quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Os ateus e o Natal


Richard Dawkins, um biólogo ateu militante

Volta e meia lemos notícias de protestos contra a existência de crucifixos em salas de aula de algumas escolas públicas. Argumenta-se que o estado, de que todos fazemos parte, é laico e não deve privilegiar qualquer confissão religiosa. Se a escola é de todos, sejam católicos, islâmicos, hinduístas, budistas, judeus ou ateus, então não é adequado manter símbolos desta ou daquela religião, ainda que seja praticada pela maioria dos portugueses, tal como não é adequado colocar nas paredes das salas das escolas públicas símbolos do Benfica ou do Partido Socialista, caso os portugueses sejam maioritariamente benquistas ou socialistas.

Mas se assim for, contra-argumentam algumas pessoas, também temos de alterar os nomes de muitas ruas, vilas e cidades do país que têm nomes de santos e de outras entidades religiosas. É até comum os hospitais públicos terem nomes de santos. E, já agora, o que fazer aos feriados religiosos e às férias da Páscoa e do Natal? Também deviam essas festas acabar, para que os cidadãos de outras confissões religiosas e os ateus não se sintam incomodados?

Talvez se trate, contudo, de coisas diferentes. É importante não ignorar que as sociedades mudam ao longo dos tempos. Os portugueses dos nossos dias não são os mesmos portugueses que viveram em séculos passados. As sociedades e as culturas não são, pois, estáticas. Sem dúvida que, apesar das mudanças, algo permanece. Mas nem sempre o que se recebe da herança cultural e as práticas sociais contemporâneas têm de ser consonantes. 

Isto levou-me a pensar numa outra questão interessante: estarão os ateus a ser incoerentes ao festejarem o Natal, que é uma festa de origem religiosa? Será coerente exigir a remoção dos crucifixos das escolas públicas e, ao mesmo tempo, envolver-se na celebração do Natal, montar a árvore de Natal em casa, desejar um feliz Natal aos amigos e conhecidos e fazer questão de passar o Natal em família?

domingo, 20 de dezembro de 2009

argumentos de carácter emocional


Na ultima aula de filosofia, o Prof. Aires chamou-me a atenção para o uso de argumentos de carácter emocional, no post do vegetarianismo, porque os nossos argumentos devem ser sempre racionais, caso contrário não são 100% filosóficos dado que a base da filosofia é a razão. Eu concordei com ele, se não fosse a razão o nosso guia filosófico, então muito provavelmente perdiamo-nos muitas vezes. Mas não sei porquê, naquele dia pus-me a pensar e cheguei à conclusão de que afinal, na minha opinião, claro está, a maioria, se não todos os argumentos têm uma base emocional, mesmo aqueles que parecem mesmo frios e desprovidos de algo mais que a razão. Ora vejamos, nós argumentamos para tentarmos convencer os outros de que estamos certos, e assim se conseguir chegar a uma verdade na discussão filosófica. Porém, por detrás daquilo que argumentamos costuma estar um desejo ou um medo, que são emoções. Por exemplo, no post do vegetarianismo, o Sérgio argumentava, porque na verdade gostava de comer carne e queria continuar a comê-la sem se sentir mal e a Lúcia argumentava porque tinha uma empatia pelos animais que não a deixava comer carne e que a faria achar que ninguém devia. Hittler argumentava contra os judeus, pois eles dominavam a economia e ele desejava que fossem os arianos, estando com medo de ser controlado por alguém que não fosse da sua raça, e os que defendiam os judeus (em segredo) tinham medo de todas as mortes e/ou empatia por eles, os moralistas defendem "mentir é errado" mas na verdade o que estão a dizer é "abaixo o mentir!" e defendem também que "dizer a verdade é correcto" mas não quererão dizer "viva a dizer a verdade!"? Quando a frase se torna exclamativa, revela emoções.

Sendo assim, como podemos excluir as nossas emoções dos nossos argumentos?

Digam-me, isto faz algum sentido, ou há alguma coisa que não esteja a ver bem?

sábado, 12 de dezembro de 2009

As mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos?


