, quando falamos de interesse e desinteresse estamos a falar de motivação e não de atenção.

Outro exemplo, referido por Dickie, de suposta atenção não desinteressada é o de alguém que, numa exposição de pintura, repara num quadro que lhe evoca situações por que passou, levando-o a deter-se diante dele ao mesmo tempo que recupera memórias antigas. Mais uma vez, e ao contrário do que Stolnitz pensa, não é correcto concluir que há aqui uma espécie de atenção interessada. O que há é desatenção, pois a atenção deslocou-se do quadro para algo diferente: as memórias por ele despertadas. Deste modo, Stolnitz chama erradamente «atenção interessada» à desatenção.

sábado, 21 de março de 2020

O problema mente-corpo

Tudo indica que o humor filosófico de Bertrand Russell era já uma coisa de família. Consta que, ainda adolescente, Russell andou durante muito tempo obcecado com o conhecido problema mente-corpo (ou corpo-mente, se preferirem), lendo avidamente tudo o que ia encontrando sobre o assunto. 

Perante isso, a sua avó (como é sabido, Russell foi criado pelos avós), acabou por tranquilizar o jovem neto, dizendo-lhe que não havia razão para tanta preocupação, dado ser um problema bem simples de resolver.
 

Segundo ela, as respostas certas para as perguntas relevantes eram, então, as seguintes:

— What is matter?
— Never mind.
— And what is mind?
— No matter.

Tanta coisa para quê, afinal?


sexta-feira, 20 de março de 2020

As desigualdades, o socialismo e o capitalismo

Uma coisa de que o leitores de filosofia como eu sentem falta é de boas recensões do que se vai publicando; recensões críticas que sejam simultaneamente sóbrias e fundamentadas, e que nos ajudem a decidir o que ler. É um tanto triste procurar boas recensões de livros que se vão publicando — muitas vezes de livros que, noutras paragens, são fonte de interessantes debates filosóficos — e não encontrar nada ou, o que é talvez pior, depararmo-nos com pouco mais do que meia dúzia de juízos tendenciosos, injustificados, impressionistas e apressados — sejam eles favoráveis ou desfavoráveis.  

Por isso é um reconfortante ler a quádrupla recensão, publicada na Crítica por António R. Gomes, dos livros dos quatro eminentes filósofos John E. Roemer, G. A Cohen, Jason Brennan e Harry G. Frankfurt, publicados pela Gradiva em anos recentes. 


António Gomes não só nos dá uma boa perspectiva do que se encontra em cada livro como mostra, de forma esclarecedora, o elo fundamental que liga os quatro livros, sublinhando as vantagens de os ler em conjunto:   
Girando em torno de um núcleo comum, são análises de pontos de vista diferentes (seja pelas áreas disciplinares em que se inserem, seja pelas teorias que sustentam) mas que se complementam, mesmo se não coincidindo (ou ainda mais por não coincidirem) nas conclusões. Valem ainda pela honestidade intelectual, pela ausência de dogmatismo, pelo distanciamento afetivo com que investigam um assunto que muitas vezes é visto com a lupa da paixão clubística; pela consistência ou objetividade da fundamentação, baseada em dados históricos e estatísticos ou no rigor lógico; pelo jogo de contra-argumentação.

Para o leitor de língua portuguesa interessado nestas áreas de estudo, acresce outra razão a favor destas leituras: a carência de bibliografia que não seja “ortodoxa”. Não estou a sugerir a rejeição, por princípio, da ortodoxia, mas tão-só a supor a necessidade de uma releitura, crítica, do marxismo tradicional; da eventual reformulação dos seus princípios ou, no mínimo, do seu questionamento à luz da evolução e das experiências históricas; de avaliações que tenham em conta, simultaneamente, o revés do desaparecimento do “socialismo real” e a (afirmação ou negação da) crença na possibilidade de um sistema económico e político baseado numa norma de igualdade.
Vale mesmo a pena ler.

quarta-feira, 18 de março de 2020

O mais recente livro de Searle

Da Realidade Física à Realidade Humana é o título do último livro de Searle, acabado de publicar na colecção Filosofia Aberta, com tradução de Daniela Moura Soares e revisão científica de Desidério Murcho. 

Infelizmente, por razões óbvias, a apresentação do livro, a cargo de Pedro Galvão e Ricardo Santos (ambos professores da UL), programada para o fim deste mês na Fnac Chiado, em Lisboa, teve de ser cancelada. 

