quarta-feira, 1 de julho de 2015

Compreender a música

A música é feita para ser ouvida. Mas há várias maneiras de ouvir música. Ouvir música compreendendo minimamente o que se escuta permite certamente escutar mais do que usando apenas os ouvidos. Porque a música envolve muito mais coisas do que apenas som e porque o som musical é organizado de formas que são para nós significativas, deixo aqui a sugestão de quatro livros que nos ajudam a compreendê-la melhor.

Trata-se de quatro excelentes livros que nos dão uma perspectiva de diferentes aspectos da arte musical. Dois deles abordam a música a partir da psicologia e da ciência cognitiva em geral; os outros dois, a partir da própria história da música.

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No seu livro Uma paixão Humana: O seu cérebro e a música (Bizâncio), o neurocientista e ex-produtor musical Daniel Levitin procura mostrar, recorrendo aos resultados da investigação científica, como se dá a apreciação musical, ao mesmo tempo que explica a sua importância para a evolução humana. Levitin ilustra as suas ideias com exemplos de diversos estilos musicais, que vão do barroco de Bach ao punk dos Sex Pistols, passando pelo jazz de Miles Davis e pelo rock dos Led Zeppelin, entre muitos outros.

Uma das muitas coisas interessantes que Levitin refere é que o maior contributo do rock para a história e desenvolvimento da música ocidental reside no alargamento e exploração das suas posssibilidades tímbricas. A marca distintiva do rock é o timbre; não é a melodia nem a harmonia nem sequer o ritmo, em relação aos quais o rock é, de resto, bastante tradicionalista. Diz Levitin:

As alturas que usamos em música — as escalas — são essencialmente as mesmas desde os Gregos, com excepção do desenvolvimento — na verdade refinamento — da escala de temperamento igual na época de Bach. O rock and roll pode ser o passo final da longa evolução milenar musical que deu às quartas e quintas perfeitas uma proeminência na música que, historicamente, apenas tinha sido dada à oitava. Durante esta época, a música foi em grande parte dominada pelas alturas sonoras. Nos dois últimos séculos, o timbre tem vindo progressivamente a tornar-se mais importante. Um componente-padrão da música de todos os géneros é a reafirmação da melodia usando diferentes instrumentos — da Quinta de Beethoven ao Bolero de Ravel, de Michelle dos Beatles a All My Ex's Live in Texas de George Strait. Foram inventados novos instrumentos musicais para que os compositores possam ter uma paleta maior de cores tímbricas para desenhar. Quando um cantor country ou pop pára de cantar e outro instrumento entra na melodia — mesmo que não a altere —, retiramos prazer da repetição da mesma melodia num timbre diferente. [...]
Compositores como Scriabin e Ravel falam das suas obras como pinturas sonoras: as notas e melodias são equivalentes à silhueta e à forma, e o timbre é equivalente ao uso da cor e da sombra. Vários compositores populares — Stevie Wonder, Paul Simon e Lindsey Buckingham — descreveram as suas composições como pinturas sonoras em que o timbre desempenha um papel equivalente ao da cor na arte visual, separando as formas melódicas umas das outras.

A tradução portuguesa deste excelente livro baseia-se na 2.ª edição original de 2013, e conta com uma competente revisão científica de Sérgio Azevedo. Está de parabéns a editora Bizâncio por esta tradução de Bárbara Pinto Coelho. 


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O segundo livro que sugiro, Guitar Zero: The science of learning to be musical (Oneworld),  não está, infelizmente, disponível em português (bom, não sei se tem tradução no Brasil). Gary Marcus é também um cientista cognitivo, que dirige um centro de investigação sobre linguagem e música na Universidade de Nova Iorque. Marcus, diferentemente do que faz Levitin, centra-se não na apreciação e compreensão musical mas antes nas questões relativas à aprendizagem musical e à capacidade para tocar competentemente um instrumento. 

A tese central de Marcus é que não se nasce músico: não há, portanto, um dom natural para a música, sendo antes algo que se aprende. Os bons músicos não nascem assim, fazem-se com o treino intenso. Marcus baseia-se nas investigações por si desenvolvidas e, em particular, no seu próprio exemplo: aos 40 anos decidiu suspender a sua actividade profissional para aprender a tocar guitarra eléctrica. A verdade é que, contra todas as expectativas e contra aquilo que lhe diziam todos os seus amigos músicos, insistindo que sofria de uma total falta de apetência natural para isso, acabou por se tornar um guitarrista razoável, a ponto de conseguir emparceirar com o seu amigo Tom Morello, guitarrista dos Rage Against the Machine. 

Outra das teses defendida por Marcus é que não há uma idade mais indicada — no sentido de a aprendizagem ser mais rápida, eficaz e duradoura — para se aprender a tocar um instrumento. O facto de, em geral, as crianças e adolescentes aprenderem mais rapidamente a tocar um instrumento deve-se não à alegada plasticidade cerebral, mas apenas a uma muito maior persistência no treino, decorrente da sua muito maior disponibilidade para isso.  

