sexta-feira, 8 de julho de 2016

São tudo histórias

Regra geral, os grandes artistas — sejam eles pintores, músicos, poetas ou cineastas — impressionam-nos, surpreendem-nos ou deixam-nos a pensar com o conteúdo e a genialidade das suas obras. Raramente, por mais geniais que sejam, o conseguem fazer quando reflectem sobre a sua obra e a sua arte. Quando interrogados sobre isso acabam tantas vezes por dizer pouco mais do que banalidades desinteressantes, muitas vezes sem grande nexo. 

Mas aos artistas tudo isso se perdoa, pois são macacos de outros galhos. Na verdade, não é grave que grande parte dos artistas não consigam dizer grande coisa com interesse sobre a sua obra e a sua arte — a não ser, como é óbvio, quando nos esclarecem sobre os pormenores técnicos e o contexto artístico das suas criações. Quando tem algo verdadeiramente interessante para nos mostrar, a melhor maneira de o grande artista o fazer consiste em mostrá-lo nas suas obras. E estas devem falar por si. 

Vem isto a propósito da entrevista à grande artista Paula Rego, publicada há dias pela revista do Expresso. Mas diga-se que as perguntas da entrevistadora também não ajudam Paula Rego, como se pode confirmar na passagem seguinte:


Porque é que diz que tem medo? 
Porque tenho medo de tudo. E tenho medo de tudo desde pequenina. Tenho medo do escuro. 
Mas quando pinta não tem medo? 
Não, porque se ponho na tela já não me mete medo. Pode é meter medo aos outros... [risos]. Também pinto para fazer troça das pessoas, pessoas de quem a gente não gosta nada, como as professoras e isso... 
Ficou muito marcada pela sua professora lá de casa, a D. Violeta. 
Exatamente [sussurra], mas já morreu. Que o diabo seja surdo, cego e mudo! [bate três vezes na madeira]. 
Acredita no diabo, no bem e no mal, em deus...? 
Sim. Então não existem? São tudo histórias, eu acho, mas o mundo é feito de histórias. Por isso, está claro que o diabo e deus existem, cada um à sua maneira.
A Revista do Expresso de 2 de Julho de 2016

A entrevistadora pergunta por que razão Paula Rego tem medo e Paula Rego responde que tem medo porque... tem medo. Tem, de resto, medo de tudo. Como era de adivinhar, ficámos na mesma. Contudo, lendo melhor, Paula Rego tem medo de tudo... mas das telas não tem medo. Afinal não tem mesmo medo de tudo. Ok, até se percebe a ideia: tem medo de tudo de que geralmente se tem medo quando se é pequenino. Mas, nesse caso, qual o propósito de perguntar a Paula Rego se tem medo quando pinta? Será para indagar se as suas pinturas são a expressão do medo sentido? Será para apurar se a motivação criativa de Paula Rego é transformar — oh, estafado lugar-comum! — os seus medos em quadros? Nada disso é claro.

A pergunta mais curiosa é, contudo, a última. É curiosa porque a entrevistadora não se dá conta que a pergunta é falaciosa. A pergunta assenta numa falácia bem conhecida, a falácia da questão complexa. Imagine-se que Paula Rego, como tantas outras pessoas, acreditava no bem e no mal, mas não em Deus nem no Diabo. Que resposta deveria ela dar: que sim ou que não? 

Sem se dar conta, a entrevistadora parte do pressuposto filosófico tendencioso — e, por isso, enganador — que acreditar no bem e no mal equivale a acreditar em Deus e no Diabo. Isto é partir do princípio que a perspectiva dos mandamentos divinos acerca da moral é consensual. Mas não só não é consensual como nem sequer é partilhada pela maior parte daqueles que reflectem sobre essas coisas. Será que os ateus, por exemplo, não acreditam no bem e no mal?

Ainda assim, a resposta de Paula Rego não deixa de ser desconcertante: acha que o bem e o mal, Deus e o Diabo são tudo histórias. Por isso mesmo existem, diz ela. Como as pedras, os montes e as estrelas, tudo são histórias.

Há quem concorde que no princípio era o Verbo — ou o Logos —, mas Paula Rego acha, além disso, que tudo é Verbo.

Seja como for, Paula Rego é uma mulher divertida e uma grande pintora. E o resto são histórias.


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