sábado, 21 de julho de 2018

Conhecimento experiencial

Os filósofos distinguem frequentemente três noções de conhecimento: o conhecimento proposicional (o saber que), o conhecimento prático (o saber como) e o conhecimento por contacto.  A investigação e o estudo da generalidade das ciências (humanas ou da natureza) consiste em obter conhecimento proposicional, expresso por meio de frases declarativas.

Isso é diferente do chamado conhecimento prático, mediante o qual se relaciona um sujeito não com uma proposição mas antes com uma dada acção. É o que se passa quando dizemos saber como lidar com situações de grande pressão ou como andar de patins ou como tocar bateria. Este tipo de conhecimento exige sobretudo treino e não envolve as noções de verdadeiro e falso; antes as de correcto e incorrecto.

O conhecimento por contacto tem sido redefinido por alguns autores como conhecimento experiencial, enfatizando-se que quando alguém diz «sei o que é estar apaixonado e não ser correspondido» ou «sei o que é estar desesperado», não se verifica qualquer relação entre um sujeito e uma acção mas entre um sujeito e certo tipo de experiência. Claro que a experiência é, muitas vezes, a de estar num certo lugar, a de conviver com uma dada pessoa ou de ter visto uma determinada coisa.

O psicólogo americano David Kolb considera que, no domínio da aprendizagem, o conhecimento experiencial é o mais significativo. Ele diz haver duas dimensões básicas do processo de aprendizagem: preensão e transformação. 


A preensão inclui, por sua vez, dois modos de aquisição de experiência: a apreensão, que é um modo directo, imediato e concreto de aquisição de experiência e a compreensão, que é um modo indirecto e simbólico de representação da experiência adquirida. 

A transformação também pode ter dois sentidos: a reflexão (introversão) e a acção (extroversão). 

Com base nesta categorização, Kolb diz haver quatro diferentes orientações individuais com vista à aprendizagem:


Poderíamos resumir designando-as simplesmente como a orientação para a espontaneidade, a orientação para a ponderação, a orientação para a teorização e a orientação para a realização (concretização), respectivamente. Isto torna claro que as quatro orientações assentam nas principais características psicológicas ou capacidades individuais de cada um. A aprendizagem consistiria, por sua vez, em transformar essas características ou capacidades em competências operacionais.

Claro que este tipo de aprendizagem (ou de conhecimento experiencial) de modo algum substitui o pedagogicamente tradicional saber que. Por isso, nenhum sistema educativo poderá alguma vez pôr de parte o conhecimento proposicional. Mas o reverso também parece ser verdadeiro: não há conhecimento proposicional que torne dispensável o chamado conhecimento experiencial. 

Assim, cabe perguntar: por que razão a maior parte dos sistemas educativos estão quase totalmente centrados no saber que e, vá lá, um pouco no saber como, mas nada ou quase nada no conhecimento experiencial? 

Depois de pensar um pouco, parece-me que a melhor explicação é que o saber que fica bastante mais barato: não só porque o seu custo é mais baixo mas também porque produz menos desperdício. Será mesmo?   

sábado, 30 de junho de 2018

domingo, 10 de junho de 2018

Conhecimento por contacto e conhecimento por descrição


É suposto os termos "conhecimento por contacto" e "conhecimento por descrição" designarem dois tipos de conhecimento, o primeiro dos quais diz respeito ao conhecimento directo e não inferencial e o segundo ao conhecimento indirecto e inferencial. Esta distinção é geralmente atribuída a Bertrand Russell, como se pode ler nos artigos sobre o assunto da Stanford Encyclopedia of Philosophy e também da Internet Encyclopedia of Philosophy, para dar só dois exemplos. De acordo com o que aí se lê, a distinção foi originalmente introduzida por Russell, num artigo de 1911 precisamente intitulado "Knowledge by acquaintance and knowledge by description", o qual viria, no ano seguinte, a dar origem ao famoso Capítulo 5 de The Problems of Philosophy (Os Problemas da Filosofia)

Contudo, seria mais justo e rigoroso creditar tal distinção ao psicólogo e filósofo pragmatista William James, que no seu The Principles of Psychology (1890, Vol I), já tinha distinguido claramente dois tipos de conhecimento: knowledge of acquaintance knowledge-about

James começa por sublinhar que muitas práticas linguísticas expressam tal distinção, dando os exemplos do francês, com os verbos connaître savoir, e do alemão, com os verbos kennen wissen, mas a que também poderíamos acrescentar o português, com os verbos conhecer saber, respectivamente. 