O livro de Marcus é bastante divertido, conseguindo combinar de forma inesperada a ciência com a cultura musical popular. E tudo isto de forma autobiográfica. Seria uma excelente notícia se viesse a haver uma boa tradução portuguesa deste livro.



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O terceiro livro, O Resto é Ruído: À escuta do século XX, de Alex Ross (Casa das Letras), já está traduzido entre nós há alguns anos, mas nunca é demais voltar a ele. Trata-se de um livro que nos apresenta a história do século XX a partir da música, articulando a história da música com as  outras artes e com a história das ideias em geral, mostrando como a música, a sua criação e a sua apreciação, fazem parte de um universo mais vasto de ideias que nos ajudam a entendê-la melhor. É um livro fascinante a vários títulos e pode-se aprender muito com ele, não apenas sobre a música. 

Eis uma interessante passagem do livro:

Todo o discurso que envolve o vanguardismo vienense exige um escrutínio céptico. [...] Tal como aconteceu noutros períodos de convulsão social, os gestos revolucionários traem uma postura mental reaccionária. Muitos membros da vanguarda moderna afastar-se-iam de uma solidariedade em voga com os proscritos da sociedade e adeririam a várias formas de ultranacionalismo, autoritarismo e até nazismo. Além disso, só numa sociedade próspera, liberal e apaixonada pela arte poderia sobreviver uma tal classe anti-social de artistas, ou encontrar audiência. A veneração burguesa pela arte tinha implantado na mente dos artistas uma atitude de infalibilidade, segundo a qual a imaginação é que possuía legitimidade para impor regras. Essa mentalidade tornou possível os extremos da arte moderna.
[...]
Paris, onde Liszt causou uma histeria de massas na primeira metade do século XIX, era mais ou menos o local de origem do vanguardismo tal como agora o concebemos. Charles Baudelaire assumiu todas as poses do artista em oposição à sociedade em termos de vestuário, de comportamento, de hábitos sexuais, de escolha de assuntos e de arte de recitar. O venerável poeta simbolista Stéphane Mallarmé definiu poesia como uma prática hermética: «Tudo o que é sagrado e que como tal deseja permanecer deve envolver-se em mistério.»
O Jovem Debussy adoptou aquela atitude como verdade absoluta. Em 1895 escreveu ao seu colega Ernest Chausson: «Na verdade, a música deveria ter sido uma ciência hermética, guardada em textos tão difíceis e trabalhosos de decifrar que desencorajassem a maioria das pessoas que a aborda tão casualmente como faz com um lenço! Eu iria ainda mais longe e, em vez de a disseminar entre a populaça, proponho a fundação de uma Sociedade do Esoterismo Musical.» 



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Por fim, outro livro que, infelizmente, também não está traduzido entre nós. Trata-se de Big Bangs: The story of five discoveries that changed musical history (Vintage), do compositor e divulgador musical britânico Howard Goodall. Desta vez, estamos perante um livro que se centra na própria história da música, apresentando-nos aqueles que considera serem os cinco maiores acontecimentos que afectaram definitivamente o desenvolvimento da música. Goodall está a pensar em acontecimentos que ocorreram num momento preciso e não em transformações que ocorreram gradualmente ao longo do tempo. Os cinco momentos mais importantes foram, de acordo com Goodall os seguintes:

1. Século XI, por Guido de Arezzo (Toscana, Itália): a invenção da notação musical moderna. Apesar de as tentativas de notação musical serem muito mais antigas, foi o monge Guido de Arezzo que pela primeira vez o fez usando a escala diatónica na qual acabou por se basear a tradição musical ocidental. A partir daí passa a ser possível preservar e conhecer a música do passado e a noção de autoria faz a sua entrada definitiva na história da música — muitos diriam até que é aí que começa verdadeiramente a história da música ocidental.

2. 1597, por Jacopo Peri, em Florença (Toscana, Itália): a invenção da ópera, com a estreia de Dafne (cuja partitura se perdeu). A importância da ópera para a história da música ocidental não consiste apenas em haver mais um género musical para explorar, pois a influência da ópera estende-se muito para além disso, nomeadamente na forma como a música passa a ser encarada pelo público em geral.

3. 1711, por Bartolomeo Cristofori, em Florença (Toscana, Itália): a invenção do piano, então chamado pianoforte. A história da música seria substancialmente diferente sem esta invenção.

4. 1722, Por J. S. Bach, em Köthen (Saxónia, Alemanha): o uso sistemático da afinação de temperamento igual, patente na publicação do Livro 1, Prelúdios e Fugas, de O Cravo Bem Temperado, a primeira colecção de peças que exploram todas as 24 tonalidades sem que seja dada preferência a qualquer uma. Este tipo de afinação não é totalmente original, mas sim a sua aplicação sistemática nos 24 tons por parte de J. S. Bach, cuja influência na música ocidental ainda perdura.  

5. 1877, por Thomas Edison, em New Jersey (Estados Unidos): a invenção da gravação sonora, que veio a alterar completamente não apenas o consumo e divulgação da música, como a própria composição musical.


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