É fácil detestar Wagner. Mas não é menos fácil idolatrá-lo. Talvez haja boas razões de ambos os lados.
Por um lado, a pessoa de Wagner tem aspectos detestáveis, como a ingratidão e, sobretudo, o seu declarado e persistente anti-semitismo. Além disso, embora arrojadas, as suas megalómanas concepções artísticas resultam, não raras vezes, em música aborrecida ou, como teria gracejado Rossini, em momentos encantadores perturbados por quartos de hora insuportáveis. E também é preciso ser um adepto do género para digerir aquele universo mitológico carregado de fadas e feiticeiros, poções e anéis mágicos, cavaleiros e espadas, cisnes e gnomos, grutas, deuses manhosos e santos medievais, cujas tropelias se desenrolam ao longo de óperas de quase quatro horas de duração.
Por outro lado, é indiscutível que Wagner foi um artista invulgarmente inspirado, criador de alguma da mais bela, expressiva e comovente música jamais composta. Foi também um compositor ousado, capaz de desbravar caminhos na música até então inexplorados: seja na riqueza das harmonias como na ampliação dos recursos orquestrais, nas luminosas e irresistíveis progressões melódicas ou nas transições entre temas musicais.
Vem isto a propósito de um dos últimos livros que li, precisamente sobre a vida e a obra de Wagner. Trata-se de um livro que comprei há anos quase só por curiosidade, até porque o preço era bastante convidativo (creio não ter chegado aos 15€) e vinha acompanhado por dois CD's da Naxos com música do compositor alemão. O livro foi publicado pela Bizâncio e o seu autor é o musicólogo e crítico musical inglês Stephen Jonhson, que eu desconhecia de todo. Comprei ainda mais dois livros desta coleção, um sobre Mahler e o outro sobre Beethoven (mas há mais: Mozart, Haydn, Dvorak e outros), dentro dos mesmos preços e também com dois CD's cada um.
As minhas expectativas eram relativamente baixas, imaginando que, à parte um ou outro pormenor interessante, pouco mais iria encontrar do que as banalidades habituais que tantas vezes se lêem em livros sobre a vida e a obra de grandes vultos da história da arte. Enfim, esperava pouco mais do que aquilo que se pode descobrir, por exemplo, numa breve pesquisa na Internet.
Não podia estar mais enganado, e a surpresa acabou por ser muito agradável. É um livro realmente informativo para quem conheça, como é o meu caso, pouco mais do que o essencial sobre a vida e a obra de Wagner.
O livro é informativo não tanto porque se limita a descrever os factos da vida do compositor e as características da sua obra, mas sobretudo porque tais factos são contextualizados de forma pertinente e esclarecedora, tanto em termos históricos e políticos, como artísticos e filosóficos. É, aliás, reconfortante verificar o sólido conhecimento, da parte do autor, das ideias de filósofos como Schopenhauer, cuja influência na estética wagneriana é devidamente ilustrada e que foi, de resto, enfaticamente assumida por Wagner, ao ponto de este compor a sua audaciosa ópera Tristão e Isolda com as ideias de Schopenhauer sempre em mente. Mas também as ideias artísticas e musicais de carácter mais técnico são elegantemente explicadas e exemplificadas (muitas vezes, remetendo para os CD's com excertos das obras de Wagner).
Uma boa maneira de avaliar um livro deste género é ver se ele é capaz de nos motivar para descobrir mais sobre o compositor e a sua música. Ora, foi isto mesmo que aconteceu comigo e me fez passar praticamente as duas últimas semanas a ouvir as principais óperas de Wagner. O que não é coisa pouca, dado que só para escutar o ciclo completo de O Anel do Nibelungo, com as suas quatro óperas, são precisas nada mais nada menos do que 15 horas (mas confesso que não resisti a saltar uma ou outra cena). O que é relevante é que a leitura da segunda parte do livro (que tem duas partes, a primeira das quais sobre a vida de Wagner e a segunda sobre a sua música) pode mesmo ajudar a ouvir as óperas de Wagner com uma melhor compreensão do que se ouve e, assim, proporcionar uma apreciação estética mais rica.
Outro aspecto a salientar é que o autor, Stephen Johnson, não cai no pecado fatal, típico em livros de divulgação deste género, de nos brindar com uma narrativa de pendor hagiográfico. Assim, em vez de incensar o artista herói imaculado, o autor não deixa de revelar os aspectos mais sombrios do carácter pessoal de Wagner, nem deixa de referir as opiniões mais críticas de alguns dos seus mais ilustres pares, como foi o caso de Debussy, que caracterizou a revolução wagneriana como «um belo ocaso confundido como uma aurora», ou de Charles Ives, que descreveu Wagner como «um bichano invertebrado e sensualista».
Pessoalmente, posso dizer que, depois de duas semanas exposto ao pathos musical wagneriano, acho dispensáveis muitas das ideias megalómanas acerca da ópera como arte total, até porque me limitei a ouvir música sem sequer entender a maior parte das palavras cantadas. E também me parece musicalmente irrelevante todo aquele prodigioso universo medievalista semelhante ao descrito nos livros de Tolkien. Talvez por isso nenhuma das quatro óperas do Anel esteja entre as minhas preferidas. Entre estas estão Lohengrin, Os Mestres Cantores de Nuremberga e Tristão e Isolda. Lohengrin porque é das que se consegue ouvir sem ter vontade de passar à frente e porque, nesta ópera, Wagner consegue aliar beleza e arrojo musical como talvez em nenhuma outra (o Prelúdio ao Acto I e o início do Acto III, incluindo o Prelúdio, são os melhores exemplos disso). Os Mestres Cantores de Nuremberga por ser a menos tipicamente wagneriana das suas óperas (a não ser no tamanho, pois é a mais longa de todas). Talvez por se tratar de uma ópera satírica, a música é mais solta e familiar. E, ao fim de cerca de quatro horas, descobrimos que a ópera acaba exactamente da forma empolgante como começou. Enfim, Tristão e Isolda por ser a musicalmente mais ousada, com harmonias surpreendentes, a roçar os limites da dissonância, e com momentos de uma enorme intensidade expressiva, como a da cena final em que Isolda morre de amor.
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