Trata-se de um livro original, o último escrito pelo filósofo, que ainda não foi sequer publicado em inglês. O italiano e agora o português são, por enquanto, as duas únicas línguas em que este livro pode ser lido. Trata-se, portanto, de um acontecimento editorial de registo na área da filosofia.

Esta não é certamente uma boa altura para frequentar livrarias. Mas isso não significa que deixemos de ter acesso às novidades editoriais, pois é possível encomendar o livro diretamente na página da Gradiva, que garante embalá-lo com todos os cuidados que as actuais circunstâncias exigem, entregando-o em casa do leitor, com desconto e portes gratuitos. 

Deixo abaixo o texto de apresentação da contracapa e das badanas.



Neste seu mais recente livro, John Searle oferece-nos um excelente exemplo de que os grandes sistemas filosóficos não são coisas do passado e que os filósofos contemporâneos não estão condenados a uma irremediável especialização em busca de respostas para meras questões de pormenor, mostrando-nos aqui como os seus reconhecidos contributos para diferentes disciplinas filosóficas fazem afinal parte de um sistema coerente e abrangente. Esta obra acaba também por ser a melhor introdução à filosofia de Searle, tornando transparente o cimento filosófico que liga cada uma das suas partes num todo coerente e original, que vai da sua influente teoria dos actos de fala ao problema do livre-arbítrio, passando pela noção de intencionalidade, pelo problema mente-corpo, pela discussão sobre a inteligência artificial e pela sua mais recente teoria sobre ontologia social. E tudo isso é feito com a vivacidade e a acutilância filosófica que se lhe conhecem, deixando-nos com o essencial de um legado filosófico só ao alcance de poucos.

O único ponto de partida para se compreender tudo o resto, defende Searle, é o que sabemos da física, da química e de outras ciências naturais, segundo as quais o universo é totalmente constituído por partículas físicas, sem qualquer intencionalidade ou propósito racional, organizadas em sistemas e campos de força. Esta é a realidade básica, que Searle diz não se tratar sequer de uma teoria, mas antes do pressuposto sem o qual nenhuma teoria acerca da realidade, incluindo da realidade criada pelos seres humanos, é inteligível. Assim, a questão central que se apresenta à filosofia contemporânea é: como explicar a realidade humana da mente, do significado, da consciência, da intencionalidade, da sociedade, da própria ciência, da estética, da moralidade e toda organização social, incluindo o dinheiro, a propriedade, o governo e o casamento?

Da Realidade Física à Realidade Humana explora também as noções de poder e de direitos humanos, terminando com a inevitável questão do livre arbítrio. Estamos, portanto, perante uma obra de referência para a cultura filosófica actual.

*** 

A tradição filosófica ocidental procura explicar a realidade humana postulando dois mundos distintos - o mental e o físico - e, em algumas versões, acrescenta-se um terceiro, o mundo social. Mas Searle defende que há apenas um mundo, argumentando que as características de nível superior são consequências naturais do mundo básico. Começa por se perguntar como a consciência pode ser causada e, ao mesmo tempo, realizada no cérebro como um recurso de nível superior. Da consciência passa para a intencionalidade, a propriedade pela qual a mente é direcionada a objetos e estados de coisas tipicamente separados de si mesma. A consciência e a intencionalidade, incluindo a intencionalidade coletiva, permitem explicar a linguagem. Podemos, então, ver como os humanos usam a linguagem para construir uma realidade social que inclui dinheiro, estados-nações, propriedade privada, universidades e empresas. Searle realça que a sua abordagem evita os erros tradicionais do dualismo e do idealismo, mas também do materialismo.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Definições de arte não-essencialistas

Aqui fica um pequeno excerto (incluindo a imagem abaixo) do meu livro A Definição de Arte: O essencial, recentemente publicado na Plátano Editora. Trata-se de uma passagem em que procuro apresentar os traços gerais da abordagem não-essencialista e daquilo que distingue mais claramente as definições não-essencialistas das definições tradicionais (essencialistas).


A reação [ao ceticismo acerca da possibilidade de definir arte] traduziu-se, assim, na procura de uma definição não-essencialista, capaz de identificar as condições necessárias e suficientes da arte. 

Perante isto, poder-se-á perguntar: mas se as condições necessárias e suficientes não referem características essenciais da arte, hão-de referir o quê? Para melhor se compreender as definições não-essencialistas é útil começar por responder a esta pergunta, fazendo algumas comparações.

