domingo, 20 de dezembro de 2015

Cultura de lombada



Sócrates, o filósofo grego do século V a. C., ficou conhecido pela sua estratégia de argumentação que levava os outros ao desespero. Atacava tudo e todos, punha em causa aquilo que era dado como adquirido, destruía com uma facilidade incrível as convicções mais enraizadas. N'O Banquete (e noutros diálogos de Platão), através de perguntas aparentemente inofensivas, consegue apanhar em falso os seus interlocutores e levá-los a aceitar como verdadeiro o contrário do que antes defendiam.
Sócrates, o ex-primeiro ministro, também é um orador exímio e provocador.
José Cabrita Saraiva (no semanário Sol, de 19 de Dezembro de 2015)

Este é um bom exemplo daquilo que poderíamos designar como "cultura de lombada". Muitas pessoas decoram as estantes das suas casas e escritórios com lombadas de livros que nunca leram (quando não se trata de meras lombadas). O objectivo é exibir a cultura que não se tem para levar os outros a pensar que se está perante uma mente profunda e intelectualmente respeitável. A cultura de lombada exemplifica uma certa forma de encarar a cultura e o conhecimento: a cultura como mero adereço social ao serviço do prestígio pessoal. 

Mas a cultura de lombada pode manifestar-se de várias maneiras, mesmo sem lombadas: por exemplo, quando, em vez de se decorarem as estantes, se decoram os discursos com supostas referências eruditas. Quando num curtíssimo artigo de opinião a propósito da entrevista ao ex-primeiro-ministro José Sócrates se escreve o que se lê acima, estamos provavelmente perante uma manifestação da cultura de lombada. Sobretudo quando as referências culturais são forçadas ou quando não servem para esclarecer seja o que for, como parece ser o caso. 

Até porque, como a cultura de lombada não passa de pseudo-cultura — pois trata-se da aparência de um conhecimento que realmente não se tem —, é muito frequente o lombadista meter o pé na argola. Assim, afirmar que o filósofo Sócrates, no diálogo O Banquete, consegue, com perguntas inofensivas, levar os seus interlocutores ao desespero, fazendo-os «aceitar como verdadeiro o contrário do que antes defendiam», só pode ser entendido como cultura de lombada. Na verdade, não pode haver pior exemplo do método socrático (e, em particular, da fase preparatória da famosa maiêutica) do que precisamente O Banquete, onde os diálogos são meramente acessórios. O Banquete é pouco mais do que uma sucessão de belos discursos (de Pausânias, Erixímaco, Aristófanes, Agatão, Sócrates e, finalmente, Alcibíades) sobre Eros, sem lugar para os célebres interrogatórios socráticos (o único e breve vislumbre disso ocorre imediatamente após o discurso de Agatão). 

Não sei se JCS leu há muito O Banquete e já não se lembra bem ou se foi o primeiro diálogo platónico que lhe ocorreu. Mas, se não é, parece mesmo cultura de lombada. Ainda assim, seria exagerado pensar que há algo de especialmente grave nisto. A não ser quando se trata de mais um exemplo a juntar a tantos outros que, a propósito e a despropósito, ouvimos e lemos nas TVs e nos jornais.   

A triste e bafienta cultura de lombada parece continuar, como em outros tempos, a florescer entre nós. Coitados de nós.

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