No caso do conhecimento por contacto, James refere as pessoas ou coisas acerca das quais sabemos muito pouco, a não ser que já estivemos na sua presença. Ou também os casos das cores e dos sabores, cujo conhecimento não resulta de uma descrição verbal acerca do que sentimos quando experimentamos essas coisas, mas da experiência directa de as sentirmos quando estamos em contacto com elas. É certamente por isso que não se ensina a uma criança o que é a cor vermelha descrevendo-a verbalmente, nem dizendo coisas acerca dela ou do que sentimos acerca dela. A única maneira eficaz de uma criança que não sabe o que é a cor vermelha ficar a sabê-lo é entrar em contacto directo com objectos vermelhos e ter a experiência imediata de os ver. E qualquer pessoa consegue dar-se conta de que está perante algo vermelho, mesmo que seja incapaz de dizer o que faz isso ser vermelho. É por isso, sublinha James, que não se pode partilhar o conhecimento de certas coisas a não ser com quem já tenha tido também contacto directo com elas. Isso aplica-se, por exemplo, ao caso dos cegos de nascença, que são incapazes de saber o que é a cor vermelha, mesmo que lha tentemos descrever da melhor maneira que conseguimos. Mas tudo é bem diferente quanto ao saber-acerca-de (knowledge-about), que decorre de analisar as coisas e descrevê-las verbalmente — e que, portanto, se assemelha muito ao que Russell dirá acerca do conhecimento por descrição. 

James refere que a forma verbal por meio da qual se exprime a tomada de consciência do primeiro tipo de conhecimento é gramaticalmente minimalista, levando-nos a usar simples interjeições – therevoilàecco! – ou então meros demonstrativos – it, this, that. Isto é assim, segundo James, porque o knowledge of acquaintance é uma tomada de consciência por meio do sentimento (feeling) — com Russell passará a ser a sensação, ao passo que o knowledge-about está associado ao pensamento reflexivo (thought). Contudo, James considera não serem tipos de conhecimento opostos, como fica patente quando escreve: "pelos sentimentos entramos em contacto com as coisas, mas só pelos nossos pensamentos sabemos mesmo algo sobre elas. Os sentimentos são a seiva e o ponto de partida da cognição, os pensamentos são a árvore desenvolvida" [through feelings we become acquainted with things, but only by our thoughts do we know about them. Feelings are the gem and starting point of cognition, thoughts the developed tree].

Sem dúvida que Russell afinou esta distinção e lhe deu um tratamento bastante mais preciso e desenvolvido. Mas isso não nos deve impedir de dar o seu a seu dono.


Adenda: Entretanto fiquei a saber que a distinção é ainda anterior a James, como refere Desidério Murcho em comentário a este meu texto. Reforça-se, assim, a ideia de que Russell está longe de ser original no que diz respeito à distinção entre conhecimento por contacto e conhecimento por descrição, ao contrário do que se costuma ler mesmo nos mais respeitáveis livros de filosofia.  
        

sábado, 12 de maio de 2018

Filosofia em banda desenhada


Introdução à Filosofia em Banda Desenhada, com tradução de Vítor Guerreiro, estará nas livrarias ainda este mês de Maio. Aí encontramos uma forma diferente, estimulante e descontraída, de acompanhar o irresistível fluxo de algumas das mais importantes ideias e questões que, desde os alvores do século IV a. C. até aos nossos dias, abastecem o sempre renovado rio da filosofia. 

Pela mão do premiado ilustrador Kevin Cannon e do filósofo Michael Patton, somos convidados para uma aliciante viagem, guiada pelo célebre filósofo Heraclito. Ao longo dessa viagem, o vetusto e sagaz filósofo vai saltando de embarcação em embarcação, atraído pelos grandes debates acerca do nosso conhecimento do mundo, da natureza da mente, da existência de Deus e do livre-arbítrio, sem esquecer a questão da validade dos nossos raciocínios e também a questão valorativa sobre o que torna as nossas acções moralmente boas ou más. À medida que descemos o rio sinuoso da filosofia, deparamo-nos com os seus mais audazes navegadores. Tudo começa com os filósofos ditos pré-socráticos, que primeiro questionaram a mitologia e se perguntaram sobre o mundo ao seu redor, mas não ignora importantes filósofos vivos, como David Chalmers e a sua explicação da consciência. Pelo meio deparamo-nos com gigantes filosóficos como Aristóteles, Tomás de Aquino, Descartes, Locke, Hume, Kant, Mill e Nietzsche, entre outros.

Um livro para todos, começando pelos amantes de banda desenhada, de filosofia, e sobretudo para quem acredita que as ideias sérias e importantes podem ser apresentadas e discutidas de forma alegre e divertida.

sábado, 17 de março de 2018

A vida é um sonho?

