quarta-feira, 28 de agosto de 2024

A eficácia da pedagogia cega: aprender sem compreender

Nem sempre a compreensão é necessária para a aprendizagem, defende Dennett. O exemplo mais persistente é o da própria evolução natural, que pode ser caracterizada como um processo de desenvolvimento de competências sem compreensão. Foi a pedagogia cega da evolução natural que ensinou a muitos seres como enfrentar as inesperadas adversidades do ambiente. Assim, a história da evolução natural é, bem vistas as coisas, o resultado dessa pedagogia cega que permite aprender sem compreender o que se aprende. Dennett não afirma que a compreensão nunca é necessária para a competência. Mas o que diz significa que, ao contrário do que geralmente se pensa, nem sempre a compreensão é necessária para a aprendizagem, o que suscita questões pedagógicas interessantes. Será que, para nos tornarmos competentes em alguma área, temos mesmo de começar por compreender o que está em causa? Será que não se aprende sem compreender? Dennet considera que não é só a evolução natural que mostra que a competência nem sempre requer compreensão. A inteligência artificial é outro exemplo esclarecedor e até a escola tem mostrado bons exemplos disso. No seu último livro, intitulado Das Bactérias a Bach e Vice-versa: A Evolução das Mentes (trad. port. Edições 70), Dennett explica como. Vale a pena, como quase tudo o que Dennett escreveu (já agora a citação do post anterior é também deste livro de Dennett).

Tanto Darwin quanto Turing afirmam ter descoberto algo verdadeiramente perturbador para uma mente humana — competência sem compreensão. [...] Considerem o quão chocante isto é em relação à ideia consagrada nas nossas políticas e práticas educativas: a compreensão como a (melhor) fonte de competência. Enviamos os nossos filhos para as universidades, para que eles adquiram um entendimento de todas as formas de funcionamento do mundo que os manterá em boa posição ao longo das suas vidas, gerando competências, conforme necessário, a partir do valioso depósito de compreensão que neles inculcamos. [...] Porque é que hoje em dia menosprezamos o aprender de cor?

         Porque vimos — vimo-lo mesmo? — que fazer as crianças compreenderem um tópico ou um método é a forma (a única forma ou apenas a melhor forma?) de as tornar competentes no que diz respeito a esse tópico ou método. Desprezamos quem memoriza acriticamente, pois apenas preenche os espaços em branco no modelo, sem saber qual é o objetivo. Escarnecemos da ideia de que os livros de colorir são a melhor maneira de formar artistas criativos. Talvez o nosso lema seja:

 

         Se os fizermos compreender, a sua competência virá!

 

         Note-se que o que está aqui em jogo é mais do que um pouco de ideologia. Estamos bastante familiarizados com algumas aplicações desastrosas do nosso sagrado princípio, tal como a «nova matemática», que tentou — sem sucesso — ensinar primeiro às crianças a teoria do conjunto e outros conceitos abstratos, em vez de as amestrar em adição e subtração, tabelas de multiplicação, frações e algoritmos simples, como grandes divisões, ou contar de dois em dois, ou cinco, ou dez.

As Forças Armadas são uma das instituições educativas mais eficientes do mundo, transformando estudantes medianos do ensino secundário em fiáveis mecânicos de motores a jato, operadores de radar, navegadores, e uma série de outros especialistas técnicos graças a pesadas doses de «aprofundamento e prática». Às vezes, uma valiosa variedade de compreensão surge das competências incutidas nestes profissionais experimentados, pelo que temos boas provas empíricas de que a competência nem sempre depende da compreensão e é, por vezes, uma condição prévia para a compreensão.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

A impressionante res cogitans de Descartes

«René Descartes, filósofo e cientista francês do século XVII, ficou muito impressionado com a sua própria mente, e tinha toda a razão. Chamou-lhe res cogitans, ou coisa pensante e, ao refletir, isso impressionou-o como uma capacidade milagrosa. Se alguém tinha o direito de se maravilhar com a sua própria mente era Descartes. Ele foi, sem dúvida, um dos maiores cientistas de todos os tempos, com grande trabalho em matemática, óptica, física e fisiologia. Foi também o inventor de uma das mais valiosas ferramentas de pensamento de todos os tempos, o sistema das «coordenadas cartesianas» que nos permite traduzir álgebra em geometria, abrindo caminho para o cálculo e permitindo-nos traçar quase tudo o que queremos investigar, desde o crescimento do porco-formigueiro às flutuações do preço do zinco. Descartes propôs a primeira TDT (teoria de tudo) original, um protótipo de uma Grande Teoria Unificada, que ele publicou sob o imodesto título Le Monde (O Mundo). Pretendia explicar tudo, desde as órbitas dos planetas e a natureza da luz até às marés, de vulcões a ímanes, por que razão a água forma gotas esféricas, como se obtém fogo através da fricção do sílex, e muito, muito mais. A sua teoria estava quase toda errada, mas aguentou-se surpreendentemente bem e é estranhamente plausível mesmo a partir de uma retrospectiva atual. Foi preciso chegar a Isaac Newton para aparecer uma física melhor, com os seus famosos Principia, uma refutação explícita da teoria de Descartes.»

Não teria já Aristóteles uma TDT também? E, já agora, igualmente errada?

Tenha razão ou não, este tipo continua a escrever com graça. Dá gosto lê-lo.


quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Olha que dois!

Duas lendas, dois amigos e duas aves raras, interpretando o delicado, preguiçoso e sensual segundo andamento do concerto para piano em Sol, de Ravel. O lendário Arturo Benedetti Michelangeli ao piano e o não menos lendário Sergiu Celibidache à frente da orquestra. Vale a pena ver a gravação ao vivo de 1982, em Londres, até porque as aparições em público de ambos não abundam. Michelangeli era conhecido por não gostar de dar concertos e só tocava num dos seus dois pianos pessoais, que tinham de viajar com ele para todo o lado. Destacava-se também por ter cancelado quase tantos concertos como os que deu. Consta que chegou a cancelar um concerto esgotado, em Londres, ao saber que iria haver na sala um grupo de turistas cujos bilhetes estavam incluídos no pacote turístico da sua viagem. O pianista italiano (falecido em 1995) raramente dava entrevistas e nunca respondia a perguntas sobre a sua vida pessoal nem sobre a sua pessoa, que considerava assuntos irrelevantes para os outros. O seu amigo Celibidache também não gostava de aparecer e, pior, pediu aos descendentes para que as muitas gravações suas ainda não publicadas (algumas das quais consideradas históricas) nunca o viessem a ser, nem depois da sua morte (morreu um ano depois de Michelangeli). Felizmente, a família acabou por não lhe fazer a vontade.

Mas, mais importante do que o carácter destes figurões, o que interessa é, acima de tudo, a belíssima música de Ravel.