segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Capas de discos

Entre os discos de vinil e os CD, o que é melhor? Pessoalmente não tenho grandes dúvidas de que o CD ganha em quase todos os aspectos. Menos num: as capas. Só que também não tenho muitas dúvidas de que as capas são mais do que meros invólucros, conseguindo unir a arte visual à arte musical.

Quantas vezes não se compraram discos apenas pelas capas? E quantas vezes as capas são um excelente aperitivo para o que vem lá dentro? Muitas capas adquiriram uma importância estética que vai além do próprio conteúdo musical, dando origem a um tipo sui generis de arte visual, no qual trabalharam alguns dos mais destacados artistas plásticos contemporâneos, fotógrafos de arte, desenhadores e artistas gráficos de primeiro plano. As próprias capas se tornaram matéria de criação artística, como no caso das colagens de capas de álbuns de música pop e rock do artista plástico Christian Marclay.

Apresento aqui aqui uma perspectiva pessoal da história das capas, organizada por temas. A ideia é também combinar o gosto pessoal com a relevância histórica e estética. 


Estas capas são difíceis de classificar, pelo seu carácter único. É o caso da primeira capa da história da edição discográfica, concebida em 1940 pelo designer gráfico americano Alex Steinweiss para o disco Smash Hits From Rodgers & Hart, da Columbia Records. Foi uma novidade e o início de uma longa história. Antes disso, os discos eram simplesmente metidos numa espécie de envelope de papel com a indicação do artistas e das obras, até Steinweiss insistir que o uso da cor e do arranjo gráfico poderia contribuir para vender mais discos. E teve razão. Mais tarde, o chamado Album Branco dos Beatles ousou o oposto: uma capa totalmente branca sem qualquer inscrição. Enfim, coisas que só os Beatles conseguiam fazer nessa época. Outra capa inovadora foi a página de jornal de Thick as a Brick, dos Jethro Tull. Destaco ainda o simbolismo minimal da capa do último disco de David Bowie.   


O primeiro, e talvez mais importante, salto estético no cuidado artístico das capas dos discos foi dado nos anos de 1950-1960 pela editora de jazz Blue Note. Aí se destacou sobretudo a arte de Reid Miles, muitas vezes trabalhando a partir das fotografias de Francis Wolff. Continuam ainda a ser das melhores e mais inspiradas capas de discos. Inspiram, por exemplo, autores muito mais novos como Joe Jackson e Carmel (belo design retro de Serge Clerc!).   


Andy Warhol (Velvet Underground e Rolling Stones), Bridgit Riley (Faust), Keith Haring (Sylvester), Robert Rauschenberg (Talking Heads), Gerhard Richter e Richard Prince (Sonic Youth), Banksy (Blur), Kara Walker (Arto Lindsay) Mr. Brainwash (Madonna), Jenny Savile (Manic Street Preachers), Damien Hirst (Red Hot Chili Peppers), Jeff Koons (Lady Gaga) e Jean-Michel Basquiat (The Strokes) são apenas alguns exemplos de renomados artistas plásticos, cujas obras encontramos em capas de discos. Algumas dessas obras foram criadas de propósito.
  

Há ainda capas que recorrem à fotografia artística. Barney Bubbles é um dos nomes sonantes (Dave Edmunds) e outro é Vaughan Oliver (This Mortal Coil). Por vezes acrescenta-se ao trabalho fotográfico  a mão de grandes designers como Peter Saville (Roxy Music) Storm Thorgerson, do grupo Hipgnosis (Led Zeppelin).


Há ainda as capas que recorrem ao desenho e à pintura originais, mas também ao uso de obras clássicas. Das capas aqui mostradas, aprecio especialmente a simplicidade do desenho dos discos dos Muse e de Paul Bley.


Há toda uma linhagem de capas em que o puro grafismo e a cor surgem como centrais. Destacam-se aqui a inevitável capa de The Dark Side Of The Moon (Hipgnosis), de Autobahn dos Kraftwerk (que não é exactamente a da edição original e que uns atribuem a Barney Bubbles e outros a Johann Zambryski) e sobretudo ao obrigatório Peter Saville, da Factory (Joy Division, OMD, A Certain Ratio). 