O número 33 da colecção Filosofia Aberta estará nas livrarias dentro de uma semana ou pouco mais. Aqui fica apenas parte de um dos 101 episódios (mais precisamente, o episódio 39) apresentados e comentados por Rescher.

O sonho de Calderón
  A ideia de que a vida inteira que consideramos estar a viver possa na realidade ser apenas um sonho tem origens que se perdem nas névoas impenetráveis da antiguidade. A ideia é sugerida na crença hindu de que este nosso mundo é maya, uma mera ilusão. E reaparece na alegoria da caverna de Platão, cujos habitantes das cavernas — nós, que habitamos este mundo — têm de dar-se conta de que aquilo de que têm experiência não é a realidade mas antes uma mera aparência — uma «ilusão sem sentido», um mundo de sombras. A ideia ganhou depois bastante força no século xvii, tendo muito destaque na temática da famosa peça A Vida é um Sonho (La vida es sueño) do poeta e dramaturgo espanhol Calderón de la Barca (1600-1681), que reflecte a experiência mental filosófica do Discurso do Método de Descartes.
    Temos aqui uma daquelas hipóteses filosóficas que, como a solidão solipsista, não pode ser refutada com provas empíricas mas que não consegue apesar disso produzir qualquer convicção cognitiva.
    […]
    O contraste entre a experiência autêntica e o sonho é em si perfeitamente apropriado, mas não pode ser trans­formado numa distinção entre a nossa experiência como um todo e algo inteiramente fora dela e para lá dela. O contraste entre como as coisas são e a sua aparência não é um contraste entre a aparência e a não-aparência, mas antes entre a aparência correcta e a incorrecta; ao fazer esse contraste, não saímos do domínio da aparência.
    Considere-se uma analogia. A distinção entre o discurso dotado de significado e uma algaraviada só pode ser feita no seio do domínio discursivo. Tentar aplicá-la para distin­guir entre o que é linguisticamente discutível e algo que esteja para lá destes limites comunicativos é um passo na direcção da incoerência e da ininteligibilidade. De modo semelhante, a ideia de dormir só faz sentido onde há uma multiplicidade de experiências em que estamos acordados para que o contraste exista. A ideia de que em toda a nos­sa experiência poderíamos estar a dormir não faz sentido porque derruba a ponte do seu próprio contraste entre a experiência de dormir e a de estar acordado.
    Poderá haver boas razões para ser céptico quanto ao que Bertrand Russell chamou o «nosso conhecimento do mundo exterior», mas a hipótese do sonho não é uma delas.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Filosofia do amor

Foram poucos os filósofos que reflectiram e escreveram de forma rigorosa e esclarecedora sobre o amor: que tipo de coisa é, como justificar o amor e qual a relação, se alguma existe, entre o amor e a razão, o valor, a ética e o próprio sentido da vida. Entre esses poucos filósofos, menos ainda foram capazes de dar conta dos diferentes usos que fazemos do termo amor, misturando indiscriminadamente o amor entre pessoas (seja o amor romântico ou o amor entre pais e filhos), o amor-próprio e aquilo que é geralmente designado como o amor por lugares, por objectos, por ideais ou por actividades. 

Nem os clássicos conseguiram lançar grande luz sobre um tema tão central e de tão capital importância para as nossas vidas como o amor. Sem dúvida que encontramos ideias interessantes sobre o amor em obras como O Banquete, de Platão, ou em Metafísica do Amor, de Schopenhauer, e em algumas páginas de Espinosa, Diderot e poucos mais. Mas ideia que fica é a de uma notória miscelânea teórica. 

Mais recentemente, destacados filósofos da emoção, como Robert Solomon ou Amélie Rorty, enfrentaram o tema de uma forma mais metódica e filosoficamente mais rigorosa. Mas estes centram-se sobretudo na compreensão da natureza emocional do amor, deixando de lado outros aspectos tão importantes como o eventual carácter normativo do amor e suas implicações morais. Aspectos que vieram, de algum modo, a captar a atenção de nomes como Martha Nussbaum, Robert Nozick, Roger Scruton ou Hugh LaFollette, mas de um modo ainda algo fragmentário e disperso. Centrado apenas no amor romântico, temos o livro de 2017 What Love is and What it Could Be, da filósofa Carrie Jenkins, que ela própria admite não tratar da questão de forma tão sistematizada como desejaria.  

Só falta mesmo referir o melhor que conheço sobre o amor: As Razões do Amor, de Harry G. Frankfurt. É um livro que alia como nenhum dos anteriores um atento e robusto senso comum a uma argumentação cuidada, oferecendo-nos uma abordagem naturalista sobre o amor, sem precisar de recorrer a tecnicismos académicos dispensáveis. 