Juiz - Outra vez por cá, senhor Abílio? Está a tornar-se um frequentador assíduo deste tribunal. Parece que voltou a agredir outra pessoa.
Abílio - Teve de ser! Que hei-de eu fazer?
Juiz - Quer dizer que não podia evitar? Como assim? Olhe que há muita gente que nunca agrediu seja quem for. Portanto, não me venha dizer que não tinha como evitar.
Abílio - Pois, há quem nunca tenha agredido ninguém porque nunca se encontrou na mesma situação que eu. Até o senhor doutor juiz faria o mesmo, se estivesse no meu lugar.
Juiz - Mas... diga lá, então, o que aconteceu.
Abílio - Esmurrei uma pessoa que me insultou, chamando-me «bufo». Claro que tive de defender a minha honra.
Juiz - Mas ela ter-lhe chamado bufo, ou delator, não é caso para a esmurrar. Há muitas pessoas que, no seu lugar, não o fariam. Eu, por exemplo, nunca o faria.
Abílio - É porque o senhor doutor juiz não se consegue colocar mesmo no meu lugar.
Juiz - É claro que consigo! E garanto-lhe que nunca procederia assim. Também já disseram de mim coisas bem desagradáveis. E, olhe, nem sequer liguei!
Abílio - Mas isso não significa que se está a imaginar no meu lugar. Pôr-se no meu lugar não é só passar por uma situação semelhante. É também pensar como eu, ter tido a mesma educação que eu, a mesma cultura, as mesmas vivências e até ter as mesmas características genéticas que eu.
Juiz - Bem, por isso é que somos diferentes, claro. Mas explique lá melhor onde quer chegar.
Abílio - Veja bem, provavelmente o senhor doutor foi educado de maneira muito diferente, mas eu fui ensinado desde pequeno a reagir sempre que me insultam. Além disso, no meio em que fui criado, «bufo» é a pior coisa que se pode chamar a uma pessoa, pelo que temos de defender a nossa honra. Caso contrário, somos mal vistos e considerados cobardes pelos nossos amigos, que é do pior que nos pode acontecer. Também lhe digo que a violência sempre fez parte da minha vida, de maneira que passei a encará-la como algo normal e aceitável. Além disso, sou uma pessoa muito nervosa e sou agressivo por natureza. Herdei essas características do meu pai e não tenho culpa disso. Portanto, pôr-se no meu lugar é pôr-se na minha cabeça, ter os pensamentos e desejos que eu tenho, olhar para as coisas com os meus olhos e sentir as coisas como eu as sinto. Não tenho culpa de pensar como penso, de sentir como sinto e de ser como sou.
Juiz - Ora, ora, está a querer dizer que não tinha opção?
Abílio - Dada a maneira como fui educado, o meio em que me movo, as experiências por que passei e a minha própria natureza, não podia ter feito outra coisa. Se o senhor doutor juiz estivesse na minha pele e na minha cabeça, faria exactamente o mesmo.
Juiz - Salvo seja!
Abílio - Lá está! Não consegue pôr-se exactamente no meu lugar. Mas se as circunstâncias fossem exactamente as mesmas, o efeito seria também o mesmo. Portanto, dado as circunstâncias serem essas e não outras, não tive realmente opção.
Juiz - Não me venha com histórias! O senhor fez aquilo que quis fazer.
Abílio - Mas é claro que fiz o que queria fazer. Nunca o neguei. Mas o que digo é que algo que eu não controlo me levou a querer fazer isso. Quis fazer o que fiz, sem dúvida, mas a verdade é que não mando realmente nos meus desejos.



terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Fazemos mesmo o que queremos?

Todos os anos por altura do Natal é a mesma coisa e todos os anos penso que no próximo vai ser diferente. Não quero voltar a perder horas entre multidões que se acotovelam nas lojas a comprar inutilidades. E para quê?

São prendas para os meus pais, para os amigos e as crianças dos amigos, para os vizinhos e as crianças dos vizinhos, para os tios e os primos mais chegados, para a namorada, para os avós e ainda os outros de que agora me lembro - há sempre alguém que se esquece e que nos leva à última hora a correr aos centros comerciais à procura sabe-se lá bem do quê. Tudo isto sem contar com o dinheiro que se gasta e o cansaço que se apanha.

