terça-feira, 13 de novembro de 2012

É dia da filosofia, vamos ao cinema!

Como tem sido habitual, os professores de Filosofia da ESMTG comemoram o Dia Mundial da Filosofia tentando filosofar um pouco. A ideia é cada um de nós partilhar com os outros a sua breve reflexão sobre um tema com algum interesse filosófico. Achamos que é mais apropriado comemorar o dia tentando praticar o ofício, ainda que modestamente, do que dizer coisas bonitas sobre a importância da filosofia. O tema é diferente todos os anos e neste foi decidido que cada um deveria escolher um filme filosoficamente interessante. Eis o meu texto, sobre um filme bem antigo: Grau de Destruição (Fahrenheit 451), de François Truffaut.


Felizes dos ignorantes?


A que temperatura queima o papel? A resposta é: a 451 graus na escala de Fahrenheit. E essa é também a temperatura a que queimam os livros, que são feitos de papel. Ora, Fahrenheit 451 é precisamente o título original do filme britânico, realizado em 1966 pelo francês François Truffaut, com base no livro do célebre escritor americano Ray Bradbury (falecido no passado mês de Junho). Grau de Destruição é o (infeliz) título do filme em Portugal.

A história desenrola-se numa sociedade futura de grande conforto material, a qual é zelosamente protegida por um governo (referido como a família) cujo único objectivo é manter as pessoas felizes. Está bom de ver que a família (o governo) deve saber o que é a felicidade. Na verdade, a família sabe melhor do que ninguém o que faz os seus membros (os governados) felizes. E sabe também o que perturba a paz social e os torna infelizes. Assim, a família sabe melhor do que ninguém o que, para o bem de todos, tem de ser evitado.

Mas o que poderá perturbar a paz social e a felicidade das pessoas? A família tem a resposta: a paz e a felicidade são perturbados pelo desconforto material, mas também pelo desconforto espiritual. O problema material parece ter sido resolvido, pois as pessoas têm emprego, não passam fome, vivem em boas casas e fazem muitas compras. Mas evitar o desconforto espiritual é bem mais difícil, pois este tem origem não só no desejo insatisfeito como na incerteza da dúvida. Nada pior do que pensar em perguntas difíceis, confrontar-se com ideias divergentes e alternativas ou dar asas a uma imaginação à solta. Quer dizer, a infelicidade encontra-se no pensamento crítico, na filosofia, na literatura, na poesia, na história. Só que é isto que abunda nos livros. Daí que os livros sejam verdadeiramente perigosos, incendiando as ideias e abrindo caminho à infelicidade. Por isso têm de ser banidos. O que as pessoas realmente precisam para entreter as suas mentes é programas de televisão (vistos em enormes e elegantes aparelhos de TV) que não as intranquilizem nem as façam pensar em coisas estranhas e complicadas: por exemplo, devem entreter-se com concursos interactivos em que se tenta acertar nos títulos de canções conhecidas, e coisas do género.

Mas há um problema: não basta proibir os livros, pois podem ser lidos às escondidas. É preciso destruí-los. E essa é a tarefa dos bombeiros, que vão às casas das pessoas suspeitas, procurando-os e queimando-os com jactos de fogo à temperatura de... 451 graus Fahrenheit. É o que faz, com grande dedicação, o bombeiro Guy Montag (Oskar Werner). Até ao dia em que fica incomodado com uma leitora que prefere deixar-se queimar juntamente com os livros do que perdê-los. Intrigado, Montag decide guardar sorrateiramente um dos livros para ver o que leva algumas pessoas a correr o risco de vida por eles. A partir daí, instala-se a dúvida no espírito de Montag. Incentivado pela sua atraente e perigosa amiga Clarisse (Julie Christie), começa a pôr em causa a sua profissão e acaba ele próprio por se tornar um ávido leitor. Só que, não podendo correr o risco de guardar os livros, junta-se a um grupo secreto de resistentes homens-livro, cada um dos quais decorou um livro inteiro. Assim, cada pessoa é um livro e os resistentes são uma biblioteca. «Que livro és?», pergunta-se a um deles. «Sou A República, de Platão, querem ouvir?». Juntam-se à volta de A República e ouvem. O conhecimento e a memória da humanidade são assim preservados secretamente na intimidade dos resistentes.


Mas serão mesmo as ideias contidas nos livros fonte de infelicidade? Seremos mais felizes se nos mantivermos ignorantes e não formos questionadores? Quem sabe, afinal, o que nos faz felizes? Este é um filme que ilustra bem a tese de que, em nome da felicidade geral e de uma concepção oficial do que é o bem, se podem urdir muitos totalitarismos bem intencionados. Como se antevê também em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell e em Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.                            

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