Noutras capas são os nomes e os títulos que se destacam, combinados ou não com outros elementos. Pioneira nesta área é acaba de 1957 de Elvis Presley, mais tarde imitada pelos The Clash e, com algumas variações, por Tom Waits. Outro exemplo marcante é a capa do álbum dos Sex Pistols, de Jamie Reid. Considero muito feliz a combinação da imagem retro a preto e branco com a estética gráfica soviética dos Franz Ferdinand.  


As caras dos artistas também proporcionam excelentes capas. Por vezes são fotos que persistem na nossa memória, como a de Patti Smith, fotografada pelo seu amigo Robert Mapplethorpe ou a foto de Irving Penn para Tutu, de Miles Davis. 


Por sua vez, nas capas com imagens dos grupos também se encontram propostas bastante diversificadas. Destaco em particular as excelentes capas dos Abba e dos Oasis. E, mais uma vez, o trabalho de Mapplethorpe (Ramones e Television) 


Usar imagens de rua ou de exteriores não é fácil, mas qualquer destas são bastante fortes, a começar pela lendária travessia da passadeira de Abbey Road (uma obra-prima da música contemporânea, já agora!), continuando pela obra-prima de David Bowie e terminando cinematográficas capas dos Depeche Mode e do último disco de Caroline Polachek.


Neste caso a intenção é que a estética das capas seja uma ilustração visual da música que se ouve. Não sei bem se será mesmo o caso, pois a noção de "psicadélico" parece-me demasiado imprecisa. Ok, há muitas cores, muitas formas fluídas, muito efeito dos ácidos, um universo onírico, mas tudo isso é demasiado vago. Talvez seja mesmo essa a ideia. Em todo o caso, penso que não resultaram em capas esteticamente muito interessantes. Nem mesmo a famosíssima capa de Peter Blake para Sargeant Pepper´s, à parte a sua importância histórica, me parece esteticamente inquestionável. As capas dos Cream e, em especial, dos MGMT, são particularmente más. Estão aqui por serem alguns dos exemplares famosos de discos psicadélicos e não pelos seus méritos estéticos ou artísticos. 


O chamado rock progressivo costuma-se distinguir também pelas imagens das capas. Daestacam-se, por exemplo, as capas de Roger Dean para os Yes. Um caso algo atípico aqui é a capa do artista H. R. Geiger para os ELP (um dos mais vacuamente extravagantes grupos de música progressiva). E destaco também o trabalho gráfico algo humorístico do disco dos Superaramp, concebido por Michael Doud.


A chamada música gótica e também a metálica têm os seus próprios universos temáticos, em que o som, a imagem e as palavras são pensados como partes de um todo coerente. Claro que góticos e metálicos habitam mundos diferentes, mas também convergem em alguns aspectos. Estas capas representam diferentes tendências dentro do mesmo universo, mas as capas de Derek Riggs para os Iron Maiden destacam-se das demais.


Para terminar, algumas das capas que não se enquadram em nenhuma das categorias acima, mas merecem um destaque especial. E muitas outras poderiam ser referidas, o que dá uma ideia da riqueza artística das capas de discos. É isto que falta aos CD. 

 

sábado, 14 de setembro de 2024

Plano pessoal de leitura

Parece que os clássicos foram a porta de entrada de muitos para o mundo da leitura. Mesmo que não tenham sido os clássicos da literatura ocidental (consta que Freud já lia Platão em grego ainda antes dos dez anos de idade), muitos começaram pelos clássicos da chamada literatura infanto-juvenil: O Principezinho, A Volta ao Mundo em 80 Dias, as Aventuras dos Cinco, As Aventuras de Pinóquio, As Aventuras de Tom Sawyer, As Aventuras de Gullliver, etc.  