Não, estou farto! Este ano vai ser diferente e não vou mais alinhar nestes rituais consumistas sem sentido. Afinal, por que hei-de eu fazer o que não quero? Só porque é costume e os outros também o fazem? Mas não sou um carneiro para fazer algo só porque os outros o fazem também. Parece mal? Quero lá saber disso! As pessoas que levarem a mal é porque, afinal, não interessam mesmo.

É isso, este ano não ofereço prendas no Natal e é isso vou dizer aos meus pais, avós, irmãos, namorada, amigos, vizinhos e colegas mais chegados. Que alívio!

Bom, pensando bem, à minha namorada tenho mesmo de oferecer qualquer coisa (aliás, qualquer coisa não pode ser, pois ela é bem esquisita). Ela de certeza que iria atirar-me isso à cara um dia, até porque me anda sempre a falar daquele perfume de que gosta mesmo muito. Coitada, até merece e é bem capaz de estar à espera disso. Não, não a vou decepcionar.

Ah, é verdade, a minha prima Aurélia de certeza que me vai oferecer uma boa prenda, como de costume. Eu bem lhe digo que não vale a pena, mas ela gosta mesmo destas coisas. Se calhar não ia entender se eu não lhe oferecesse algo, por muito simples que seja. Ok, ofereço-lhe o último disco da Shakira, que ela gosta muito, e pronto. Nesse caso, tenho também de dar algo aos meus avós, coitados. Mas isso é fácil, dou-lhes um par de meias ou algo parecido, pois contentam-se com pouco. Para eles, que estão habituados a isso, o que importa é apenas o gesto.

Sendo assim, os meus pais são capazes de ficar tristes se virem que ofereço algo aos outros e não penso neles, mesmo que não mo digam. Tenho de lhes oferecer alguma coisa também. Mas a mais ninguém... a não ser às crianças do vizinho. Esses é que não vão mesmo entender se não lhes der um brinquedo qualquer, até porque eles vão dar-me alguma coisa (comprada pelos pais, claro). Além disso, o vizinho é muito simpático e dá importância a estas coisas. E o meu tio Tobias, que tem a mania de oferecer coisas caras? No ano passado deu-me ipod bem fixe. Bom, esse é que não posso mesmo deixar de mãos a abanar. E já me estava a esquecer da ...

Espera aí! Lá volta, contra a minha vontade, tudo outra vez ao mesmo. Mas será que não consigo fazer o que quero? Afinal quem manda em mim? Será que sou mesmo livre de fazer o que bem entender? Todos os anos digo a mesma coisa e todos os anos acabo por fazer o mesmo. Mas porquê? No fundo é porque não sou mesmo capaz de me estar nas tintas para o que os outros pensam. Que hei-de fazer? Não tenho culpa de ser assim (ou, talvez, de me terem feito assim). No fundo, isto de termos controlo sobre as nossas acções é uma ilusão. Acabamos sempre por fazer o que se espera que façamos.

O que me dizem disto tudo?

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Dia mundial da filosofia: respeitar os filósofos

Hoje é o dia mundial da filosofia. Acho que um dia só é pouquíssimo.
Para assinalar este dia, pediram-me para escrever um texto sobre algumas afirmações célebres de filósofos à minha escolha. Deixo-vos aqui o texto com o resultado das minhas reflexões filosóficas, esperando que mostrem algum respeito, mas nenhum respeitinho, nos vossos comentários.


Respeito pelos filósofos

Há quem encare os filósofos como deuses ou como sábios: com muito respeitinho, não ousando discordar deles. Para essas pessoas, as palavras de um filósofo são como a voz de um oráculo que, em vez suscitar discussão, é preciso aceitar e repetir respeitosamente. Mas isso é a própria negação da filosofia, pois é um convite à suspensão da nossa capacidade crítica.

Olhar para os filósofos desta maneira é confundir filosofia com religião. Além de que, por incrível que possa parecer a algumas pessoas, os filósofos são seres humanos como os outros: comem, dormem, amam, choram, vão à praia, usam telemóvel e... erram. Assim, a melhor maneira de respeitar um filósofo é encará-lo simplesmente como filósofo – não como pregador – discutindo criticamente as suas ideias. O que os filósofos querem é respeito, não respeitinho.

