Pode
a literatura substituir a filosofia? E a filosofia, pode substituir a
literatura? A resposta é, em ambos os casos, negativa. Felizmente, seja para
quem aprecia literatura, seja para quem se interessa realmente pelas questões
filosóficas. Mas do facto de literatura e filosofia não serem a mesma coisa,
não se segue que cada uma delas não possa dar importantes contributos para a
outra. A literatura pode fecundar a filosofia tanto como a filosofia pode
tornar a literatura fecunda, cada uma no seu próprio domínio.
Embora
os filósofos criem por vezes cenários ficcionais — como o fizeram Platão com a
alegoria da caverna e o anel de Giges, Descartes com o génio maligno, Rawls com
a posição original, Nozick com a máquina de experiências, Searle com o quarto
chinês ou Putnam com a Terra gémea e o cérebro numa cuba, entre outros exemplos
—, eles estão sobretudo interessados em desenvolver respostas para certo tipo
de questões. Essas respostas consistem em teorias desejavelmente suportadas por
bons argumentos. A tarefa do filósofo é, pois, essencialmente teórica. O poeta
e o romancista, por sua vez, tipicamente não visam resolver problemas nem
desenvolver teorias. Mas, quando se trata de boa filosofia e de grande
literatura, tanto o filósofo como o poeta e o romancista nos desafiam e nos
deixam a pensar, impelindo-nos a rever algumas das nossas ideias e convicções aparentemente mais firmes.
A grande
literatura é aquela que consegue testar as nossas intuições mais básicas: as
nossas crenças morais, estéticas, políticas, religiosas, etc. Não é tanto
aquela que afaga os nossos preconceitos e vai de encontro ao que já damos como garantido. É certo que pode ilustrar de forma luminosa algumas ideias que temos e
que ainda não estão completamente claras para nós, mas torna-se filosoficamente
fecunda sobretudo quando nos consegue incomodar e nos quer tirar a razão, surpreendendo-nos
sobre nós próprios e as nossas reacções, fazendo-nos vacilar e pensar
novamente. Quando consegue fazê-lo com elegância e subtileza, sem nos dizer o
que devemos pensar ou o que devemos sentir, a literatura adquire uma eficácia
inigualável, o que só está ao alcance de uns quantos génios literários. É por
isso que os romances em que o narrador se põe a pensar pelo leitor me parecem
insuportáveis. E isso explica por que razão os romances moralizadores — que não
é a mesma coisa que os romances com conteúdo moral — só convencem os já
convencidos. Ora, um desses romances não é certamente Lolita, do escritor russo Vladimir Nabokov.
Lolita, originalmente escrito em inglês
mas publicado pela primeira vez em França no ano de 1955, é um romance
irresistivelmente perturbador. Não foi, de resto, por acaso que a sua
publicação foi proibida em muitos países europeus — e não só — e que nunca
deixou de gerar polémica. Não só porque nos conta a história de uma personagem
moralmente sórdida, mas porque Nabokov o faz com tal requinte, que chega a
levar o leitor a simpatizar com tal personagem, fazendo estremecer as
convicções morais mesmo do leitor mais distanciado.
O
livro conta a história de um professor de literatura, Humbert Humbert, que vai
da Europa para os Estados Unidos para ensinar literatura numa universidade
americana. Acaba por arrendar um quarto na casa de uma mulher viúva, onde vive com a sua filha de 12
anos, Dolores Haze, a quem a mãe chama Lolita — o diminutivo de Dolores. O professor fica imediatamente apaixonado
por Lolita, fantasiando
o mais improvável e voluptuoso romance com aquela «sua» ninfita. A
mãe de Lolita começa, por sua vez, a sentir-se atraída pelo professor. Humbert
Humbert acha a mãe de Lolita completamente desinteressante senão mesmo
detestável, mas acaba por se casar com ela com o intuito de ficar para sempre
perto de Lolita. Mas isso não é suficiente, pois deseja ficar apenas com Lolita, o que o leva a cismar em matar a sua insuportável mulher. O problema é que não
só não tem coragem como lhe parece imprudente e mesmo indigno de uma pessoa refinada como ele ter de manusear armas ou dar-se ao trabalho de misturar veneno na
comida da sua mulher. Ainda assim, o destino dá-lhe caprichosamente uma ajuda: num
belo dia, recebe a feliz notícia de que a sua mulher foi atropelada mortalmente,
deixando-o como único responsável pelo sustento e pela educação da sua ninfita.
Fica, assim, o caminho livre para desenvolver uma relação incestuosa e pedófila com
Lolita.
Ora,
tudo isto é moralmente repugnante. Contudo, só um escritor genial consegue
tornar uma história destas irresistível, a ponto de deixar o leitor ávido,
surpreendido e mesmo irritado com a sua própria complacência em relação a uma
personagem tão execrável. E este é o aspecto filosoficamente mais interessante
do romance, na medida em que funciona como um teste às nossas intuições morais
mais básicas, tal como os filósofos imaginam situações hipotéticas para testar
as nossas convicções e as suas teorias. As teorias filosóficas não podem ser
testadas com experiências reais. Felizmente, a boa literatura é capaz de gerar as mais vivas experiências ficcionais. Mas estas experiências só são eficazes se tiverem
impacto real no leitor. Isso é tarefa para os grandes génios da literatura,
como Sófocles, Shakespeare, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, George Orwell
ou... Vladimir Nabokov.
Outra
questão filosófica interessante que Lolita sugere é a da avaliação da arte, em particular a relação entre arte e moralidade:
será que a grande arte pode ser imoral? Tolstói considerava a arte como algo
valioso por contribuir para o aperfeiçoamento moral de quem a aprecia. Assim,
uma falha moral numa obra implica sempre, segundo ele, uma falha artística,
comprometendo irremediavelmente o seu valor qua
arte. Esta posição é conhecida como moralismo. A perspectiva de Tolstói é de
tal modo exigente que ele próprio conclui que quase nenhum dos seus romances — Guerra e Paz e Ana Karenina, por exemplo — tem valor artístico precisamente por os
considerar moralmente fúteis. De acordo com Tolstói, talvez Lolita fosse uma obra literária falhada.
Em sentido oposto, o autonomismo é a perspectiva filosófica segundo a qual
nenhum defeito moral é um defeito artístico, na medida em que a arte é autónoma e, portanto, independente da moral. O esteticismo é uma forma de autonomismo e
o decadentismo uma forma extrema de esteticismo, de acordo com a qual a
estética se sobrepõe sempre à moral: qualquer imoralidade é justificável se for
cometida em nome da arte.
Resta
saber se Lolita é mesmo uma obra
imoral. Se encararmos Lolita como uma
espécie de experiência ficcional destinada a testar a firmeza das nossas
convicções morais, então talvez seja uma obra com um grande interesse moral e
filosófico. Há quem, como eu, pense que é este o caso e que é precisamente isso
que faz de Lolita um dos mais
importantes romances do século XX. É por isso que ler Lolita é um desafio intelectual, um teste moral e... um
inesquecível prazer estético.
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