A tese principal de Frankfurt, que trata apenas do amor entre pessoas, é apresentada logo a abrir o livro: a moral não é a única, nem sequer a principal, fonte humana de normatividade, identificando o amor como o cerne da nossa psicologia moral. Isso explica, em parte, por que razão muitas pessoas ficam algo intrigadas quando, em situações limite, a estrita imparcialidade exigida por algumas perspectivas éticas nos impede de ter uma maior consideração por aqueles que mais amamos do que por quaisquer outros. Um livro que, longe dos estafados panegíricos poético-psicológicos ao amor, nos faz pensar com maior rigor e profundidade sobre aquilo que mais prezamos. 


Eis um excerto do livro:

Os temas filosóficos associados à questão de como uma pessoa deve viver caem no domínio de uma teoria geral do raciocínio prático. O termo «raciocínio prático» refere-se a qualquer das diversas variedades de deliberações em que as pessoas se empenham para decidir o que fazer, ou com que se ocupam para avaliar o que foi feito. Entre elas está o tipo especial de deliberação que incide especialmente sobre problemas de avaliação moral. Esta espécie de raciocínio prático recebe naturalmente, de filósofos e também de outros, uma grande dose de atenção.

É inquestionavelmente importante para nós compreender o que os princípios da moralidade requerem, o que recomendam, e o que proibem. Não é necessário dizer que precisamos de tomar seriamente as considerações morais. Na minha opinião, contudo, a importância da moralidade na direcção das nossas vidas tende a ser exagerada. A moralidade é menos pertinente no moldar das nossas preferências e na orientação da nossa conduta – diz-nos menos do que precisamos de saber sobre o que devemos valorizar e como devemos viver – do que normalmente se presume. É também menos autoritária. Mesmo quando tem algo relevante a dizer, não tem necessariamente a última palavra. No que diz respeito ao nosso interesse na gestão sensata dos aspectos das nossas vidas que são normativamente significativos, os preceitos morais não só não são totalmente genuínos mas também são menos definitivos do que, com frequência, somos encorajados a acreditar.

As pessoas que são escrupulosamente morais podem, não obstante, ser destinadas, por deficiências de carácter ou de constituição, a levar vidas que nenhuma pessoa razoável escolheria livremente. Podem ter defeitos pessoais e inadequações que não têm muito que ver com a moralidade mas que lhes tornam impossível viver bem. Por exemplo, podem ser emocionalmente superficiais; ou pode faltar-lhes vitalidade; ou podem ser cronicamente indecisas. Na medida em que activamente escolhem e buscam determinados objectivos, podem dedicar-se a ambições de tal modo insípidas que a sua experiência é geralmente enfadonha e sem sabor. Em consequência, as suas vidas podem ser implacavelmente banais e vazias, e – quer reconheçam ou não isto sobre si mesmos – podem estar terrivelmente enfadadas.

Há quem defenda que as pessoas que não são morais não podem ser felizes. Talvez seja verdade que ser moral seja uma condição indispensável para uma vida satisfatória. Não é certamente, contudo, a única condição que é indispensável. O juízo moral sólido não é sequer a única condição indispensável na avaliação de rumos de conduta. A moralidade pode proporcionar no máximo apenas uma resposta severamente limitada e insuficiente à questão de como uma pessoa deve viver.

Presume-se com frequência que as exigências da moral são inerentemente prioritárias — por outras palavras, que devem ter sempre precedência absoluta sobre todos os outros interesses e reivindicações. Isto parece-me implausível. Além disso, tanto quanto me é dado ver, não há razão muito persuasiva para acreditar que assim é. A moralidade diz sobretudo respeito ao modo como as nossas atitudes e as nossas acções devem ter em consideração as necessidades, os desejos e os direitos das outras pessoas. Ora, porque é que isso deve ser visto como sendo, sem excepção, a coisa mais premente nas nossas vidas? Certamente, os nossos relacionamentos com as outras pessoas são enormemente importantes para nós; e as exigências da moralidade às quais dão origem são, por isso, inegavelmente importantes. Contudo, é difícil perceber por que razão devemos assumir que nada nunca, em nenhumas circunstâncias, conte mais fortemente para nós do que esses relacionamentos, e que as considerações morais devem invariavelmente ser aceites como mais importantes do que as considerações de todos os outros tipos.
pp. 12-14

domingo, 31 de dezembro de 2017

Lobo das estepes


A escassas horas de se concluir este ano de 2017 e de começar o de 2018, gostaria de escrever algo que vem mesmo a propósito: Steppenwolf. E vem a propósito porquê? 