Eis, pois, algumas afirmações de filósofos importantes que, com o devido respeito, me parecem disparatadas:

Do que não se pode falar, há que ficar em silêncio. Wittgenstein, o autor desta afirmação, considerava que o mais importante é precisamente o que não pode ser dito. Mas deverá esta afirmação ser levada a sério? Se sim, Wittgenstein está a ser incoerente, pois está a exprimir algo acerca do que não se pode falar. Razão parece ter um outro filósofo, Frank Ramsey, ao comentar que o que não pode ser dito nem sequer pode ser assobiado. Pelo que se vê, Wittgenstein fez mais do que assobiar, pois não conseguiu ficar em silêncio acerca do que não se pode falar.

Até aqui os filósofos têm-se dedicado a interpretar o mundo, porém o que importa é transformá-lo. Marx, autor da frase, dava uma prioridade à praxis (prática ou acção) em relação à teoria. Mas há demasiados exemplos de que a prática, quando não é iluminada por uma compreensão prévia da realidade, acaba por se tornar cega e mesmo perigosa. Como sabemos o que transformar ou sequer se podemos mudar o que ainda não tentámos compreender? E será que é realmente importante mudar o que eventualmente possa estar bem? Não será fundamental saber antes o que está bem ou mal e porquê para sabermos se vale realmente a pena mudar seja o que for? Assim, a ideia subjacente de que a teoria e a prática são coisas divergentes é manifestamente errada e até perigosa.

O que não me mata torna-me mais forte. Disse-o Nietzsche, mas também o dizia a minha avó, que nunca ouviu sequer falar de Nietzsche. E até já a avó da minha avó o dizia também, só que de uma forma ligeiramente diferente: o que não mata engorda. Mas basta pensar um pouco para ver que tanto Nietzsche como a minha avó foram algo precipitados a tirar conclusões, o que se desculpa mais à minha avó do que a Nietzsche. A ideia de Nietzsche é a de que a vida é para ser vivida sem restrições, sem disfarçar a dor e a alegria, como acontece com os mais fortes e corajosos, que nada rejeitam. Assim, dar o peito às balas é próprio dos mais fortes. Só que há balas que não matam mas moem, deixando-nos fracos e feridos para o resto da vida. Nem Nietzsche nem a minha avó foram capazes de evitar uma falácia muito comum: a falácia da generalização precipitada.

Claro que as frases destes filósofos têm mais que se lhes diga e o contexto em que foram produzidas pode dar-lhes outro sentido. Mas tem de se começar a discussão por algum sítio e isto é só um princípio de discussão.

Com muito respeito, mas sem qualquer respeitinho.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Quantas acções?

Salvatore, um membro da máfia siciliana, dirige-se a um apartamento da cidade de Palermo com uma metrelhadora nas mãos para fazer um ajuste de contas. Há quatro membros de famílias rivais que ele quer eliminar e sabe que, nessa noite, os quatro se juntam no apartamento para jogar às cartas. Sobe as escadas, arromba a porta do apartamento e surpreende os quatro inimigos sentados à mesa. Descarrega as balas da metrelhadora sobre eles, matando-os.

Sucede que, ao fundo da sala, estava uma quinta pessoa - a Luciana - atrás de uma cortina de tecido a fazer café para os outros. A Luciana foi também atingida e morreu. Salvatore desconhecia a Luciana e nem sequer sabia que estava na sala.

Pergunta-se: o Salvatore realizou a acção de matar a Luciana? E realizou cinco acções (matar cada uma das cinco pessoas) ou apenas quatro (disparar sobre os quatro jogadores de cartas)? Ou será que apenas realizou uma acção, a acção de matar cinco pessoas?

O que vos parece?

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Mais acções?


Vamos aceitar que as acções são acontecimentos que consistem em algo que um agente faz intencionalmente.

Imaginemos agora a seguinte situação. A Hermínia estava a jogar à bola na rua e apostou dez euros com o Macário que, com um só pontapé na bola, conseguia acertar na placa de trânsito que estava no outro lado da rua, mesmo em frente da montra de uma pastelaria. Por azar ou falta de perícia, em vez de acertar na placa, acertou antes na montra da pastelaria, tendo partido o vidro. Um dos clientes da pastelaria foi atingido na mão por um pedaço de vidro, ficando a sangrar.