Não foi o meu caso. A minha entrada deve-se aos pequenos livros de cowboys que os mais velhos emprestavam aos mais novos. Cabiam no bolso das calças e os seus autores não ficaram para a história. Um desses autores era o misterioso Ross Pym, que era afinal um tal Roussado Pinto. Estou a falar dos livros da colecção 6 Balas e também do Texas Jack, que eram histórias passadas no farwest americano. Tinham de ser encomendados por carta (com o dinheiro lá dentro) e chegavam pelo correio quase duas semanas depois à pacata aldeia do interior. Como eram vários amigos a poupar uns tostões para encomendar, acabava por haver uma quantidade apreciável de livros para a troca entre nós. Claro que, ao fim de umas dezenas de livrinhos, dava para ver que eram quase sempre as mesmas histórias. 

Foi, então, preciso passar para algo mais subtil, misterioso e sofisticado: os policiais da Colecção Vampiro. Aqui já havia autores de respeito, como Georges Simenon, Agatha Christie, Dashiell Hammett, Rex Stout, Patricia Highsmith, Raymond Chandler e Earle Stanley Gardner. Este publicava também sob os nomes A. A. Fair e S.S. Van Dine. 

O passo seguinte foi dado com os livros do Círculo de Leitores, de venda ao domicílio para subscritores. Mas só depois de várias decepções (por exemplo, A Peste, de Camus) é que fiquei verdadeiramente entusiasmado com duas grandes obras literárias: Bel-Amy, de Maupassant, e As Vinhas da Ira, de Steinbeck.

Entretanto, este filão acabou por ser interrompido pelo 25 de Abril. Aí foi inevitável ler sobre política e ler também os autores revolucionários que a «carrinha dos livros» (isto é, a biblioteca itinerante da Gulbenkian) trazia uma vez por mês. Foi, então, a altura de ler Baal Babilónia, do anarquista espanhol Arrabal, o Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, e outras coisas que agora não interessam a quase ninguém, como O Que é a Política?, de Julien Freund (como era incrivelmente má a capa deste livro!).

E assim se fez um plano pessoal de leitura.


  

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

A lógica é tão limitada!

Tantas vezes ouvi este desabafo: 

«Qual o interesse de ensinar lógica aos adolescentes aprendizes de filosofia? É errado submeter a filosofia à frieza linear e mecânica da lógica! A lógica é, de resto, bastante limitada e nem tudo se pode reduzir à lógica.»

A pergunta é perfeitamente justificada e o tema merece ser debatido. No entanto, o resto do desabafo assenta em dois pressupostos duvidosos. Mas um deles não é o de que a lógica é limitada. Isso é uma verdade; uma trivialidade, diria mesmo. 

Claro que a lógica é limitada! E ainda mais se pensarmos na pequeníssima parte da lógica que se ensina no secundário. Basta ver que as ferramentas de lógica proposicional dadas no secundário não são muito mais complexas nem mais extensas do que a aritmética básica que os alunos aprendem na escola primária. A lógica que se ensina no secundário é mais ou menos comparável às operações algébricas elementares aprendidas na escola primária: adição, subtracção, multiplicação, divisão e igualdade. Quanta matemática não fica de fora também aí? 

Ainda assim, qualquer um reconhece que, apesar de limitada, essa matemática básica não deixa de ser imprescindível para resolver muitos dos seus problemas práticos quotidianos: por exemplo, para descobrir quantos lápis pode comprar com o dinheiro que a mãe lhe deu ou para confirmar se o troco que lhe dão está certo. Claro que ainda não dá para resolver complexas equações de terceiro grau nem para calcular a raíz quadrada de um número.

Porquê, então, afirmar a banalidade de que a lógica é muito limitada? Será que alguém pensa que a lógica que se ensina é toda a lógica? Há muitíssima mais lógica para estudar do que isso. E só quem procura aprofundar o seu estudo está em condições de reconhecer quais são exactamente as suas reais limitações, que não são poucas. Daí que, ao contrário do que muitas vezes se pensa, também na lógica haja intenso debate e divergências fundamentais. E muitas discussões não são apenas sobre os aspectos mais recônditos e rebuscados da lógica. Coisas como os princípios da não-contradição e o do terceiro excluído ou a semântica de algumas condicionais têm sido amplamente debatidas, dando mesmo origem a sistemas lógicos  alternativos à lógica clássica, rejeitando vários aspectos desta. 