Bem, porque este é um dia como qualquer outro e qualquer dia é o mais adequado para se escrever sobre qualquer coisa que nos apetece. Portanto, é de Steppenwolf, o conjunto musical —  aliás, o grupo; ou será antes a banda? — formado em Toronto (Canadá) nos distantes anos 60 do século passado. 

Os Steppenwolf — Lobo das Estepes, em português — são mais conhecidos pela canção Born To Be Wild, ponto alto da banda sonora do filme Easy Rider, uma despreocupada deambulação pelas estradas do sul dos EUA do trio de motoqueiros protagonizado por Dennis Hopper, Peter Fonda e Jack Nicholson. Born To Be Wild é, de resto, apontada por muitos como a música que está na origem do sub-género musical que veio a ser conhecido como heavy metal

Seja isso correcto ou não, Born To Be Wild está longe de ser o melhor que o blues-rock ácido dos Steppenwolf deu à luz. Os Steppenwolf são um caso curioso: não têm um único álbum memorável, mas têm excelentes canções espalhadas por vários deles. Talvez por isso nunca se tenham alçado ao estatuto de outras bandas rock de referência da época, apesar do seu som muito característico, devido sobretudo à guitarra saturada, à voz arranhada de John Kay e ao órgão dito psicadélico de Michael Wilk, que acabam por dar uma volta interessante aos blues de que partem.

Mesmo não sendo dos pontos altos da história da música rock, os Steppenwolf continuam a soar muitíssimo bem, sobretudo se não estivermos condicionados pelo que está ou deixa de estar actualmente em voga. Canções como The Monster, o musicalmente inspirado protesto contra a política americana que levou à Guerra do Vietname, mas também Desperation, For Ladies Only (desde que, neste caso, se esqueça o despropositado e pindérico interlúdio pianístico a meio da canção), Hippo Stomp, What Would You Do (If I Did That To You) e, claro, Born To Be Wild, entre outras, dariam um grande álbum de heavy-acid-blues-rock.

Há outras compilações muito bem sucedidas comercialmente, mas estão longe de me convencer. Aqui fica a minha.

E pronto, este foi o meu contributo para a despedida do ano de 2017. Até 2018 vou ficar calado... se conseguir.   

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Scruton sobre a natureza humana


Neste livro, Roger Scruton lança um olhar original sobre a natureza humana, sem deixar de ter em conta os mais sólidos resultados científicos — da biologia à ciência cognitiva e da psicologia à etologia — mas também o legado das artes e da cultura em geral. E consegue fazê-lo com elegância e concisão, sem tecnicismos nem referências gratuitas.

Ao defender que o ser humano não é apenas um animal racional, Scruton procura, de forma corajosa mas tranquila, mostrar como se pode fazer uma leitura do que as ciências têm para nos contar muito diferente da que tem sido habitual. Nesse sentido, Scruton rejeita não só as perspectivas de muitos psicólogos evolucionistas, mas também as concepções morais utilitaristas e sobretudo as abordagens materialistas da natureza humana — como as de Daniel Dennett e Richard Dawkins —, argumentando que não encontraremos a verdadeira natureza humana em animais racionais despojados dos elos essenciais que, além da biologia e da racionalidade, nos definem como seres que partilham um mesmo universo de valor. De acordo com Scruton, é neste universo de fidelidades, obrigações, direitos e relações que se descobre o eu que cada um de nós é e se revela a nossa natureza singular: a de sermos pessoas. Isto, sustenta Scruton, é algo que nenhuma categoria biológica permite compreender.

É no contexto dessa concepção da natureza humana decididamente personalista que Scruton nos fala do significado humano do riso, da sexualidade, do prazer, da culpa ou da moral, transferindo para quem o lê uma enorme bagagem literária e cultural que, mesmo quando defende pontos de vista não coincidentes com os do leitor, não deixa de ser intelectualmente gratificante.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Reinventar o marxismo


John E. Roemer é um economista político e um dos mais destacados filósofos marxistas dos últimos anos, juntamente com G. Cohen, J. Elster, van Parijs e outros representantes do chamado marxismo analítico.  

Este livro de Roemer é uma das mais claras tentativas de recuperação de um socialismo de inspiração marxista ainda não experimentado. Nesse sentido, Roemer propõe um modelo original de funcionamento de uma economia socialista, procurando mostrar como se comporta na prática.

Demarcando-se do socialismo revolucionário, utópico e romântico, que Roemer aqui descarta tranquilamente, estamos agora perante uma proposta concreta de organização socialista que não só aceita os mercados como lhes atribui uma grande utilidade numa economia socialista. E considera também que a denúncia da propriedade privada como fonte de desigualdades injustas não implica a defesa da estatização da propriedade (como acontecia nas falidas sociedades comunistas). 

