Ainda bem que a proposta de reformulação do programa de Filosofia que aqui apresentei tem suscitado alguma discussão que, em meu entender, tem sido saudável e proveitosa. Contudo, algumas opiniões como a de Domingos Faria e sobretudo a proposta alternativa de Rolando Almeida, além das sugestões de outros colegas no FB, levaram-me a pensar que precisava ainda de esclarecer alguns aspectos.
Começo por reafirmar que ninguém me pediu qualquer proposta e que ela não passa de um simples esboço a merecer outro detalhe. Posto isso, preciso de tornar claro por que razão qualifico a minha proposta de construtiva, por um lado, e minimalista, por outro lado.
É construtiva porque não se trata de desfazer o programa actual nem sequer de lhe dar uma direcção diferente, até porque não é isso que o ministério solicita. Assim, a ideia motriz é aproveitar o que de melhor tem o programa actual e trabalhar com base nele.
É minimalista porque, tendo em conta o que acabei de referir, o objectivo é alterar apenas o que, por razões didácticas relacionadas com a gestão da carga horária disponível, tem mesmo de ser alterado, e não mais do que isso. Claro que aqui cabe acrescentar as inevitáveis questões de carácter científico e cabe não desprezar o que tem sido a prática lectiva concreta de centenas de professores. Por isso procurei evitar — a não ser que me parecesse inevitável — alterar a sequência das matérias a lecionar e de introduzir novas matérias, por muito interessantes que as ache. O objectivo é reduzir e não acrescentar ao que já existe.
A redução consiste basicamente nisto: manter um, e apenas um, problema em cada uma das disciplinas contempladas no programa actual. Assim, os alunos familiarizam-se, de forma mais aprofundada, com a diversidade de disciplinas e problemas filosóficos, em vez de se querer meter cada Rossio filosófico na sua rua da Betesga. A excepção é a ética, dado que as teorias éticas em confronto relacionam problemas subtilmente diferentes, mas conexos. De qualquer forma, penso que todos concordam que a ética é a parte mais importante do programa, juntamente com a teoria do conhecimento no 11.º ano.
A proposta que apresento não constitui, portanto, o meu programa preferido. E mesmo que me pedissem para fazer um programa de raíz, totalmente novo, procuraria abster-me de dar preferência aos meus interesses filosóficos pessoais, privilegiando as áreas que melhor conheço ou domino. É preciso não esquecer que se trata de um programa para os alunos aprenderem o que é mais central, acessível e estruturante, pelo que aquilo que mais me entusiasma filosoficamente pode não ser — e muitas vezes não é — o que melhor serve os alunos. Esquecer isto seria irresponsável e não ter sentido de serviço público. Na verdade, a disciplina filosófica em que mais tenho trabalhado é a estética e filosofia da arte, tendo até publicado alguma coisa na área, mas tenho algumas dúvidas que um programa destas características totalmente elaborado por mim — coisa que, de resto, nunca aceitaria fazer — incluísse problema algum de estética e filosofia da arte.
Apresentados os pressupostos da minha proposta, cabe responder a algumas dúvidas levantadas. Divido-as por conteúdos temáticos.
1. Lógica. Se a lógica é uma ferramenta da actividade filosófica, porquê mantê-la no 11.º ano em vez de a passar, como seria natural, para o 10.º ano? Considero que este é o aspecto em que mais hesitei e em relação ao qual as considerações de vários colegas no sentido de lecionar a lógica no 10.º ano me parecem mais pertinentes. Como disse acima, tive sempre em conta a prática lectiva concreta e a previsível rejeição de muitos professores. Se a minha suposição estiver errada, então há todas as razões para colocar a lógica no início do 10.º ano. Concedo completamente, de bom grado.
Outro aspecto diferente diz respeito a que conteúdos leccionar na lógica. Há quem defenda que se deve manter a opção entre lógica proposicional e a lógica aristotélica. Mas isto parece-me indefensável, por duas fortíssimas razões, uma de carácter científico e outra de carácter didáctico: a primeira é que uma coisa não é alternativa à outra, como já tinha referido e julgo ninguém contestar seriamente; a segunda é que a ideia de que deve haver opção destrói o argumento de que a lógica se justifica por ser uma ferramenta necessária que todos os alunos devem aprender a manejar.
