Quem já foi incomodado com infiltrações de água em casa deve ter descoberto que há casos em que de nada serve barrar-lhe o caminho, pois ela sempre acaba por encontrar outro, por vezes bem improvável.
Creio que algo semelhante ocorreu com a música na segunda metade do século XX. Estou a pensar no que, graças ao génio dos Beatles, aconteceu à melodia tonal, que apenas conseguia sobreviver dignamente em algumas variantes de jazz, no cinema e pouco mais.
Não é exagerado afirmar que a melodia é a principal responsável pelo irresistível apelo da música ocidental junto dos melómanos. E também não é por acaso que os amantes de música são referidos como melómanos e não harmoniómanos, ritmómanos ou timbrómanos. Embora quase toda a música, tonal ou atonal, tenha melodia — mesmo que algumas pessoas erroneamente protestem que certas peças atonais não são melódicas —, estou a pensar particularmente na melodia tonal.
A melodia tonal sempre foi a principal porta para a fruição musical, seja na música coral, na música puramente instrumental ou na ópera. Mas foi sobretudo na canção que a melodia tonal reinou acima de tudo o resto, presenteando-nos com verdadeiros tesouros musicais concentrados. Schumann, Schubert, Brahms, Wolf, Mahler e Strauss, entre outros, consolidaram a canção como um género musical de primeiríssima importância, enriquecido também por franceses e ingleses como Poulenc e Britten, respectivamente. E até os italianos lhe dão o destaque merecido, mesmo quando chamam ária à canção implantada na trama operática.
Mas muita coisa mudou no panorama musical do século seguinte. Assente na convicção de que o século XIX tinha esgotado os recursos da composição tonal e de que toda a música ocidental precisava de se reinventar, o início do século XX cravou o primeiro prego do que muitos acreditaram ser o caixão da melodia tonal, uma das vítimas da crise da tonalidade.
O enterro chegou a ser celebrado precipitadamente em plena ditadura vanguardista de meados do século passado, quando os proprietários institucionais da música dessa altura decretavam ferozmente o que era ou não era musicalmente admissível. É, de resto, irónico e significativo como algumas das mais belas canções jamais escritas — As Quatro Últimas Canções — compostas precisamente por essa altura, soaram como um comovente canto do cisne da melodia tonal ela própria. Ainda por cima escritas por alguém — Richard Strauss — que no passado chegara a roçar os limites da tonalidade.
Pouco depois desse melancólico e dourado ocaso outonal, já a ditadura vanguardista, liderada pela arrogância serialista, estendia o seu domínio sobre praticamente todo o universo musical erudito, fazendo da melodia tonal uma espécie de herança vergonhosa de um passado sepultado.
Não seria rigoroso afirmar que a melodia desaparecera totalmente, como referi acima, mas sobrevivia dignamente sem o brilho do passado. Até que surgiram os Beatles, que, como a água, irresistivelmente abriram outro caminho, reconciliando definitiva e descomplexadamente os amantes da música com a melodia tonal. Foram eles que retomaram o fio perdido que vinha de Schubert, Wolf e Verdi, devolvendo à melodia todo o seu esplendor e o público que já lhe faltava.
Claro que os Beatles não fizeram essa revolução completamente sozinhos. Mas sem o seu génio musical talvez a água da melodia tonal não tivesse encontrado leito apropriado. Além disso, o génio musical dos Beatles era totalmente afirmativo, pois não exprimia uma atitude negativa de recusa musical fosse do que fosse. Eles próprios aliaram, de forma espontânea e desinibida, uns toques de experimentalismo musical vanguardista à simplicidade desarmante dos princípios tradicionais da melodia tonal. Com os Beatles a música passou mesmo a ser diferente e voltou, de forma resoluta, a ser popular, como outrora foram as canções de Schubert ou as árias de Verdi.
De resto, não há muito na música popular urbana actual em que não se encontre, para o bem e para o mal — tantas vezes para o mal —, a herança musical dos Beatles. Com a diferença de que a música dos Beatles continua a ter a frescura das criações intemporais.
O mais surpreendente de tudo isto — ou talvez não — é que, se tivermos em conta a educação musical formal dos seus membros, os Beatles eram praticamente semi-analfabetos musicais. O que só torna o seu génio ainda mais notável, até porque ele não consiste simplesmente no seu sentido melódico, mas também nas suas harmonias vocais, no uso do contraponto e numa descomplexada liberdade instrumental que confere a muitas das suas canções uma riqueza tímbrica inesperada — a que o quinto Beatle, George Martin, não é alheio.
As mais de 210 canções compostas e gravadas pelos Beatles oferecem-nos abundantes exemplos do que digo. Mas, entre tantas canções memoráveis, arrisco a minha lista das melhores vinte, apresentada no post anterior a este.
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