Assim, Roemer tanto rejeita as nacionalizações das empresas como as suas privatizações, defendendo a propriedade pública não estatal e um novo tipo de titularidade, a considerar seriamente: uma espécie de carteira de ações ou cupões de empresas, atribuídos a cada pessoa maior de 21 anos, que cada um gere da forma que lhe parecer melhor, podendo trocar ou negociar ações, sem contudo poder transformá-las em liquidez. 

Roemer explica de forma bastante clara no livro quais as vantagens e o propósito disso, tendo em conta o triplo objectivo socialista da igualdade de oportunidades: para a auto-realização e o bem-estar; para a influência política; para o estatuto social. 

O livro estará nas livrarias no fim deste mês de Outubro e agradou-me muito estar ligado à sua publicação.

sábado, 14 de outubro de 2017

Beatles: 20 armas de revolução massiva

Esta é a minha lista das vinte melhores canções dos Beatles. O que não falta por aí são listas idênticas a esta: das melhores vinte, melhores dez, melhores cinquenta. Há até quem, como neste caso, ordene as 213 canções originais dos Beatles da menos boa até à melhor, acrescentando a devida justificação. Devo dizer que só nove das vinte melhores dessa lista constam da minha. Contudo, coincidimos nas três melhores, embora a ordem seja ligeiramente diferente.

A verdade é que não tenho grandes dúvidas em relação às cinco melhores, seja por que ordem for. Aqui fica a lista comentada, com comentários um pouco mais alargados apenas para essas cinco.

1. A Day In The Life (Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, 1967)
Esta canção consegue reunir o melhor de John Lennon com o melhor de Paul McCartney. Surge, de resto, da reunião de duas canções completamente diferentes de cada um deles: começa com a parte de Lennon e passa para a de McCartney, com uma transição instrumental de pura liberdade orquestral. É uma canção invulgar a todos os títulos: acordes de guitarra ao fundo que parecem não avançar, o piano como que a dar uma ordem de partida e que imediatamente se acomoda para que a voz moderadamente plangente de Lennon, ocasionalmente pontuada pela batida aparentemente irregular da bateria de Ringo Starr, comente as notícias do jornal do dia — alguém ganhou a lotaria, um jovem morreu num acidente de automóvel. A parte orquestral que se segue é uma verdadeira vertigem sonora ascendente que subitamente se acalma e passa para um despertar algo apressado, cantado agora por McCartney. A vertigem sonora orquestral regressa no final e conclui de forma improvável: um verdadeiro ponto final sonoro, com vários pianos a dar em uníssono um único acorde que se prolonga por muito tempo sem se desvanecer. Quem pensava que nada mais havia para inventar dentro dos cânones melódicos tradicionais, devia ouvir isto.

2. Penny Lane (single, 1967)
Parece que esta obra-prima composta por McCartney foi a resposta a Strawberry Fields Forever, outra obra-prima, composta pouco antes por John Lennon. Tal como a canção de Lennon, também Penny Lane evoca recordações da infância em Liverpool. Penny Lane é o nome de uma rua que fica perto da zona onde McCartney morava e por onde passava frequentemente. A letra consiste nas suas memórias de infância de quando cruzava essa rua: coisas banais, mas com os sons e as cores (Penny Lane is in my ears and in my eyes) da candura infantil que simplesmente se satisfaz com a felicidade de um céu azul (the blue suburban skies). A canção começa logo por surpreender com a sua melodia descendente, empurrada pelo baixo bem delineado e saltitante de McCartney. Outro aspecto que não é muito vulgar na música popular prende-se com o uso da bitonalidade, saltando de um tom para o outro ao longo da canção. Não menos surpreendente é o arranjo instrumental, em que se destaca a parte dos metais (trompetes) e um inesperado piccolo. Por vezes penso ser esta a melhor canção do Beatles.
The blue suburban skies,
da ponte sobre o caminho de ferro, em Penny Lane.

3. Strawberry Fields Forever (single, 1967)
Mais uma brilhante canção, que também começa de forma cativantemente estranha: uma primeira frase cantada de forma assertiva e imediatamente quebrada por uma espécie de anti-clímax melódico. E também ela é sobre a felicidade da infância de Lennon. Strawberry Fields é o nome do sítio, ali mesmo ao pé de casa, onde a sua tia o levava no Verão para brincar livre e despreocupadamente com outras crianças no pequeno bosque que lá havia: quem me dera ser sempre criança, é o que Lennon exprime com o refrão Strawberry Fields Forever. A sensação de algo guardado na memória de infância é dada logo a abrir com os aconchegantes acordes de mellotron, um instrumento inventado por essa altura, tocado por McCartney. Este era, aliás, um dos maiores segredos do sucesso musical dos Beatles: as canções de cada um dos dois principais autores eram sempre enriquecidas com as ideias do outro. Por isso se justifica plenamente atribuir a autoria à dupla Lennon e McCartney, independentemente de quem é o autor da ideia original. Tanto Penny Lane como Strawberry Fields Forever foram gravadas para o álbum Sgt. Pepper's, mas acabaram por sair à parte pouco antes de sair aquela obra-prima.