Posto isto, o dono da pastelaria acusou a Hermínia de lhe ter partido a montra e o seu cliente também a acusou de o ter aleijado na mão. Mas a Hermínia respondeu a ambos que estavam enganados; que ela não realizou a suposta acção de partir a montra nem a suposta acção de aleijar a mão do cliente, dado que nenhum desses acontecimentos foi intencional.

- Então não realizaste qualquer acção? - perguntou o dono da pastelaria.
- Realizei sim - respondeu a Hermínia -, mas só a acção de pontapear a bola contra a placa de trânsito. O Macário é testemunha.

Pergunta-se: afinal quantas acções houve e qual foi o agente?

Qual é a falácia?

Uma ex-ministra da saúde da Finlândia diz que a vacina da gripe A, ao contrário da própria gripe A, mata pessoas. Logo, a vacina da gripe A mata pessoas.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Quem argumenta melhor?


Etelvina - Deus existe.
Isaltino - Estás enganada, Deus não existe.
Etelvina - Mas por que dizes que Deus não existe?
Isaltino - Ora essa, porque ninguém consegue provar que existe e, portanto, não vejo por que razão haveríamos de acreditar que existe.
Etelvina - Mas a razão para acreditar é simples: porque ninguém consegue provar que não existe.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Será que escolhemos realmente o que fazemos?

Em 1924, dois adolescentes de Chicago, Richard Loeb e Nathan Leopold, raptaram e assassinaram um rapaz chamado Bobby Franks apenas para provar que conseguiam fazê-lo. O crime impressionou o público. Apesar da brutalidade do seu acto, Leopold e Loeb não pareciam especialmente perversos. Provinham de famílias ricas e eram ambos estudantes excelentes. Aos dezoito anos, Leopold era o licenciado mais jovem na história da Universidade de Chicago, e, aos dezanove anos, Loeb era a pessoa mais nova que se tinha licenciado na Universidade de Michigan. Leopold estava prestes a entrar na Escola de Direito de Harvard. Como era possível que tivessem cometido um assassinato absurdo? O seu julgamento iria receber o mesmo tipo de atenção que o de O. J. Simpson, setenta anos mais tarde.

Os seus pais contrataram Clarence Darrow, o advogado mais famoso da altura, para os defender. Darrow era conhecido como o paladino das causas impopulares — tinha defendido sindicalistas, comunistas e um negro acusado de ter morto um membro de uma turba racista. Três anos depois, no seu caso mais famoso, defendeu John Scopes, do Tennessee, da acusação de ter ensinado a evolução numa aula do ensino secundário. Darrow era também o adversário da pena de morte mais conhecido no país. Em 1902, tendo sido convidado pelo director da Prisão de Cook County para dar uma conferência aos presidiários, disse-lhes o seguinte:

Na verdade, não acredito minimamente no crime. No sentido habitual da palavra, não existem crimes. Não acredito em qualquer distinção entre as verdadeiras condições morais das pessoas que estão dentro e das que estão fora da prisão. São iguais. Do mesmo modo que as pessoas que estão aqui dentro não poderiam ter evitado estar aqui, as pessoas que estão lá fora também não poderiam ter evitado estar lá fora. Não acredito que as pessoas estejam na prisão porque o mereçam. Estão na prisão apenas porque não puderam evitá-lo, devido a circunstâncias que ultrapassam inteiramente o seu controlo e pelas quais não são minimamente responsáveis.
Estas ideias iriam figurar preeminentemente na defesa de Leopold e Loeb. [...]

Leopold e Loeb tinham já admitido a sua culpa, pelo que o trabalho de Darrow era apenas mantê-los longe da forca. Não haveria um júri. O juiz escutaria os argumentos dos advogados e decidiria depois se os réus seriam enforcados.

Darrow falou durante mais de doze horas. Não sustentou que os rapazes eram loucos. Ainda assim, disse, não eram responsáveis pelo que tinham feito. Darrow apelou a uma nova ideia que os psicólogos tinham proposto, nomeadamente que o carácter humano é moldado pelos genes do indivíduo e pelo ambiente. Disse ao juiz: «As pessoas inteligentes sabem agora que todo o ser humano é o produto de uma hereditariedade infindável que o precede e de um ambiente infinito que o rodeia».