Para se ter uma ideia, veja-se o esquema acima. Comecei a elaborar esse esquema há uns anos, depois da leitura de Deviant Logic, de Susan Haack, um livro de 1974. Fui lendo outros livros sobre lógica e, tendo em mente uma acção de formação de lógica para colegas entretanto agendada, acabei por concluir a tarefa. 

É importante sublinhar que mesmo este esquema não inclui toda a lógica, o que permite ter uma ideia do vasto universo que constitui a modelação do raciocínio comum.

Aceitam-se eventuais correcções ao esquema. Dado que foi feito por mim, é possível que alguém encontre imprecisões. Devo dizer que não sou um especialista (nem grande nem pequeno!) em lógica, mas tenho o prazer de conhecer várias pessoas muitíssimo mais entendidas no assunto do que eu, com as quais também tenho aproveitado para aprender.    

sábado, 7 de setembro de 2024

Distinguir os justos dos pecadores

Tanto os pecadores como os justos são, por vezes, fracos. A diferença entre eles está em que um homem insignificante, ao fazer uma coisa boa, se orgulha disso toda a sua vida, enquanto o justo, ao fazer o bem, nem dá por isso; mas, durante anos, não esquece um pecado que cometeu.

Talvez nem sempre seja exactamente como pensa Viktor Strum, a personagem mais marcante da obra magna de Vassili Grossman. Em todo o caso, Vida e Destino é um livro onde cabe quase tudo; é muito mais do que uma longa reportagem da maior e mais violenta batalha do século XX.

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Durante a guerra discute-se estética

Durante a guerra não se limpam espingardas, mas discute-se estética!

É precisamente isso que os soldados soviéticos fazem no famoso bunker do prédio 6/1 de Estalinegrado durante o longo cerco das tropas nazis e quando o som dos morteiros inimigos abranda. Na discussão entram em confronto as perspectivas revolucionária e pré-revolucionária. 

         Nos momentos de acalmia, os moradores do prédio discutiam, sem pressa e em pormenor, o aspeto físico da radiotelegrafista. Batrakov que, aparentemente, não era dessas coisas e ainda por cima era míope, mostrou estar ao corrente de todos os aspetos da beleza de Kátia.

         — Numa dama, o peito é, para mim, o essencial — disse ele.

         O artilheiro Koloméitsev insurgiu-se — como Zúbarev tinha dito sobre ele, e muito bem, preferia «chamar os bois pelos nomes».

         — Então, conversaram sobre o gato? — perguntou Zúbarev.

         — Evidentemente — respondeu Batrakov. 

         — Chega-se ao corpo da mãe através da alma do filho. Até o nosso velho disse uma palavrinha relativamente ao gato.

         O velho atirador de morteiro cuspiu e passou a mão pelo peito.

         — Onde é que ela tem, aqui, tudo o que compete a uma rapariga pelo regulamento? Onde, pergunto eu?

         Ficou especialmente irritado quando ouviu insinuações de que o próprio Grékov gostava da radiotelegrafista.

         — É claro, nas nossas condições até uma Katka como esta serve, quem não tem cão caça com gato. Pernas compridas como as do grou, traseiro, nicles. Olhos grandes como os de uma vaca. Que pedaço de rapariga é esta?

Tchentsov, objetando, disse:

          — Para ti há de ser peituda. É um ponto de vista ultrapassado, pré-revolucionário.

         Kolomeitsev, desbocado e amante das obscenidades, que reunia na sua volumosa cabeça grisalha inesperadas particularidades e características, dizia, rindo-se e semicerrando os turvos olhos cinzentos:

         — A rapariga é boa, mas eu, por exemplo, faço uma abordagem especial da coisa. Para mim, pequenas, arménias e judias, com grandes olhos, ágeis, rápidas, de cabelo curto.

         Zúbarev olhou pensativamente para o céu escuro, colorido pelos projetores, e perguntou baixinho:

         — É curioso, como é que vai acabar esta coisa?

         — A quem vai ela calhar? — perguntou Koloméitsev. — Ao Grékov, com certeza.