Deixando de lado a primeira, que já foi suficientemente referida, vale a pena pensar melhor na segunda. Como pode a lógica ser uma ferramenta que todos devem dominar e depois dar-se ferramentas diferentes aos alunos, como se eles fossem resolver problemas diferentes? Será que se está a pensar que cada argumento filosófico discutido deve ter uma versão silogística e outra manejável pela lógica proposicional? Ou será antes que os que aprenderam lógica silogística só trabalham com silogismos e outros com raciocínio proposicional? A ser assim, teria de se fazer programas paralelos para quase todos os problemas filosóficos. Mas isso seria absurdo. Talvez a ideia seja a de prever uma quantidade idêntica de argumentos silogísticos e não-silogísticos, de modo que os que aprendem uma teoria lógica não sejam prejudicados relativamente aos que aprendem a outra. Mas também isto é disparatado. A verdade é que, se o programa é o mesmo para todos e se há raciocínios proposicionais a sustentar as teorias discutidas que não podem ser alternativamente avaliados — nem sequer expressos — com os recursos da teoria silogística, então alguém terá de ficar prejudicado. As ferramentas têm de ser as mesmas para todos, pois diferentes ferramentas servem para tratar de problemas diferentes. Dizer que uns podem usar uma ferramenta e que outros podem usar a outra é reconhecer que qualquer delas é dispensável. Não há, portanto, qualquer razão científica, e ainda menos didáctica ou pedagógica, que justifique tal opção.
Deixando de lado a primeira, que já foi suficientemente referida, vale a pena pensar melhor na segunda. Como pode a lógica ser uma ferramenta que todos devem dominar e depois dar-se ferramentas diferentes aos alunos, como se eles fossem resolver problemas diferentes? Será que se está a pensar que cada argumento filosófico discutido deve ter uma versão silogística e outra manejável pela lógica proposicional? Ou será antes que os que aprenderam lógica silogística só trabalham com silogismos e outros com raciocínio proposicional? A ser assim, teria de se fazer programas paralelos para quase todos os problemas filosóficos. Mas isso seria absurdo. Talvez a ideia seja a de prever uma quantidade idêntica de argumentos silogísticos e não-silogísticos, de modo que os que aprendem uma teoria lógica não sejam prejudicados relativamente aos que aprendem a outra. Mas também isto é disparatado. A verdade é que, se o programa é o mesmo para todos e se há raciocínios proposicionais a sustentar as teorias discutidas que não podem ser alternativamente avaliados — nem sequer expressos — com os recursos da teoria silogística, então alguém terá de ficar prejudicado. As ferramentas têm de ser as mesmas para todos, pois diferentes ferramentas servem para tratar de problemas diferentes. Dizer que uns podem usar uma ferramenta e que outros podem usar a outra é reconhecer que qualquer delas é dispensável. Não há, portanto, qualquer razão científica, e ainda menos didáctica ou pedagógica, que justifique tal opção.
Mas há ainda outro aspecto que deve ser tido em conta. Não é forçoso que se dê a lógica optando apenas por uma destas teorias lógicas. Se pensarmos em dar as noções elementares de lógica e argumentação, podemos incluir, além dos aspectos informais, os elementos mais úteis e acessíveis de cada uma das teorias. Assim, seria perfeitamente adequado ensinar, por exemplo, o quadrado da oposição de Aristóteles, que é bem útil, e também noções muito elementares de lógica proposicional. E tudo isso é possível reduzindo substancialmente a lógica formal e informal que actualmente se encontra espalhada pelos dois anos. Pelas minhas contas, o tema da lógica e argumentação — que inclui as noções de argumentação dadas na unidade inicial do 10.º ano e a retórica no 11.º ano — tem previstas um total 22 aulas de 90 minutos, o que equivale a 39 aulas e meia de 50 minutos. O que eu propus foi umas 24 a 25 aulas, considerando aquela parte do módulo inicial. Ora, poderia juntar-se tudo no início do 10.º ano, como muitos sugerem, e apenas 25 aulas de 50 minutos seriam suficientes para se ensinar, no momento certo, as ferramentas do trabalho sem ser preciso voltar à lógica no 11.º ano.
