Haverá boas razões para comprar e ouvir apenas gravações áudio com excertos das óperas — os chamados highlights — em vez de comprar e ouvir as gravações das óperas completas?
Penso que sim e que muito raramente me parece musicalmente compensador ouvir as óperas completas. Claro que se perde algo ao escutar apenas as árias, os coros e os instrumentais mais importantes de uma ópera. Mas não creio que tal perda seja musicalmente relevante.
Ao reunir numa só obra de arte a música, o teatro, as artes plásticas (dos cenários) e a literatura (dos libretos, frequentemente baseados nos clássicos da literatura), a ópera é muitas vezes considerada a arte total. Em alguns casos nem sequer a dança falta, como acontece com as óperas do barroco francês, nomeadamente de André Campra e Jean-Philipe Rameau.
Mas será que estamos realmente perante um exemplar de arte total quando ouvimos, por exemplo, o CD com a gravação da ópera Don Giovanni, de Mozart? Claramente, a resposta só pode ser negativa, pois falta ali muito do que foi acima enunciado para fazer sentido falar de arte total. Tal como uma pessoa completamente surda que assiste a uma das representações ao vivo de Don Giovanni não tem experiência dessa totalidade — mesmo que compreenda tudo o resto que se está a passar em palco —, também aquele que ouve a sua gravação áudio em casa está privado de muito do que supostamente faz da ópera uma arte total. Só quem assiste à sua representação ao vivo (e desde que não se seja surdo nem cego) poderá eventualmente apreciar a ópera enquanto arte total.
Tratando-se de teatro musical, é suposto a música da ópera estar ao serviço da narrativa e das cambiantes dramáticas presentes no libreto. Por isso, o interesse musical de algumas partes é claramente secundário para quem apenas escuta a obra em casa. Mais ainda quando o ouvinte nem sequer compreende o que os cantores estão nesse exacto momento a dizer. Duvido mesmo que a maior parte dos ouvintes que ouvem a ópera Boris Godunov, de Mussorgsky, saibam russo o suficiente para acompanhar a narrativa. Se não têm o libreto traduzido à frente e se não observam a acção desenrolar-se diante de si no palco, dificilmente se poderá encontrar grande interesse musical nas passagens que se limitam a fornecer pouco mais do que fundo instrumental adequado. O mesmo se passa com os oratórios, cujas semelhanças com a ópera são claras. O que musicalmente interessa no Oratório da Páscoa, de Bach, são principalmente as árias e os coros. Os recitativos interessam sobretudo para quem tem outro tipo de interesses na obra, que não os da estrita fruição musical.
É certo que há óperas em que as árias, os coros e as restantes partes estão tão organicamente ligados que, mesmo sem estarmos atentos a cada palavra, a música consegue ser dramaticamente expressiva a ponto de sentirmos que perdemos algo ao quebrar a sua fluidez ouvindo apenas os pontos altos. Um bom exemplo é, talvez, Tosca, de Puccini. Todo o Acto 1, por exemplo, é fértil em momentos musicalmente expressivos, pelo que seria demasiado empobrecedor reduzi-lo às celebradas árias Recondita armonia e Ah, quegli occhi, juntamente com o coro final. E o mesmo poderia ser dito dos outros dois Actos, cujo interesse estritamente musical está longe de se reduzir às famosas árias Vissi d'arte e E lucevan le stelle. Mas poder-se-á dizer o mesmo da maior parte das óperas, a começar pela acima referida ópera de Mussorgsky, com cerca de 3 horas de duração? E que dizer das óperas de Wagner?
Para quem não tem outro interesse além da simples fruição musical, dificilmente se justifica gastar dinheiro a comprar gravações de óperas completas.
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