Strawberry Fields, em Liverpool

4. Eleonor Rigby (Revolver, 1966)
Outra canção irresistível, da autoria de McCartney, toda ela acompanhada apenas por uma orquestra de câmara, mas com o ritmo de uma genuína canção pop. A letra é sobre as pessoas solitárias e as pequenas coisas com que tentam preencher o seu quotidiano. A composição começa de forma pouco habitual, com o refrão. A veemência do refrão reforça o que se pede com as palavras (Ah, look at all the lonely people!) e contrasta melodicamente com a parte descritiva da letra. Por sua vez, o contraponto é breve e astuciosamente usado para relembrar o convite inicial contido no refrão. Tudo nesta canção funciona de forma perfeita e expressiva. Só os Beatles foram capazes de fazer uma canção assim.

5. You Never Give Your Money - Sun King - Mean Mustard - Polythene Pam - She Came In Through The Bathroom Window - Golden Slumbers - Carry That Weight - The End (Abbey Road, 1969)
Em rigor, não temos aqui apenas uma canção, mas uma miscelânea de fragmentos de canções diferentes, aparentemente ligados entre si e correspondendo a quase todo o lado B de Abbey Road. Este foi o último álbum gravado pelos Beatles, apesar de ter sido lançado antes de Let It Be, gravado anteriormente. Lennon, autor de metade das canções — sendo a outra parte de McCartney — explicou que se tratou de aproveitar antigos esboços de canções abandonadas por ambos e que decidiram reunir aqui. A verdade é que, apesar das diferenças melódicas, e não só, elas ouvem-se como se fossem capítulos de uma só peça: como se tratasse de diferentes andamentos de uma sinfonia rock ou das árias de uma espécie de ópera rock sem libreto. O resultado é simplesmente brilhante: melodias viciantes e imprevisíveis, como Golden Slumbers; harmonias vocais cativantes como em You Never Give Me Your Money ou Sun King, com um toque de Beach Boys; guitarras incisivas como em She Came In Through The Bathroom Window e The End; hinos imparáveis como Carry That Weight; orquestrações brilhantes como em Carry That Weight e The End. As letras são quase todas pequenos flashes de situações banais e, por vezes, roçam mesmo o non sense, especialmente a mistura de palavras de diferentes línguas latinas em Sun King. Mas tudo funciona de forma irresistível, numa variedade melódica, vocal, harmónica e instrumental que nunca cansa.

6. She Said She Said (Revolver, 1966)
Os Beatles num registo mais puramente rock, com guitarras firmes, ácidas e enleantes. E a voz ligeiramente rugosa de Lennon subtilmente iluminada pelas harmonias vocais em que repousa.

7. She's Leaving Home (Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, 1967)
Uma pérola vocal, harmónica e orquestral. É sobre a uma jovem provinciana que sai de casa dos pais contrariados, em busca sabe-se lá bem de quê. Uma das coisas que mais se destaca nesta canção é o uso de duas vozes em contraponto, apresentando cada uma delas uma perspectiva diferente: a dos pais consternados e a da filha em busca de liberdade.

8. In My Life (Rubber Soul, 1965)
Uma das canções mais simples e mais belas dos Beatles. Tudo vem a propósito, incluindo o solo discreto de guitarra eléctrica no início, o belo solo bachiano no piano a meio, e o falsete final. De uma simplicidade tocante.

9. If I Feel (A Hard Day's Night, 1964)
Outra melodia tocante da primeira fase dos Beatles, composta e cantada por Lennon, a que se acrescentam belíssimas harmonias vocais.

10. Yesterday (Help!, 1965)
Diz-se que esta é só a canção com mais versões gravadas em toda a história da indústria discográfica. Não é fácil perceber porquê. Como confessou McCartney, quando a cantou pela primeira vez na guitarra, parecia que estava a cantar algo que já existia por aí desde sempre e que nem sequer tinha sido ele a compô-la. Mas foi. É uma canção melodicamente complexa, com muitos acordes e uma orquestração que acentua ainda mais a sua força melódica.

11. Here, There and Everywhere (Revolver, 1966)
Se a anterior é uma melodia complexa, esta é bem singela. Mas tem uma beleza desarmante e um sabor agradavelmente nostálgico, dado sobretudo pelos coros.