Não sei o que levou estes rapazes a realizar esse acto louco, mas sei que houve uma razão para que o tenham realizado. Sei que não o produziram por si. Sei que qualquer uma de um número infindável de causas que remontam ao começo pode ter actuado na mente destes rapazes — que vos pedem para enforcar por malícia, ódio e injustiça — porque, no passado, alguém pecou contra eles.

Os psiquiatras tinham atestado que os rapazes não tinham sentimentos normais, pois não mostravam qualquer reacção emocional ao seu acto. Darrow tirou partido disto:

Deveremos censurar Dickie Loeb por causa das forças infinitas que conspiraram para o formar, das forças infinitas que actuaram na sua criação muito antes de ele ter nascido, sabendo que, por causa dessas combinações infinitas, ele nasceu sem [o tipo correcto de emoções]? Se devemos, então tem de haver uma nova definição de justiça. Deveremos censurá-lo pelo que não teve e nunca teve?
Darrow descreve Loeb como alguém que, na infância, esteve privado do afecto de que um rapaz precisa, tendo passado os dias a estudar e as noites a ler secretamente histórias de crimes enquanto fantasiava cometer o crime perfeito e enganar a polícia. Quanto a Leopold, ele era fraco e não tinha amigos. Cresceu obcecado com a filosofia do «super-homem» de Nietzsche, desprezando as outras pessoas e querendo desesperadamente provar a sua superioridade. Depois os dois rapazes conhecerem-se e, juntos, cometeram um crime que nenhum deles poderia ter cometido sozinho. Porém, estavam apenas a jogar com a mão que a natureza lhes dera. «A natureza é forte e impiedosa», concluiu Darrow. «Trabalha de uma forma misteriosa que lhe é própria e nós somos as suas vítimas. Nós próprios não temos muito a ver com ela.»

O juiz deliberou durante um mês e depois condenou Leopold e Loeb a prisão perpétua. Doze anos mais tarde, Richard Loeb, que fora o instigador do crime, foi morto numa contenda com outro prisioneiro. Nathan Leopold passou trinta e quatro anos na prisão, durante os quais deu aulas a outros prisioneiros, ofereceu-se como cobaia para experiências médicas com a malária, dirigiu a biblioteca da prisão e trabalhou no hospital da prisão. Depois ficar em liberdade condicional, foi viver para Porto Rico, onde continuou a esforçar-se até ao fim da vida por se «tornar novamente um ser humano», sobretudo através de trabalhos que implicavam ajudar os outros. Morreu em 1971.

James Rachels, Problemas da Filosofia (Lisboa: Gradiva, 2009, pp. 155-9)

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Mais uma derivação

Muitos alunos do 11º ano insistiram no pedido de mais exercícios para fazer derivações. Aqui têm mais um:

[(P Λ Q) Λ (R Λ S)] →P, ¬P |-- (¬P ∨¬Q) ∨ (¬R ∨¬S)

Espero que seja o último. Parece difícil, mas talvez não seja assim tanto. Vamos ver, pelas vossas respostas.

domingo, 8 de novembro de 2009

Uma questão básica: o que é uma acção?


Há questões tão básicas, que até parece ridículo pensar que haja algo realmente em questão. Se eu perguntar "Será que o teclado em que escrevo estas palavras existe realmente?", é provável que esta pergunta faça sorrir alguns leitores. E porquê? Porque a resposta lhes parece tão óbvia que não se entende onde possa estar o problema. Concluem, assim, que a pergunta só pode ser disparatada.

Mas será razoável pensar que aquilo que parece absolutamente óbvio não pode ser enganador? Parece óbvio que o Sol se levanta e se põe, pois qualquer pessoa vê com os seus próprios olhos os montes e as casas no mesmo sítio, ao passo que o Sol, como as nuvens e a Lua, percorrem o céu. E isto pareceu-nos durante tantos séculos tão óbvio, a ponto de se tornar indiscutível. Mas sabemos agora que isso não só não era indiscutível como era falso.

Vejamos agora outro exemplo. Parece óbvio que todos sabemos o que é uma acção. Imaginemos que vimos a Adozinda cair no chão, partindo o braço esquerdo, e nos pedem para explicar o que aconteceu. Podemos, por exemplo, dizer que o Eleutério a empurrou e, em consequência do acto do Eleutério, a Adozinda caiu com o corpo em cima do próprio braço, partindo-o. Será que o Eleutério realizou a acção de partir o braço à Adozinda ou apenas a acção de a empurrar? E será que há alguma acção realizada pela Adozinda, nomeadamente a acção de cair ou a acção de partir o próprio braço?