A primeira diz respeito à questão da função da arte. As definições essencialistas tendem a identificar a essência da arte com a função que a arte é suposto desempenhar, seja ela representar algo, exprimir emoções ou proporcionar satisfação estética. Assim, de acordo com a teoria representacional, a arte tem como função principal representar a realidade, fazendo-nos ver e compreender melhor aspetos do mundo que, sem ela, nos poderiam passar despercebidos; a teoria expressivista, por sua vez, assenta na ideia de que a função da arte é exprimir sentimentos que aproximem as pessoas entre si — na perspetiva de Tolstói — ou que contribuam para nos compreendermos melhor a nós próprios — na perspetiva de Collingwood —; de acordo com a teoria formalista, a arte tem como função criar padrões interessantes capazes de nos proporcionar satisfação estética. Portanto, o mérito artístico de obras de arte particulares depende substancialmente do modo como cada obra satisfaz os critérios funcionais da teoria considerada correta, os quais decorrem, por sua vez, do que se considera ser a essência da arte. Por exemplo, de acordo com a teoria da representação, as melhores obras são as que conseguem representar melhor ou mais fielmente aquilo que está a ser representado. E o mesmo tipo de critério funcional se aplica às restantes teorias tradicionais. Os não-essencialistas admitem, ao invés, que a arte possa ter as mais variadas funções — alargar o conhecimento, exprimir e explorar emoções, proporcionar experiências compensadoras, divertir, proporcionar prazer, ajudar-nos a ser pessoas melhores, comunicar ideias, criticar a sociedade, transformar o mundo, criar coisas belas, valorizar as nossas vidas, ajudar-nos a suportar os males do mundo, etc. — o que torna inútil procurar nos objetos de arte características permanentes supostamente associadas a funções tão diferentes. Até porque uma mesma obra de arte, consideram os não-essencialistas, pode servir diferentes funções, adquirir diferentes significados, admitir diferentes interpretações ou exprimir sentimentos diferentes, consoante o contexto em que ela é produzida ou apreciada.

Dado que os não-essencialistas não esperam que a definição sirva para determinar os méritos ou a qualidade de obras de arte particulares, o que eles procuram é uma definição que permita simplesmente classificar corretamente certos objetos como arte, sem qualquer preocupação de caráter valorativo. Buscam, portanto,  uma definição que seja compatível com a existência de boas e de más obras de arte.

Tudo isto sugere que as condições necessárias e suficientes da arte não dependem das características internas dos objetos. O não-essencialista considera, em contrapartida, que tais condições são relativas ao contexto em que eles estão inseridos e ao modo como tais objetos adquirem o estatuto de obras de arte. Uma metáfora adequada da perspetiva do não-essencialista é a afirmação atribuída ao escritor Jorge Luís Borges sobre a arte de que "nenhuma obra é uma ilha", no sentido em que é preciso procurar fora da obra — mais precisamente no contexto em que ela se encontra —, aquilo que a torna arte. Assim, a pergunta relevante para o não-essencialista não é "Quais são as características de um dado objeto que fazem esse objeto ser uma obra de arte?" mas antes "Como é que um qualquer objeto adquire o estatuto de obra de arte?" A primeira pergunta aponta para as próprias obras de arte ao passo que a segunda aponta para o seu contexto social. Por isso, os próprios defensores do não-essencialismo consideram ajustado o termo "contextualismo" para classificar o tipo de teorias da definição que eles propõem.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Definir arte

O meu pequeno livro sobre a questão filosófica da definição de arte está já à venda e pode ser encomendado aqui. Deixo também um pequeno excerto do prefácio, com a descrição sumária de cada capítulo do livro.