12. Here Comes The Sun (Abbey Road, 1969)
Nem só de Lennon e McCartney vivem os Beatles, como o prova esta sedutora canção, escrita e cantada por George Harrison. O que mais me agrada nela é a toada elegante e optimista como que a empurrar-nos suave mas decididamente. Gosto particularmente do toque da tarola de Ringo Starr.

13. Tomorrow Never Knows (Revolver, 1966)
Se em Yesterday abundam os acordes, nos 3 minutos de Tomorrow Never Knows não há mais do que um, e só um, acorde. Esta canção ilustra bem a ousadia e a liberdade criativa dos Beatles, que nunca se limitam a seguir a mesma fórmula, ao contrário do que infelizmente acontece com grande parte dos músicos rock. O mais interessante nesta canção não é só o uso de recursos tecnológicos inspirados nas experiências vanguardistas da música erudita da altura, como a fita magnética e o looping, mas o seu efeito melódico e o modo como tudo se conjuga de forma estranha mas harmónica.

14. Girl (Rubber Soul, 1965)
Esta é uma das mais bonitas baladas dos Beatles. Lennon canta nostalgicamente o seu amor definitivo pela rapariga que ainda nem sequer conhece (ele próprio disse que a rapariga era Yoko, a qual veio a conhecer anos mais tarde). A melodia, de tão singelamente bela, quase dispensa acompanhamento instrumental. E este restringe-se ao mínimo, como tinha mesmo de ser.

15. The Long and Winding Road (Let It Be, 1970)
Mais uma belíssima canção de McCartney, simultaneamente nostálgica e esperançosa. De facto, ela soa a despedida — a despedida dos Beatles, tanto pela melodia como — mesmo não parecendo à primeira vista — pela letra. Destacam-se os coros distantes e quase etéreos a dar uma aparentemente exagerada grandiosidade à melodia além dos arranjos orquestrais clássicos e envolventes. É certo que tudo isso foi introduzido pela mão solitária do produtor Phil Spector e que muito irritou Paul. Mas, mesmo contra o veredicto de Paul, isso não deixa de mostrar que a música dos Beatles soa bem em todos os registos.

16. While My Guitar Gently Weeps (White Album, 1968)
George Harrison de novo, com outra fantástica canção baseada sobretudo na sua guitarra — e com uma mãozinha de Eric Clapton nos solos instrumentais. A melodia é cantada na voz aparentemente frágil de Harrison, o que lhe dá um toque algo lírico, acentuado por uma batida simultaneamente indolente e acentuada.

17. The Fool On The Hill (Magical Mystery Tour, 1967)
Os méritos desta canção estão longe de reunir consenso, mesmo entre os apreciadores dos Beatles. Mas penso que merece estar entre as melhores por se tratar de um excelente exemplo do lirismo melódico aparentemente despojado de McCartney, conseguindo acentuar esse lirismo com um arranjo orquestral perfeito.

18. Help (Help!, 1965)
Ao usarem magistralmente as segundas vozes e o contraponto, com a sua melodia em forma de fuga, os Beatles mostravam nesta canção como a música rock não tinha de ser apenas constituída por melodias simplórias, envolvidas por instrumentos electrificados.

19. Ticket to Ride (Help!, 1965)
A irresistível malha inicial da famosa Rickenbacker de 12 cordas, aqui tocada por George e a afirmativa entrada da bateria de Ringo, ampliada pelas notas ressoantes do pequeno baixo Hõfner de Paul mostram logo ao que vêm: rock intenso, melodioso e instrumentalmente cativante. Mais uma canção inspirada de Lennon, com importantes contributos instrumentais de todos os outros, em especial de Paul.

20. Within You Without You (Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, 1967)
Outra faceta dos Beatles e também o seu lado mais exótico, liderado por George. Não se trata simplesmente de uma curiosidade de inspiração indiana, mas de uma verdadeira canção, com todos os melhores ingredientes que uma boa canção pode ter. E com George a cantar e a tocar sitar, que aprendera a tocar com músicos indianos, entre os quais Ravi Shankar.

Fora desta lista ficam canções memoráveis como Hey Jude, Let It Be, Paperback Writer, Day Tripper, Something, Blackbird, Across the Universe, Lady Madonna, Come Together, All You Need is Love, Revolution, With a Little Help From My Friends, Norwegian Wood, Drive My Car, I Want to Hold Your Hand, All My Loving, And I Love Her, Michelle e tantas outras que teria vontade de incluir. Mas isto são os Beatles, não é qualquer coisa.

A lista das 20 canções acima pode ser ouvida aqui.