Claro que só podemos responder adequadamente a estas perguntas se soubermos o que é uma acção e todos julgamos saber o que é uma acção. Mas sabemos mesmo?

Se saber o que é uma acção for completamente óbvio, então todos os leitores concordarão sobre quais as respostas correctas para as perguntas anteriores. E também concordaremos sobre quais das afirmações seguintes referem algo que envolve acções:

1. O Marcolino está a dormir.
2. O Marcolino está a estudar História.
3. O Marcolino ofereceu uma rosa à namorada.
4. O Marcolino está a pensar no que vai dizer à namorada.
5. O Marcolino dança um tango.
6. O Marcolino espirrou.
7. O Marcolino é actor e espirra no palco, tal como indica o guião da peça.
8. O cão do Marcolino está a ladrar.
9. O robô ASIMO, construido pela Honda, levantou um dos seus braços mecânicos.
10. Troveja na Serra da Estrela.

Se todas as vossas respostas coincidirem, então fico mesmo convencido que saber o que é uma acção é algo realmente óbvio.

Vamos fazer o teste? Deixem, então, as vossas respostas na caixa de comentários.

sábado, 7 de novembro de 2009

Humor filosófico


Ela sai para o alpendre da casa todas as manhãs e exclama:

- Que esta casa esteja protegida dos tigres! - E, em seguida, volta para dentro.

Por fim, nós dissemos-lhe:

- Para que é aquilo? Não há um único tigre num raio de mil e quinhentos quilómetros.

- Estão a ver? Resulta! - foi a sua resposta.

(Retirado de Thomas Cathcart e Daniel Klein, Platão e um Ornitorrinco Entram num Bar...)

Um exercício de lógica para o 11º ano

A pedido de vários alunos do 11º ano, deixo aqui um exercício de lógica um pouco mais difícil do que o habitual para fazer em casa. Vamos ver quem é capaz de resolver a seguinte derivação:

¬(SP)¬P,¬(¬P¬Q),Q(SP) |-- SP



Nota 1: o martelo sintáctico está um bocado improvisado, mas acho que se percebe.

Nota 2: os alunos do 10º ano não se assustem com o que vão apanhar no 11º, pois isto é mais simples e divertido do que parece.


quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Avaliar teorias


Há pessoas que não se interessam por política e nem sequer procuram informar-se sobre as ideias que os políticos dos diferentes partidos defendem para governar o país. O voto dessas pessoas não depende, pois, de uma escolha informada e consciente, mas de motivos que pouco ou nada têm que ver com a competência dos políticos e com as soluções que propõem. Acontece que o número de pessoas que procede assim é elevado, a ponto de poderem ser elas a decidir quem vai governar o país, mesmo que não percebam nada do assunto. Ora, isto não deveria acontecer. Como se resolve este problema? A teoria da Margarida é que só as pessoas que se interessam por política e que estão informadas devem ter direito a voto, pois só assim se pode garantir um bom governo para o país.


Será a teoria da Margarida uma boa teoria? Porquê?


quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Bem-vindos!

Este é um blogue de apoio aos meus alunos de Filosofia da Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes. Pretende-se com ele que a filosofia não fique limitada à sala de aula e que a discussão filosófica continue, tranquila e informalmente, mesmo fora da escola. Apelo, assim, aos alunos, para que usem abundantemente as caixas de comentários, tanto para esclarecer dúvidas como para discutir ideias. Procurarei estar sempre atento e responder aos vossos pedidos e intervenções.

A ideia deste blogue foi-me sugerida por dois alunos do 10º ano, como alternativa ao uso da plataforma moodle da escola, que tem estado com alguns problemas técnicos. Não deixarei de usar a plataforma, mas reconheço que o blogue permite um outro tipo de interactividade e de informalidade, que o torna mais atractivo e eficaz. Apesar de se destinar prioritariamente aos alunos do 10º ano de Filosofia, este blogue procurará não deixar de fora os alunos do 11º ano e também serão bem-vindas contribuições de outros alunos desta ou de outras escolas.