         — Não, não há certeza nenhuma — disse Zúbarev e, apanhando um bocado de tijolo do chão, arremessou-o com força contra a parede.

Os companheiros olharam para ele, para a sua barba, e riram às gargalhadas.

(p. 250)

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

As falsificações de obras de arte são também obras de arte?

Está agora mais acessível o ensaio que escrevi para o livro de homenagem à professora Maria do Carmo d'Orey, publicado em 2023 pela BookBuilders. O livro foi organizado por Vitor Guerreiro (U. Porto), Carlos João Correia (U. Lisboa) e Vítor Moura (U. Minho) e o seu título é Quando Há Arte! O livro tem vários ensaios muito bons sobre os mais diversos aspectos da estética e filosofia da arte, que merecem a leitura de quem se interessa por esta disciplina filosófica.

O meu ensaio intitula-se «Arte e contrafacção: valor estético e estatuto das falsificações» e pode ser lido aqui.


segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Uma janela para o problema da demarcação

Eis um pequeno excerto do livro Novas Janelas Para a Filosofia, publicado no final do passado mês de Maio. O excerto é do início do capítulo sobre filosofia da ciência, mais precisamente sobre o problema da demarcação. 

   Distinguir a ciência do que não é ciência tem sido bastante mais difícil do que possa parecer. É um problema que muitos consideram da máxima importância. Karl Popper (1902-1994) classificou-o como o mais importante problema da filosofia da ciência, procurando apresentar uma solução para ele, como veremos. O problema tem, de resto, adquirido uma crescente importância prática, na medida em que se trata também de distinguir a ciência de um tipo particular de não-ciência: a pseudociência. A sua particularidade, como o prefixo pseudo indica, é a de reivindicar ilegitimamente para si o estatuto de ciência genuína. Claro que tal reivindicação seria inútil se não houvesse semelhança alguma entre a ciência e a pseudociência, o que é visto como uma ameaça à própria ciência, tal como a moeda falsa é uma séria ameaça à moeda verdadeira, minando a confiabilidade desta. Como se adivinha, isso acarreta vários outros perigos de cariz social e político.
   Por exemplo, há decisões políticas que precisam de ser baseadas em informação e fundamentadas em explicações científicas, em vez de meras especulações e aparências, pelo que é importante saber quem está em condições de o fazer: em que investigações se deve gastar o dinheiro de todos, o que ensinar nas escolas ou que medidas de saúde devem ser adoptadas numa pandemia? Ao distinguir as fontes de conhecimento mais fiáveis das suas imitações, a demarcação entre ciência e pseudociência permite orientar decisões, tanto na vida pública como na privada: devo consultar um médico ou é melhor ir antes ao homeopata?
   Não tem, no entanto, sido fácil encontrar um critério de demarcação satisfatório. E para isso contribui também o facto de o universo da ciência ser bastante heterogéneo, abrangendo as ciências naturais, as ciências sociais e humanas, as ciências formais, e ainda as novas ciências que vão surgindo, como as ciências computacionais, a sociobiologia, a cibernética, as ciências da Terra e do ambiente, as ciências do trabalho, da comunicação, da educação, etc. E há também quem considere a psicanálise e o marxismo científicos. Em contrapartida, há áreas que já foram amplamente consideradas científicas e que deixaram de o ser, como a astrologia (praticada por Ptolomeu e Kepler), a alquimia (praticada por Paracelso) e a frenologia (fundada pelo médico alemão Franz Joseph Gall). De resto, nenhuma lista de pseudociências é consensual. Exemplos como o criacionismo, o terraplanismo, a homeopatia ou a quirologia são relativamente pacíficos, mas há quem discuta seriamente se a parapsicologia ou a acupunctura merecem ser qualificadas de científicas.
   Se for possível apresentar um critério satisfatório de demarcação entre o que é e o que não é ciência, não só muitos dos perigos representados pelas pseudociências poderão ser mais facilmente enfrentados, como ficaremos com uma maior compreensão da natureza de uma das mais relevantes actividades humanas.
 (pp. 249-250)