Dada a importância das artes para os seres humanos e dada a sua enorme relevância social, haverá muitas outras pessoas interessadas nas questões da identificação e da natureza da arte, sejam estudantes de vários níveis e áreas, como professores, agentes artísticos ou apreciadores de arte em geral. Este livro também é para essas pessoas, pelo que a linguagem adotada procurou ser acessível, mas não estritamente escolar, de modo a chegar a todos.
Ainda que os artistas não precisem de quaisquer teorias da arte para produzirem obras de arte, todos temos algum tipo de necessidade de compreender o que é isso da arte e como distinguir o que é arte do que não é. Assim, talvez o conhecido artista americano Barnett Newman tenha dito apenas uma parte da verdade quando afirmou que “a estética [ou teoria da arte] está para o artista como a ornitologia está para os pássaros”. Mesmo que os artistas dispensem as teorias, isso não significa que nós não precisemos delas para compreender o que os artistas criam, tal como estudamos ornitologia para conhecer melhor os pássaros, apesar de os próprios pássaros nada aprenderem com isso. 
Este livro está dividido em cinco partes. A primeira trata de esclarecer o problema da definição de arte: Em que consiste o problema? O que torna o problema difícil? Para quê definir arte? Que tipo de definição se pretende? Esta última secção da primeira parte visa apenas dar as ferramentas técnicas para a discussão subsequente. É talvez mais técnica, mas  é também das mais curtas. Em todo o caso, pretende-se que seja relativamente acessível.
Na segunda parte apresentam-se e discutem-se as três principais teorias essencialistas (da representação, da expressão e da forma significante), isto é, as que partem da ideia de que há uma essência da arte e, por isso, visam apresentar uma definição que descreva essa essência. 
Essas definições foram o alvo de uma forte reação cética. Os céticos não só consideram não haver uma essência da arte como afirmam tratar-se de um conceito indefinível. Pensam, contudo, que isso não é dramático, alegando que também não precisamos de uma definição de arte para nada. Este é o tema da terceira parte.
Por sua vez, os céticos foram alvo das críticas dos contextualistas, que insistem que o conceito de arte pode ser definido, embora em termos não-essencialistas. As definições não-essencialistas (institucional e histórica) são discutidas na parte quatro.
Por fim, na quinta parte, aperesentam-se brevemente algumas alternativas à definição, de modo a não se ficar com a ideia que nada mais há além das definições propostas. 

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Espinosa e o provincianismo invertido

Deparei-me há dias numa livraria com um novo livro sobre Espinosa. O título é O Milagre Espinosa (Quetzal) e o autor é o sociólogo e também filósofo francês Fréderic Lenoir, que eu desconhecia completamente.

Interessou-me. Mas antes de me decidir, fiz a habitual inspecção para ver se valeria a pena comprá-lo. Diz-se na capa que é um enorme best-seller em França, o que, no meu caso, gera expectativas contraditórias. Talvez o subtítulo, que também considero algo suspeito, Uma Filosofia Para Iluminar a Nossa Vida explicasse parte do sucesso. Mas não sou dos que pensam que os bons livros de filosofia não são para os leitores comuns nem que é impossível retirar deles lições para a vida, pelo que vale a pena inspeccionar melhor. 


Assim, além do inevitável índice geral, pareceu-me muito importante ver que bibliografia o autor consultou para escrever o livro, até porque o próprio diz no prólogo ter descoberto o pensamento de Espinosa há muito pouco tempo. Isso parece-me importante sobretudo porque se trata da biografia filosófica de um autor cujas ideias e cuja vida nem sempre têm sido fáceis de acompanhar. 

Como escreve Don Garrtett logo no início do imprescindível The Cambridge Companion to Spinoza, que ele mesmo coordena, Espinosa parece ter sido, em vários aspetos, uma figura contraditória na história da filosofia: conhecido como ateu, mas também descrito por Novalis como "um homem intoxicado por Deus"; um determinista radical cuja ética tinha como ideal tornarmo-nos pessoas livres; um defensor da identidade entre corpo e mente, mas que admite podermos alcançar um estado que transcende a morte corporal; aquele que uns vêem como precursor do materialismo dialéctico e outros como precursor do idealismo absoluto; que defende o egoísmo psicológico, mas que procura promover uma comunidade humana baseada no amor e na amizade; o defensor da autoridade do estado que, ao mesmo tempo, defende a democracia e a liberdade de expressão. Não é, pois, fácil descrever o pensamento de Espinosa sem um conhecimento profundo da sua obra, nem é avisado retirar ilações da sua vida sem ter em conta o que os melhores investigadores nos têm revelado. Surpreendentemente, nenhum desses autores de referência aparecem na bibliografia consultada pelo autor: nem o compêndio de Garrett, nem o reconhecido especialista W. N. A. Klever, nem sequer a justamente premiada e aclamada biografia de Espinosa, escrita pelo filósofo Steven Nadler, que é considerada a primeira biografia completa e detalhada do filósofo de origem portuguesa. 

Quero deixar claro que isto, só por si, não permite concluir que se trata de um mau livro, embora a probabilidade de o ser aumente significativamente. Tudo indica que se trata de um livro destinado ao grande público, visando apenas proporcionar um primeiro contacto com a vida e a obra do filósofo. Nesse caso, não será assim tão grave o autor não se ter baseado em alguma da bibliografia mais relevante. Teria sido melhor, mas compreende-se, dado o tipo de livro. Todavia, foi suficiente para concluir que não era o tipo de livro que interessa muito a quem procura ter uma compreensão mais robusta da filosofia de Espinosa e um conhecimento mais rigoroso da sua vida. Para isso há o livro de Nadler, infinitamente melhor, publicado pela Europa-América. 