2. Religião e estética. Por que razão estas matérias passam para o 11.º ano e por que razão deixam de ser opcionais, perguntam alguns. Em primeiro lugar, por uma questão de gestão dos tempos lectivos disponíveis em cada ano. A verdade é que não se consegue discutir decentemente tantas matérias no 10.º ano e, portanto, algo terá de transitar para o ano seguinte. Em segundo lugar, com os cortes operados só nestas duas disciplinas é perfeitamente possível leccionar, mas no ano seguinte, um problema de cada uma delas, evitando-se tão indesejável opção.
3. Livre-arbítrio. Porquê manter uma matéria tão abstracta e complexa como o problema do livre-arbítrio logo no início? Vários colegas sugerem que deveria passar para o fim do 11.º ano. Bom, se nos entusiasmamos demasiado com as alterações, estas deixam de ser minimalistas. Em todo o caso, discordo que o problema do livre-arbítrio seja dos mais difíceis e abstractos. Compare-se, por exemplo, com a dificuldade que é, para muitos alunos, compreenderem adequadamente a autonomia da vontade kantiana ou até o imperativo categórico. Não é por o livre-arbítrio ser um problema metafísico — apesar das suas conexões com a ética, com a filosofia da ciência e com a filosofia da mente — que é mais difícil ou motivador do que outros. Um problema é mais motivador ou menos motivador consoante os alunos já tragam na sua bagagem pré-teórica intuições fortes acerca disso. E creio que é precisamente o que os alunos já trazem consigo neste caso — estou neste momento a discutir o problema nas aulas e não falta animação. Não são poucos o que vêem as suas ideias fatalistas desafiadas ou a ideia, defendida por muitos, de que são livres por fazerem o que querem. E nem sequer é um tema demasiado abstracto, pois é dos que podem perfeitamente ser discutidos com exemplos concretos do quotidiano.
4. Política. Por que razão tomar como referência apenas a perspectiva de Rawls, ao passo que noutras áreas são explicitamente referidas duas ou mesmo três perspectivas? A verdade é que a teoria da justiça de Rawls se tornou o centro de toda a discussão posterior acerca da justiça social, o que mesmo os seus críticos reconhecem. Digamos que, nesta matéria, há a teoria de Rawls e os seus críticos.
5. Tema livre. O Rolando discordou deste aspecto da minha proposta, alegando que não devia haver temas livres, mas que se devia antes aproveitar algumas aulas para preparar o elaboração de ensaios filosóficos. Não sei se compreendo exactamente o que o Rolando tem em mente, mas parece-me estar a defender que se deve destinar essas aulas à aquisição de metodologias de trabalho filosófico mais avançadas — de que os ensaios seriam o melhor exemplo. Sinceramente, não me parece boa ideia voltar às ferramentas do trabalho filosófico assim em seco. Nessa fase já deveria ser possível aos alunos desenvolverem essas capacidades — que, aliás, poderiam ter sido usadas antes —, aplicando-as a algum tema filosófico. Por isso mesmo, os professores, eventualmente em conjunto com os alunos, estarão em melhores condições de escolher que temas filosóficos melhor poderão satisfazer esse objectivo. Além disso, é mesmo muito importante não ser totalmente directivo e deixar espaço para cada professor dar o seu próprio contributo para o leque de conteúdos que os alunos irão trabalhar e, desejavelmente, dar um pouco a palavra a alunos, que se espera sejam também capazes de exercer um pouco da sua autonomia filosófica.
Finalmente, uma nota sobre a bibliografia. É importante sublinhar que se trata de um conjunto de recomendações e de obras de referência sobre os problemas que constam do programa, pelo que não deve ser encarada como se da bibliografia de um ensaio se tratasse. Não se espera, portanto, que seja apresentada a bibliografia consultada para elaborar o programa, mas antes de um conjunto de propostas de leitura acessíveis e orientadoras para alunos e professores — umas de consulta e outras de referência — sobre os conteúdos a leccionar. Assim, além das obras relevantes dos filósofos de referência mencionados no programa, tudo o que é preciso é um conjunto de obras de consulta que os alunos sejam capazes de ler por si próprios: um par de dicionários de filosofia, uma ou duas boas histórias da filosofia e um conjunto de obras introdutórias aos temas e disciplinas em apreço.
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