quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Filosofia perene e o valor intrínseco da filosofia


Comecei hoje mesmo a ler Filosofia Perene (Lisbon International Press), o último livro do fiel amante da filosofia João Carlos Silva. Acabado de me chegar, só ainda tive tempo de ler a introdução, o quinto ensaio, sobre o valor intrínseco do conhecimento teórico, e algumas outras páginas soltas. Mas já deu para saborear a colheita ainda antes de ter tempo de beber o resto do néctar filosófico.

Realço já três aspectos importantes. O primeiro é a confirmação de que João Carlos Silva é motivado apenas por um genuíno interesse filosófico, aliado a uma evidente autenticidade intelectual. Apesar de a pessoa de João Carlos Silva nunca se esconder por detrás das ideias apresentadas, como se torna claro logo no carácter pessoal da introdução, o autor não quer ser mais do que o veículo dessas ideias. Está, portanto, bem longe da retórica filosófica narcisista, própria de quem encara a actividade filosófica como um instrumento de prestígio intelectual ou de reconhecimento social; ele obedece apenas ao desejo que alimenta o seu amor pelo conhecimento. Daí não sermos bombardeados com exibições de erudição académica nem com descobertas impressionantes. O que João Carlos Silva nos propõe é uma reflexão sóbria sobre problemas filosóficos genuínos, para chegar a uma resposta fundamentada. Isto pode parecer banal, mas não deixa de ser raro, o que faz de João Carlos Silva um caso especial do panorama editorial do país filosófico. Claro que as suas respostas são discutíveis. 

Mas isso é também um ponto a seu favor, o que me leva ao segundo aspecto: assumindo-se sem receios como filósofo, João Carlos Silva, não se limita a mastigar ideias já digeridas, arriscando um pensamento próprio, ainda que historicamente atento. Não é um pensamento próprio no sentido de procurar defender teses filosoficamente originais, mas antes de avaliar por si próprio a plausibilidade de algumas delas e de procurar mostrar que há caminhos mais bem pavimentados do que outros. E tem a vantagem de o fazer sem se deixar cair na vã tentação de impressionar o leitor com um jargão técnico tantas vezes dispensável. 

Deixo para o fim um aspecto interessante relacionado com o único ensaio completo que já tive a oportunidade de ler, no qual João Carlos Silva defende que «o conhecimento teórico tem valor em si mesmo». O ensaio suscitou-me algumas dúvidas, o que é bom sinal. Ele começa por esclarecer o que geralmente se entende por conhecimento teórico em oposição ao conhecimento prático, ilustrando a distinção com exemplos. Vale a pena notar que a ideia não foi, como poderia ser, a de distinguir o conhecimento proposicional (teórico) do saber-que (conhecimento prático), ou se um pode ser reduzido ao outro. Tratou-se simplesmente de comparar o valor do conhecimento puro (teórico) com o valor do conhecimento instrumental (prático). Embora, a certa altura, me tenha parecido que pretendia mostrar que o conhecimento teórico e o conhecimento prático não deveriam ser entendidos como opostos, a tese principal de que o conhecimento teórico, diferentemente do prático, tem valor intrínseco parece assentar na ideia de que são efectivamente distintos. Ora, não seria o caso se todo o conhecimento teórico tivesse, de algum modo, interesse prático. A afirmação de que o conhecimento teórico se distingue do prático por ainda não se encontrar para o primeiro qualquer aplicação útil imediata não implica que eles sejam essencialmente distintos, dado que a diferença seria simplesmente a de, num caso, a utilidade ser apenas mais evidente e imediata do que no outro. O próprio João Carlos avança com vários exemplos de conhecimento teórico que muito depois veio a ter importantes aplicações práticas. Daí que mesmo o conhecimento para o qual ainda não se vislumbram quaisquer aplicações práticas não deixe, em princípio, de ter valor instrumental. Ora, isso milita a favor da ideia de que todo o conhecimento é, em princípio, instrumental. Contudo, admito que isto não derrota completamente a tese de João Carlos Silva de que o conhecimento teórico possui valor intrínseco, uma vez que as duas teses (a de que todo o conhecimento tem valor instrumental e a de que há conhecimento que tem valor intrínseco) não são inconsistentes: é perfeitamente possível algo ter simultaneamente valor instrumental e também valor intrínseco. Acredito que o conhecimento é um caso desses.

Resta-me agradecer ao João Carlos Silva por não deixar de suscitar discussão com o seu livro Filosofia Perene, que bem consegue ilustrar a perenidade dos problemas filosóficos.   

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