Mas há outro aspecto acerca da tradução deste livro que me deixou realmente decepcionado. Veja-se como a tradutora justifica a opção pela grafia do nome do filósofo:


A justificação consiste simplesmente em remeter para o que Diogo Pires Aurélio escreveu a propósito da sua tradução do Tratado Teológico-Político de Espinosa. Contudo, o que Pires Aurélio escreve não chega sequer a ser uma justificação e mais depressa justificaria a escolha do nome português Bento em vez do hebraico Baruch. Ele diz que, por sua vez, se limita a seguir Joaquim de Carvalho. Todavia, acrescenta que o próprio Joaquim de Carvalho, numa edição posterior, acabou por optar por Bento em vez de Baruch. Compreende-se o argumento? Eu não.

Se o tradutor abandonou Baruch a favor de Bento numa edição posterior é porque alguma informação ou pesquisa adicional o levou a fazer essa correcção. Qualquer pessoa concluiria que, vindo da parte de um estudioso e tradutor do filósofo, a segunda e definitiva opinião estaria mais bem fundamentada do que a primeira. Mas Pires Aurélio conclui, sem mais, precisamente o oposto. Para isso, mais valia não citar sequer Joaquim de Carvalho, dado que este acaba por lhe retirar o apoio que procura. 

Pires Aurélio não evita acrescentar que Joaquim de Carvalho simplesmente cedeu "à tentação de aportuguesar [o nome do filósofo], escrevendo Bento de Espinosa". E por que não apontar também a cedência à tentação, a que o próprio Pires Aurélio não resistiu, de escrever Espinosa em vez de Spinoza? É isso coerente? Penso que não.

De resto, é deveras surpreendente que, como tradutor de Espinosa, Pires Aurélio não tenha em conta factos acerca de Espinosa há muito revelados. Talvez tenha sido precisamente o conhecimento desses factos que levou Joaquim de Carvalho a substituir Baruch por Bento. Eis alguns desses factos incontroversos:

- Em praticamente todos os documentos e registos originais encontrados, o nome do filósofo é "Bento", em português. Era chamado pela família por esse nome e conhecido por esse mesmo nome na própria comunidade judaica de Amsterdão. Há duas excepções em documentos posteriores, uma das quais é o documento do herem, que decreta a expulsão de Baruch da comunidade judaica.

- Bento e seu irmão Grabriel abriram, em Amsterdão, uma empresa comercial após a morte do pai. O nome da firma era precisamente "Bento y Gabriel Despinoza".

-  Baruch significa em hebraico o mesmo que Benedictus em latim e Bento em português, ou seja: abençoado. Baruch era sobretudo usado no contexto das actividades religiosas judaicas, Benedictus era a tradução para a língua culta em que geralmente se publicava na altura. O próprio Descartes tem obras publicadas na altura com os nomes Renatus e Renati; e também Des Cartes e Cartesius. 

- Após a sua expulsão da comunidade judaica, o jovem filósofo anunciou não querer ser chamado pelo nome hebraico Baruch. Na altura ainda não tinha obra relevante publicada.

- As obras de Espinosa foram quase todas publicadas pela primeira vez logo após a sua morte. O nome do autor surge apenas como "B. d. S.", sendo provavelmente a abreviatura de "Benedictus de Spinoza", pois era o latim que se costumava usar. Parece ter sido por indicação do próprio. O nome hebraico Baruch não costuma ser seguido por um "de".

Garanto que não inventei nada disto e que nem sequer foi preciso pesquisar muito. Está tudo disponível, mesmo em português. Mas o que resulta daqui? Que os primeiros a aportuguesar o nome do filósofo foram os seus próprios pais, tanto que foi esse o nome que lhe deram e pelo qual o chamavam (os pais de Espinosa tinham, de resto, dificuldade em falar bem outras línguas que não o português). 

E se há opção completamente injustificada é precisamente Baruch, pois o próprio filósofo deixou claro que nunca mais queria ser identificado com esse nome. Quem achar provinciano usar o nome português Bento, que opte então por Benedictus e nunca por Baruch. Mas, já agora, por que não usar, no caso de Descartes, também o seu nome latino?

Em suma, traduzir não é uma tarefa fácil e ninguém está livre de fazer más opções. Mas este parece-me um caso sui generis, pois fica-se com a ideia de que se trata de uma espécie de provincianismo invertido. Será que isto faz sentido?